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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.70 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000400004
BRASIL
70 ANOS DA SBPC
30 anos da Constituição Cidadã
Chris Bueno
Direito à vida, à liberdade, à segurança e acesso universal à educação, à saúde, à cultura. Essas foram algumas das maiores mudanças trazidas pela Constituição Brasileira de 1988, que acabou ficando conhecida como a "Constituição Cidadã". A Constituinte marcou a volta da democracia no país e ainda introduziu na lei brasileira os princípios fundamentais de cidadania e dignidade da pessoa humana. Além disso, contou com a participação efetiva da população e de várias entidades e organizações - entre elas, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que teve um papel crucial na inserção de capítulos e artigos sobre ciência, tecnologia, educação e direitos humanos.
O ano de 2018 é um ano de dupla comemoração, pois é marcado pelo trigésimo aniversário da atual Constituição brasileira e pelo septuagésimo aniversário da SBPC. Os 70 anos de história da Sociedade foram marcados pela luta pelo desenvolvimento científico e social brasileiro. E durante o período de redemocratização do país, a SBPC marcou presença, defendendo os direitos humanos e batalhando pelo direito à educação e à saúde do povo brasileiro. "A SBPC, ao longo desses 70 anos de existência, tem sido não apenas um espaço de comunicação pública da ciência, como também tem exercido um importante e fundamental papel de luta pela defesa da pesquisa científica no país. Além disso, atuou ativamente em defesa dos direitos humanos, da cidadania, da educação e da democracia", aponta Graça Caldas, jornalista e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp.
A Constituição da República Federativa do Brasil tornou-se o principal símbolo do processo de redemocratização nacional, depois de mais de duas décadas de ditadura militar. Ela se contrapôs diretamente à Constituinte anterior, de 1967, considerada a mais autoritária das constituições brasileiras: entre suas medidas, estabelecia a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, a censura da imprensa e o poder absoluto para o presidente fechar o Congresso Nacional. Assim, a Constituição de 1988 buscava retomar o caminho da democracia e a recuperação dos direitos dos cidadãos. "A ditadura deixou como sua marca indelével a violação dos direitos civis. A expressão 'para que nunca mais se repita' tornou-se, e permanece, um guia para os trabalhos relativos à educação em/para direitos humanos", explica Roseli Fischmann, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). "A Constituinte operou, de fato, como mobilizadora e catalizadora da definição de pautas em prol dos direitos humanos e significou a reconquista da cidadania e da democracia".
Nesse retorno à democracia, a participação popular foi fundamental. Por isso, cidadãos e entidades representativas (associações, sindicatos e movimentos sociais) puderam se organizar para elaborar emendas e encaminhar suas sugestões para a Assembleia Nacional Constituinte, instaurada em 1987 e liderada por Ulysses Guimarães. E a participação foi alta: 15 milhões de brasileiros assinaram mais de 50 emendas ao texto básico. Foi a primeira vez que emendas populares foram permitidas em uma constituinte brasileira e que se realizaram audiências e consultas públicas no Congresso. Ao todo, mais de 80 mil emendas foram propostas.
A SBPC formou uma Comissão de Estudos para a Constituinte, coordenada pelo sociólogo José Albertino Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Carlos, para discutir propostas para a nova Constituição. O resultado foi um documento de 15 páginas com propostas para as áreas de ciência e tecnologia, educação, saúde, espaço territorial, meio ambiente e populações indígenas. "Os pesquisadores atuaram como assessores, muitas vezes informais, na Constituinte. Por isso, podemos dizer que as sociedades científicas tiveram papel decisivo nesse processo, e de modo especial a SBPC que já havia se notabilizado na luta contra a ditadura, tendo voz potente e de alcance internacional", completa Fischmann.
CIÊNCIA & TECNOLOGIA
A Constituição de 1988, promulgada em 5 de outubro, é a primeira que manifesta de modo explícito a importância estratégica da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. O primeiro parágrafo do Artigo 218 determina que "a pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências". Assim, a Constituinte estabelece que é responsabilidade do Estado promover o progresso da ciência visando o desenvolvimento econômico e social e o bem-estar da população. "A SBPC foi parceira, juntamente com muitas outras entidades científicas, na luta pela valorização da ciência e da tecnologia no país", enfatiza Ildeu de Castro Moreira, atual presidente da SBPC. "É uma luta que se iniciou há muito tempo e que se mantém até hoje, para mostrar a importância que a ciência tem para o desenvolvimento do país, tanto social quanto econômico, e até mesmo na questão da soberania nacional. A ciência está intrinsicamente atrelada a tudo isso".
Outra questão importante que ficou determinada na Constituição, e que teve contribuição da SBPC e de outras sociedades científicas, foi sobre a energia nuclear. Depois da crise do petróleo de 1973, o governo pensou em investir mais pesadamente em energia nuclear, mas a SBPC e as sociedades científicas foram veementemente contra. Desta forma, ficou estabelecido que obras e instalações que utilizem energia nuclear só seriam implantadas após aprovação popular, através de plebiscito. Do mesmo modo, ficou vedada a construção, o armazenamento e o transporte de armas nucleares em território nacional.
EDUCAÇÃO & SAÚDE
A SBPC também teve participação significativa na elaboração e inserção de capítulos e artigos sobre educação e saúde. "A perspectiva educacional sempre esteve presente na história da SBPC", destaca Caldas. Desta forma, durante a Assembleia Constituinte, a Sociedade apoiou o manifesto dos educadores para garantir o direito de todos os cidadãos brasileiros à educação em todos os níveis, e o dever do Estado prover os meios para isso. "Essa é outra luta permanente da SBPC desde o princípio, pela melhoria da educação brasileira em todos os níveis. Nós nos envolvemos nas discussões da criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e no processo de reestruturação e expansão das universidades federais e também estamos brigando contra a reforma do ensino médio. Enfim, é uma luta contínua, sempre buscando o caminho para uma educação de qualidade. Porque a educação é a base de tudo: você não vai ter ciência de ponta ou inovação sem educação, assim como não vai ter desenvolvimento social, nem mesmo cidadania, sem educação", afirmou Moreira.
Do mesmo modo, engajada com outras entidades e sociedades científicas, a SBPC se envolveu na discussão para garantir o direito à saúde por todos os cidadãos brasileiros - o que significa acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde em todos os níveis, assegurado pelo Estado. "Também foi nosso objeto de discussão que a organização das ações e serviços de saúde incorporassem os resultados do conhecimento científico desenvolvido nacionalmente, ressaltando o valor fundamental da ciência e da tecnologia nesse setor", enfatiza Moreira.
DIREITOS HUMANOS
A Constituição de 1988 trouxe o reconhecimento da pluralidade e a reconfiguração de novos espaços sociais, permitindo pela primeira vez repensar as desigualdades sociais no país. Isso permitiu atingir um novo patamar de discurso sobre os direitos humanos - e nessa discussão a SBPC também teve uma participação ativa. "A temática dos direitos humanos e o combate às desigualdades sociais no Brasil sempre estiveram presentes nas políticas públicas da SBPC e em suas ações", aponta Caldas.
Como ciência e tecnologia interagem com outros setores, a SBPC enfatizou nos artigos e capítulos propostos sua importância para o desenvolvimento social e para o bem-estar da população. "A ciência é necessária o tempo todo. O Brasil precisa dela para um desenvolvimento sustentável e inteligente, que contribua para a melhoria da qualidade de vida de todos ", afirmou Moreira. "Nós queremos um país democrático, que respeite os direitos humanos e defenda a liberdade de pesquisa, de expressão e de comunicação", complementou.
A Constituição de 1988 trouxe estabilidade política ao país e entrou para a história pelo resgate da democracia e conquistas no campo da cidadania. Mas a luta continua. Apesar de todos os avanços feitos ao longo desses anos, ainda há um caminho longo a seguir. "Se algo se aprendeu dos últimos anos no Brasil (e, de certa forma, no mundo), é que não se pode considerar os direitos conquistados como se estivessem garantidos de modo inquestionável", finaliza Fischmann.