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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400019
CULTURA
LITERATURA
Uma década de Pornopopéia
Armando Martinelli Neto
"Sempre achei tentador chafurdar na obscenidade verbal em meio a uma narrativa ficcional", afirma o escritor paulistano Reinaldo Moraes. Há dez anos ele lançava Pornopopéia, seu livro mais cultuado pela crítica e público. A obscenidade verbal, os trocadilhos habilidosos e as peripécias da vida desregrada do personagem central da trama, José Carlos Ribeiro, o Zeca, foram escritos ao longo de cinco anos e, segundo Moraes, a recepção à obra foi uma grande surpresa. "Quando terminei, duvidei até que encontraria uma editora interessada. Sinceramente, achei que a reação do mundo literário iria da indiferença a esgares de desprezo e condenação pela amoralidade do personagem, mimetizada pela escrita e por certo clima antiquado ou anacrônico do livro como um todo", diz.
Pornopopéia, lançado pela editora Objetiva em 2009, foi um marco na carreira de Moraes, roteirista, tradutor, cronista e autor também dos romances Tanto faz (1981), Abacaxi (1985), A órbita dos caracóis (2003) e Maior que o mundo (2018), além do livro de contos Umidade (2005) e de crônicas O cheirinho do amor - crônicas safadas (2014). As primeiras críticas sobre Pornopopéia, como a de Alcir Pécora, professor de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, na época para o caderno Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo, demonstraram a vigorosa acolhida da obra. "Pornopopéia [o texto não foi adaptado à nova ortografia a pedido do autor] possui duas virtudes decisivas para livro que adota persona de escritor junk para seu narrador: 1) domínio perfeito do idioma, o que lhe franqueia a consistência de 'estilo' que o separa dos aspirantes fajutos a escritor, segundo o grão-guru desse tipo de literatura, Charles Bukowski; 2) veia cômica. Pornopopéia, antes de tudo, é de matar de rir" (Folha de S. Paulo, 11/07/2009).
INFLUÊNCIAS E ESTILO
O poeta, contista e escritor norte-americano Charles Bukowski é fundamental na escrita de Moraes. "Eu morava em Paris, época em que ensaiava as escritas de meu primeiro romance, quando um amigo me presenteou com o livro Notas de um velho safado, do Bukowski. Foi um divisor na minha então aspirante carreira literária, a ponto de, em 1982, eu me oferecer para traduzir o livro Mulheres, o qual estreitou ainda mais toda admiração pelo denominado lirismo de sarjeta, cuja figura maior é o velho Buk", conta Moraes.
Humor, sexo e drogas são características marcantes nas aventuras de Zeca, cineasta frustrado, com problemas financeiros, conjugais e com a polícia. Ao longo das 568 páginas de sua mais recente edição (Alfaguara, 2019), Pornopopéia (como sugere o título) está repleto de descrições sexuais. "Não sei de onde exatamente surgiu o interesse pelo tema, mas sempre me incomodou o ato sexual ser vedado ao leitor, como uma porta fechada na cara. Lembro bem que adorei ler A filosofia na alcova, do Sade, aos dezesseis anos, numa edição portuguesa meio clandestina. Me acabei na punheta lendo aquela carnificina sexual toda eivada de reflexões cínicas, cômicas, delirantes, subfilosóficas e, ao meu ver, sumamente divertidas. Talvez tenha vindo dessa leitura a ideia de despejar uma dose de putaria meio cômica, meio grotesca, na prosa ficcional, a exemplo de tantos outros autores como Luciano de Samósata, Henry Miller, Anaïs Nin, Aretino, Bocage e Oswald de Andrade", explica Moraes ao falar de suas inspirações.
Como ressaltado por Pécora, o domínio da língua exercido por Reinaldo Moraes personaliza seu estilo, o que possibilita, por exemplo, o uso recorrente de trocadilhos, outro ponto alto em Pornopopéia. "Fonemas, morfemas, raízes, radicais, afixos, desinências, vogais, consoantes, palavras de todo tipo e procedência formam na minha cabeça um imenso lego com milhões de possibilidades de conexões e recombinações lúdicas, algo inerente a qualquer atividade artística envolvendo quaisquer tipos de linguagem, no caso a verbal. Vai daí que neologismos burlescos e trocadalhos do carilho não cessam de irromper na minha escrita, quase que à minha revelia: é a liga lúdica do lego que vai se fazendo quase que por si mesma. Ou à minha arrelia, melhor dizendo", descreve o autor.
ARTISTA RESIDENTE
As histórias por trás de Pornopopéia, como de seus demais livros, são alguns dos temas discutidos por Reinaldo Moraes como convidado do Programa "Hilda Hilst" do Artista Residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, no segundo semestre de 2019. Em paralelo, o escritor também ministrará uma oficina de escrita criativa específica aos alunos de graduação do IEL, na qual se aprofundará na produção de seu livro mais recente Maior que o mundo.