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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200017
CULTURA
HISTÓRIA
Sociedade nua
André Gobi
Textos com ofensas de cunho sexual dividindo espaço com fotos e ilustrações de corpos femininos parcial ou totalmente nus, anúncios de casas de prostituição, ironia e pornografia dividindo o espaço das páginas. Poderia muito bem ser uma revista ou website de 2020, certo? Errado. Duas revistas publicadas em fins do século XIX e início do XX: O Rio nu e Sans dessous publicavam esse conteúdo diverso especialmente para atrair e divertir o público masculino. As publicações foram o ponto de partida para a pesquisa que resultou na obra Clichês baratos: sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX, da historiadora Cristiana Schettini, professora do Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidade Nacional de General San Martín (Unsam) e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), na Argentina.
O livro lançado em formato eletrônico pela Editora da Unicamp, como parte da coleção Históri@ Ilustrada, vinculada ao Centro de Pesquisa em História Social (Cecult), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pesquisa e a publicação contaram com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). "O livro é uma breve história de um conjunto de publicações ilustradas, praticamente desconhecidas hoje, que se dedicaram a um estilo peculiar de humor sexual e erótico no começo do século XX", afirmou Schettini. De acordo com ela, essas publicações retratavam de forma irônica e erótica a vida noturna carioca e as ações de sociabilidade entre cidadãos de diversas classes sociais, origens e ofícios.
PARA HOMENS
Consideradas "leituras para homens", as narrativas dessas revistas destilavam atribuições morais e raciais acompanhadas de desenhos ou fotografias que exibiam curvas de corpos femininos, vestidos ou não, estimulando o desejo masculino. As representações das mulheres variavam entre ilustrações e fotografias sendo que essas exerciam maior fascínio sobre os consumidores do que os desenhos realizados por artistas (muitas vezes, copiados de revistas francesas).
A pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Priscila Cupello, também analisou representações femininas em publicações entre as décadas de 1920 e 1930, como A maçã, revista que circulou entre 1922 e 1929. Segundo ela, também nessa revista a mulher era representada de forma depreciativa. "Encontramos representações de mulheres belas, jovens e atraentes, muitas vezes em cenas de cunho sexual ou nuas, mas suas características psicológicas eram as da mulher ardilosa, ambiciosa e interesseira", diz Cupello. "A ideologia embutida nos discursos da revista denunciava casamentos por interesse e o desejo de ascensão social feminina. Já os homens eram representados como tendo muitos bens materiais, mas sendo submissos aos caprichos femininos", explica a pesquisadora.
PROSTITUIÇÃO EM PAUTA
Uma das seções mais populares da Rio nu se chamava "Nas zonas", dedicada à prostituição e atuando, segundo Schettini, "como uma conexão direta da revista com o mercado do sexo", com fofocas sobre frequentadores de casas de prostituição, anúncios e até ameaças que divertiam os leitores. Esse era um tipo de entretenimento que servia para preencher o tempo livre, em especial a vida noturna de parte de uma sociedade recém-saída da escravidão, que dava os primeiros passos em um regime republicano e que lidava com as transformações de uma cidade, o Rio de Janeiro. E, nesse contexto, a prostituição passou a exercer um fator de sociabilidade, em que sujeitos de origens sociais distintas, de alguma forma, se cruzavam. De forma geral, as mulheres envolvidas nesse mercado do sexo viviam em condições precárias, tanto social quanto economicamente. Havia poucas perspectivas em um país onde o índice de alfabetismo era alto, com poucas oportunidades de trabalho, e a prostituição parecia ser uma forma de sobrevivência.
A falta de opções e o desemprego são fatores que ainda hoje estão relacionados à prostituição. Mariana Luciano Afonso, pesquisadora do Laboratório de Memória e História Oral Simone Weil da Universidade de São Paulo (USP), que estudou as representações sociais de prostitutas na cidade de São Paulo e na região de Sorocaba nos dias atuais, constatou que a maioria das mulheres que acabavam se prostituindo na rua, já havia passado por casas de prostituição e vinha de uma situação socioeconômica fragilizada. "No geral é um perfil de mulheres em situação de pobreza, com baixa escolaridade (desde mulheres que nunca se alfabetizaram até outras que no máximo completaram o ensino médio) e uma trajetória profissional marcada por trabalhos precários e pelo desemprego. Nesses contextos, a prostituição se apresenta como uma alternativa de obter ganhos um pouco maiores do que em trabalhos muito precarizados e mal pagos", aponta Afonso.
VIOLÊNCIA E OBJETIFICAÇÃO
De acordo com a pesquisadora da USP, boa parte dessas mulheres tiveram as vidas atravessadas por muitas violências até chegarem à prostituição. “É muito comum que elas vivenciem, simultaneamente, violência de gênero no contexto familiar; violência contra mulher em espaços públicos; violência do Estado; violência do racismo estrutural e a violência das privações impostas pela pobreza”, constata Afonso.
Separadas por contextos históricos distintos, as histórias da prostituição mais recentes e aquelas que emergem das páginas das revistas publicadas na virada do século XIX para o XX têm em comum a violência. Conforme explica, Schettini, as narrativas que preenchiam as páginas das revistas que foram objeto da pesquisa funcionavam como uma espécie de educação sexual para seus leitores, mas reiterando a prerrogativa masculina de satisfazer seu desejo sem limites. “Na verdade, não há nenhum registro nas histórias de aventuras sexuais dessa imprensa em que a violência sexual fosse condenada ou sequer reconhecida como tal”, diz a autora.
No entanto, essa imprensa exercia também uma espécie de “publicidade” para essas mulheres, principalmente para as proprietárias das casas de entretenimento. Por meio das publicações, elas construíam suas imagens públicas e negociavam alianças com outras mulheres e seus frequentadores, além de resolver conflitos. Schettini traz uma reflexão importante sobre a situação das prostitutas no período analisado em sua pesquisa. “Num mundo tão desfavorável como aquele, elas encontraram maneiras de participar do destino que suas imagens tomaram, pelo menos em alguns momentos. Não se trata de romantizá-las, mas de reconhecer que, às vezes, elas sabiam mais do que podemos imaginar sobre como intervir na produção e circulação de suas imagens”, finaliza a historiadora.