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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100004
ARTIGOS
AGRICULTURA
Mudanças do uso e cobertura da terra no Brasil, emissões de GEE e políticas em curso
José Maurício B. QuintãoI; Roberta Zecchini CantinhoII; Eliza Rosário Gomes Marinho de AlbuquerqueIII; Leandro MaracahipesIV; Mercedes M.C. BustamanteV
IBiólogo, mestre em ecologia e pesquisador colaborador no Laboratório de Ecologia de Ecossistemas da Universidade de Brasília (UnB). É um dos autores do setor de uso da terra, mudança do uso da terra e florestas (LULUCF) do Relatório de Referência do IV Inventário Nacional de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa (GEE)
IIEngenheira florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em sensoriamento remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com MBA em gerenciamento de projetos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e doutoranda em política e gestão da sustentabilidade pela UnB. É responsável pela elaboração do IV Inventário Nacional de Emissões Antrópicas de GEE do setor LULUCF
IIIBióloga, coordenadora geral do Instituto 3 Ciclos - Pesquisa, Conservação e Recuperação e pesquisadora da Associação Plantas do Nordeste (APNE). Colaborou na elaboração do Relatório de Referência do IV Inventário Nacional de Emissões Antrópicas de GEE do setor de LULUCF
IVBiólogo, pesquisador de pós-doutorado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi consultor da Rede Clima e responsável pela elaboração do Relatório de Referência do IV Inventário Nacional de Emissões Antrópicas de GEE do setor de LULUCF
VProfessora titular do Departamento de Ecologia da UnB, área de ecologia de ecossistemas e biogeoquímica. É coordenadora da subrede Uso da Terra da Rede Clima (MCTI), coordenadora técnico-científica do IV Inventário Nacional de Emissões Antrópicas de GEE para o setor LULUCF
Compreender os efeitos das ações antrópicas sobre a estabilidade climática e propor ações de mitigação e adaptação são alguns dos grandes desafios da humanidade para o século XXI [1, 2]. Dentre os impactos relacionados com as mudanças do clima, estão o aumento da temperatura e do nível do mar, a perda de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos, a alteração nos regimes de chuvas e a intensificação dos desastres naturais [3].
O aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) é um dos principais fatores causadores do aquecimento global, agravando-se, a partir da revolução industrial, devido à queima de combustíveis fósseis e mudanças do uso e cobertura da terra [4]. O acúmulo de GEE na atmosfera provoca uma maior retenção do calor liberado pela superfície terrestre e, consequentemente, aumenta o fenômeno conhecido como "efeito estufa". Embora seja um fenômeno natural e fundamental para a manutenção da vida no planeta, o rápido aumento das emissões de GEE leva à sua intensificação, e a alteração desse equilíbrio ameaça os sistemas naturais e as sociedades humanas [5].
Os principais GEE emitidos pela ação antrópica, por ordem de relevância, são: dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O), óxidos de nitrogênio (NOx), monóxido de carbono (CO) e compostos orgânicos voláteis não metânicos (NMVOCs da sigla em inglês). Essas emissões são oriundas de atividades dos setores industrial, energético, agropecuário e de mudanças do uso e cobertura da terra, sendo que a contribuição relativa de cada gás varia entre esses setores [6].
No Brasil, as emissões de GEE, principalmente CO2, estão intimamente relacionadas à importância da vegetação nativa como reservatório de carbono. O país ocupa a segunda posição considerando os que possuem as maiores áreas de florestas do mundo, atrás da Rússia [7]. E é o primeiro quando se consideram apenas florestas tropicais [8]. No entanto, entre 2010 e 2015, o Brasil foi um dos países que mais sofreu perdas significativas em sua cobertura florestal [9], sendo em 2019, o setor de mudança no uso e cobertura da terra representou a maior fonte de emissões de CO2 (60% das emissões totais de CO2 do país) [10].
A conversão da vegetação nativa nos biomas brasileiros, em função da expansão agropecuária, contribui de forma significativa para as emissões brasileiras quando comparadas com a proporção das emissões globais do setor de uso da terra. Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), entre 2007 e 2016, o setor de agricultura, florestas e outros usos da terra foi responsável por 23% das emissões globais de GEE de origem antrópica [11]. No Brasil, a conversão de terras para agricultura foi responsável por 41% das emissões líquidas de CO2 do setor de uso da terra entre os anos 2010 e 2016 [12].
A conversão da vegetação nativa, representada de forma agregada pelas fitofisionomias florestais, campestres e savânicas, para usos antrópicos, como a agricultura e pecuária, interfere diretamente no ciclo do carbono. A cobertura de vegetação nativa absorve CO2, o mais representativo dos GEE, estoca carbono (C) na biomassa vegetal e no solo, preserva a biodiversidade e serviços ecossistêmicos, como regulação climática e abastecimento de água (figura 1a). A derrubada da vegetação deixa o solo exposto e sua matéria orgânica é decomposta rapidamente, liberando CO2 para a atmosfera. Quando a vegetação é removida ocorre a erosão e lixiviação do solo e diminuição na recarga dos aquíferos (figura 1b). O fogo, muitas vezes usado para "limpar" a área recém desmatada para estabelecimento de pastagem ou agricultura, libera CO2 além de outros GEEs (figura 1c). Consequentemente, a substituição da vegetação nativa por uma nova cobertura ou uso da terra, como os cultivos agrícolas, modifica o estoque de carbono na biomassa. A queima e a oxidação dos resíduos agrícolas no solo devolvem carbono para a atmosfera na forma de CO2 e o uso de fertilizantes contribui para a emissão de N2O do solo (figura 1d).
Nesse contexto, as emissões são calculadas pela diferença entre o estoque inicial de carbono de uma determinada classe de uso ou cobertura (figura 1a) e o final (figura 1d). Quando o estoque de carbono final é menor que o inicial há emissões de CO2, porém, se o estoque final é maior que o inicial ocorre sequestro de carbono, indicando a incorporação de CO2 pela sua absorção na biomassa da vegetação. Isto é possível com a adoção de práticas sustentáveis de manejo da terra, capazes de manter a fertilidade do solo e minimizar as emissões de GEE.
CONVERSÕES DO USO E COBERTURA DA TERRA ENTRE 1994 E 2016
A análise das mudanças do uso e cobertura da terra no Brasil é um processo complexo devido à extensão do território nacional, à heterogeneidade espacial dos biomas e às especificidades regionais dos diferentes tipos de usos e manejo da terra. Apresentamos aqui as conversões do uso e cobertura da terra no Brasil compreendendo três períodos (1994 a 2002; 2002 a 2010; 2010 a 2016) estabelecidos para o IV Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa [12], com base nas diretrizes do IPCC [13] para a elaboração de inventários nacionais de emissões e remoções de gases de efeito estufa. Esses períodos refletem os anos mapeados ao longo da elaboração dos quatro inventários brasileiros feitos até o momento.
Diversas iniciativas acompanham a dinâmica de uso e cobertura da terra em escala nacional, com diferentes objetivos, escopos e metodologias. Dentre as governamentais, destacam-se o projeto Prodes [14], o programa TerraClass [15], o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [16], o Projeto de Monitoramento do Desmatamento nos Biomas Brasileiros por Satélite (PMDBBS) [17] e o Laboratório de Processamento de Imagens e GeoProcessamento (Lapig/UFG) [18]. Das iniciativas não governamentais, citam-se as da Fundação SOS Mata Atlântica [19], do Instituto SOS Pantanal [20], do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) [21] e a do MapBiomas [22].
No âmbito do IV Inventário Nacional [12], o mapa de uso e cobertura da terra do Brasil, elaborado a partir de imagens dos satélites Landsat em escala 1:250.000 (área mínima de 62.500 m2), foi atualizado para o ano de 2016. Nos inventários anteriores [23, 24, 25], os mapas foram elaborados para os anos de 1994, 2002, 2005 (Amazônia) e 2010. O cruzamento desses mapas permitiu compreender a dinâmica de conversão de uso e cobertura da terra para o período avaliado e as emissões de CO2 associadas. As categorias de uso da terra estabelecidas no IV Inventário Nacional seguem as propostas pelo IPCC [13], que, em função da diversidade de formações vegetais encontradas no Brasil, foram divididas e definidas de acordo com o manual técnico da vegetação brasileira desenvolvido pelo IBGE [26].
As principais mudanças ocorreram pela conversão de floresta, categoria que agrega várias fitofisionomias, nativas e plantadas, para pastagem; e pela conversão de pastagem para agricultura.
Essas conversões promoveram redução de 9% da área de floresta, equivalentes à soma das áreas dos estados de Tocantins e Piauí, e um consequente ganho nas áreas de pastagem (cerca de 330.000 km2, aumento de 21%) e agricultura (cerca de 250.000 km2, aumento 58%). Os dados produzidos pelo IV Inventário Nacional indicam as principais mudanças na dinâmica de cobertura e uso dos biomas brasileiros entre 1994 e 2016 (Tabela 1).
A projeção de um cenário com condições favoráveis à redução do desmatamento, apoio à restauração florestal e à valorização da vegetação secundária indica que o bioma Amazônia, entre 2020 e 2050, poderia reduzir a conversão de áreas para agricultura e pastagem [27]. Com isso, o aumento das florestas secundárias contribuiria para a redução das emissões de GEE devido à absorção e estoque de carbono nessas áreas em regeneração [27]. Por outro lado, as pastagens que estão subutilizadas ou abandonadas podem ser recuperadas para uso agrícola. A implementação de tecnologias de baixo carbono é uma estratégia importante para a mitigação das emissões de GEE pela agricultura [28]. Ademais, o reflorestamento e a restauração de terras e florestas degradadas, bem como a adoção de sistemas agroflorestais, de plantio direto na palha e de integração lavoura-pecuária-floresta proporcionam uso sustentável do solo e aumento da produtividade.
No Brasil, a área plantada total, considerando cultivos pe renes (cana-de-açúcar, café e algodão, principalmente) e temporários (soja e milho, principalmente), aumentou 54% entre 1994 e 2019 [29]. Esse crescimento acentuou-se a partir dos anos 2000, principalmente pela expansão do cultivo de soja e consolidação do país como um dos grandes produtores mundiais de grãos. Por ser o principal produto de exportação agrícola do Brasil, a maior parte das áreas convertidas para agricultura são utilizadas para cultivar soja. Comparada ao ano 2000, a área plantada de soja aumentou 2,6 vezes em 2019 (mais de 222.000 km2) [29]. Embora as regiões tenham aumentado a área destinada ao cultivo desse grão, é no norte do país que o avanço do cultivo ocorreu de forma extensiva e rápida. Por exemplo, entre 2000 e 2019, houve um aumento de 26 vezes da área plantada com soja, enquanto no sul e centro-oeste esse aumento foi de 2 e 3 vezes, respectivamente [29]. Cabe salientar que, a partir de 2004, o ganho na produção de soja ocorreu ao mesmo tempo em que houve uma queda significativa das áreas desmatadas nos biomas Cerrado e Amazônia - os maiores produtores do grão no Brasil [30]. Esse é um dado que contraria a ideia de que é necessário abrir novas áreas para aumentar a produção e a exportação brasileira.
DINÂMICA DE EMISSÕES DE GEE NOS BIOMAS BRASILEIROS
A conversão de vegetação nativa não protegida para agricultura tem ocorrido de forma distinta nos biomas brasileiros. Essa vegetação corresponde àquela onde a ação humana ainda não causou mudanças significativas em sua estrutura e composição. De acordo com a dinâmica apresentada no IV Inventário Nacional, dentre as possíveis conversões para agricultura, a mudança dessa vegetação nativa não protegida (chamada também de formações naturais não manejadas) para cultivos agrícolas (incluindo agricultura anual, perene e cana-de-açúcar) é a principal fonte de emissões líquidas de CO2, seguida da conversão de pastagens para agricultura.
No período de 2002 a 2010, foram emitidas 886 milhões de toneladas de CO2 devido à conversão de formações naturais não manejadas para agricultura, caindo para 444 milhões de toneladas de 2010 a 2016. Nesse último período, o Cerrado foi o bioma com maior contribuição relativa para as emissões líquidas, seguido da Amazônia e Caatinga (figura 2a). Embora as emissões por esse tipo de conversão tenham diminuído no último período analisado, o Cerrado continuou como o bioma mais vulnerável, respondendo por 61% do total em 2010-2016 (figura 2a). A magnitude dessas emissões em relação às demais conversões para agricultura indicam o papel da vegetação nativa como estoque de carbono e o impacto da expansão de áreas agrícolas, a partir da supressão da vegetação nativa, nas emissões de GEE.
As emissões decorrentes da conversão de pastagens para agricultura, predominantemente anual, (figura 2b) cresceram ao longo da série histórica (77 milhões de toneladas de CO2 em 1994-2002; 220 milhões de toneladas de CO2 em 2002-2010; 278 milhões de toneladas de CO2 em 2010-2016), ainda que em uma escala até três vezes menor em relação à conversão da vegetação nativa não protegida para agricultura. O Cerrado e a Amazônia apresentaram as maiores emissões líquidas entre 2010 e 2016. Nesses biomas o uso das pastagens é dinâmico e possivelmente, com o passar do tempo, parte dessas áreas será substituída pela agricultura.
A análise das emissões indica que a vegetação secundária é apenas um estágio transitório até que a área seja convertida novamente, comprometendo as projeções mais otimistas quanto ao status de regeneração dos biomas. Na Amazônia, as áreas de vegetação secundária são importantes para o sequestro de carbono, contudo, os dados indicam que a permanência nesse estágio não é duradoura. Desde 1994 observa-se um aumento acentuado das emissões líquidas decorrentes de conversões de vegetação secundária para agricultura (figura 2c). Já no Cerrado, as emissões pela conversão da vegetação nativa protegida para agricultura, que se mantiveram estáveis (7 milhões de toneladas de CO2) entre 1994 e 2010, mais que dobraram no período 2010-2016 (16 milhões de toneladas de CO2) como consequência do desmatamento ilegal em áreas protegidas (figura 2d).
Nos períodos avaliados, algumas áreas agrícolas foram convertidas para outros usos, como reflorestamento, pastagem e vegetação secundária. A conversão para essas classes de uso da terra resulta em potenciais sumidouros de CO2 atmosférico, porém, ainda são pouco representativas em relação às remoções totais do Brasil (4% em 2002-2010 e 2% em 2010-2016).
O mapeamento da área agrícola do IV Inventário Nacional indica que, entre 1994 e 2016, o bioma Amazônia foi o que teve maior crescimento relativo de área destinada a cultivos: em 1994, o bioma possuía 2% das áreas agrícolas brasileiras e, em 2016, possuía 9%. No bioma Cerrado, apesar de ter havido uma pequena redução da área agrícola em relação ao total no Brasil (44% em 1994 e 41% em 2016), a expansão da fronteira agrícola na região do Matopiba [31] pressiona a conversão, principalmente, de áreas de vegetação nativa. Parte da abertura de novas terras para cultivos decorre da supressão de áreas florestadas e a região responde por uma parcela importante das emissões do Cerrado [32, 33]. Nos demais biomas, essa variação foi menor e com uma pequena redução em relação à toda área agrícola brasileira: Mata Atlântica (1994 = 36%; 2016 = 33%), Caatinga (1994 = 10%; 2016 = 8%), Pampa (1994 = 8%; 2016 = 9%) e Pantanal (menos de 1% da área agrícola nos anos avaliados).
POLÍTICAS PÚBLICAS ASSOCIADAS AO USO E COBERTURA DA TERRA
Os setores de agropecuária e o uso da terra, mudança do uso da terra e florestas são estratégicos para o planejamento das ações de mitigação das emissões de GEE, pois representaram cerca de 72% do total emissões nacionais em 2019 [21].
Uma ferramenta importante para as estratégias de mitigação é o financiamento por meio de fundos que incentivam a redução do desmatamento. Criado em 2008, o Fundo Amazônia atraiu recursos para fortalecer os esforços de combate ao desmatamento na região amazônica por meio de doações condicionadas aos resultados de redução do desmatamento [34]. O Fundo Clima, criado em 2009, constitui outro importante instrumento para financiamento de projetos e estudos visando à redução de GEE e adaptação à mudança climática. A proteção das florestas e o combate ao desmatamento também foram promovidos pela estratégia nacional de crédito de carbono, REDD+, e pela implementação dos planos de ação para a prevenção e controle do desmatamento na Amazônia Legal e Cerrado (PPCDAm e PPCerado, respectivamente).
O Brasil, além das Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas (Namas) estabelecidas até 2020 pela Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), comprometeu-se no Acordo de Paris, por meio de sua Contribuição Nacional Determinada (NDC na sigla em inglês) [35], a zerar o desmatamento ilegal na Amazônia, a ampliar a participação de fontes de energia renováveis em sua matriz energética, a restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, além de restaurar 15 milhões de hectares de pastagens degradadas até 2030 [36].
Dentre as ações propostas pela PNMC, aprovada em 2010, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) lançou no mesmo ano o Plano de Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC). O objetivo do Plano ABC é melhorar a eficiência no uso de recursos naturais, aumentando a resiliência dos sistemas produtivos e das comunidades rurais, como uma estratégia de adaptação do setor às mudanças climáticas [37]. O plano estabelece e incentiva o uso de tecnologias para ganhos de produtividade com redução de custos de produção e emissões, tais como recuperação de pastagens degradadas, integração lavoura-pecuária-floresta, aumento de florestas plantadas e a fixação biológica de nitrogênio. Entre 2010 e 2018, houve aumento dos investimentos e linhas de crédito para agricultores, e as chamadas "tecnologias ABC" foram adotadas em 27,65 milhões de hectares distribuídos em 52% dos municípios brasileiros, cumprindo 77% da meta estabelecida [38].
No entanto, os investimentos no Plano ABC ainda são pouco expressivos em relação ao montante destinado anualmente como crédito rural no Plano Safra, principal incentivo do governo federal aos produtores. Em 2019, o governo federal destinou R$ 222 bilhões para o Plano Safra. Desse valor, R$ 53,4 bilhões foram reservados para o financiamento de programas, sendo apenas R$ 2 bilhões para
o Plano ABC (2%) [39]. Embora os investimentos no Plano Safra tenham dobrado em uma década (116 bilhões de reais em 2010) [40], o máximo destinado ao Plano ABC foi R$ 4,5 bilhões em 2013 e 2014 [41]. O volume de recursos do Plano ABC foi reduzido desde então e voltou ao valor de 2010 (ou seja, R$ 2 bilhões - sem correção para a inflação da época). Com previsão de finalizar as ações em 2020, o Plano ABC precisa receber mais investimentos e ganhar escala para se tornar representativo quanto à redução das emissões de GEE do setor de mudanças do uso e cobertura da terra e agricultura. Há ainda a necessidade de uma revisão dos resultados alcançados e adequação de novas metas para os próximos anos.
O FUTURO EM PERIGO
Com um arcabouço legal robusto e a aprovação da PNMC, esforços setoriais para consolidar as metas de redução das emissões de GEE e promover o fortalecimento de uma economia verde permitiram que o país avançasse na implementação da sua "agenda do clima". Entretanto, mudanças significativas na gestão e governança dessa agenda no âmbito federal, em associação com o enfraquecimento de políticas ambientais, colocam em dúvida o atingimento das metas de redução de desmatamento e de emissões de GEE [42].
As mudanças de gestão federal sobre meio ambiente e clima impactaram negativamente o funcionamento dos Fundo Amazônia e do Fundo Clima e ambos no momento encontram-se paralisados. Tal situação já é alvo de análise pelo Supremo Tribunal Federal, dados os prejuízos à condução de ações de mitigação e adaptação [43]. O PPCDAm e o PPCerrado tiveram suas atividades paralisadas em 2019 e posteriormente foram extintos. Tais programas foram substituídos pelo Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa [42].
O quadro atual traduz-se de forma crítica no recrudescimento das taxas de desmatamento na Amazônia e na degradação de outros biomas como o Pantanal, em função de incêndios em proporções históricas. Na Amazônia, os índices de desmatamento voltaram a subir e o bioma continua ameaçado pela expansão da fronteira agrícola, principalmente na região de transição com o Cerrado [44, 45], mantendo o desmatamento como a principal fonte de emissões de CO2 [42]. Um estudo que avaliou diferentes cenários concluiu que, até 2025, a Amazônia e o Cerrado podem perder anualmente mais de 27 mil e 18 mil km2, respectivamente, retornando aos índices de desmatamento observados em 2005 [46]. Em contrapartida, em um cenário onde políticas de fiscalização são executadas e a conservação florestal é economicamente incentivada, o desmatamento e as emissões anuais de CO2 na Amazônia e Cerrado reduziriam significativamente até 2030 [46].
Contudo a Amazônia e o Cerrado têm o potencial de manter alta a produção do setor agropecuário em consonância com a redução do desmatamento. O investimento em propriedades de médio e grande porte, bem como em assistência técnica a pequenos produtores, podem aumentar a produção em áreas já desmatadas e subutilizadas. Essas ações gerariam receitas para o Brasil e dariam visibilidade internacional em relação às iniciativas de redução das emissões de GEE e preservação da floresta em pé [30, 47].
No Brasil, as mudanças do uso e cobertura da terra representam uma parcela importante das emissões de CO2, sendo a conversão para agricultura uma forte pressão sobre as áreas de vegetação nativa. Nas últimas décadas, o país despontou como uma potência na exportação de commodities agrícolas. Entretanto, em alguns biomas a produção muitas vezes está relacionada à degradação ambiental. Após um período de reconhecimento mundial e otimismo em relação à capacidade de redução das emissões de GEE no Brasil, o país chamou a atenção da sociedade civil e da comunidade científica, nacional e internacional, diante dos novos rumos da governança ambiental estabelecida no país, sobretudo a partir de 2019.
O cenário atual alerta para a necessidade de o Brasil consolidar práticas agrícolas e de uso e cobertura da terra que sejam mais produtivas e sustentáveis, atreladas à gestão de terras públicas e preservação dos ecossistemas. É tempo de investir em fiscalização ambiental e promover a modernização e desenvolvimento de tecnologias agrícolas de baixo carbono, sob o custo das emissões que outrora foram evitadas serem impulsionadas em um curto espaço de tempo.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a Márcio Rojas do MCTI pela disponibilização dos dados do IV Inventário Nacional e à Rede Clima, pela coordenação técnica-científica e concessão de bolsas de pesquisa. Agradecemos também a Mauro Meirelles e aos membros da equipe do MCTI pelas frutíferas discussões sobre o tema do artigo e à Agrosatélite Geotecnologia Aplicada Ltda e equipe responsável pelo mapeamento do uso e cobertura da terra.
NOTAS E REFERÊNCIAS
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3. Hoegh-Guldberg, O. "Impacts of 1.5ºC Global Warming on Natural and Human Systems". Global warming of 1.5°C. IPCC, Switzerland. 2018.
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5. Hoegh-Guldberg, O. "The human imperative of stabilizing global climate change at 1.5°C". Science. vol. 365, n. 1263, 2019.
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8. Saatchi, S. S. et al. "Benchmark map of forest carbon stocks in tropical regions across three continents". Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). vol. 108, n. 24, p. 9899 - 9904, 2011.
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17. Projeto de Monitoramento do Desmatamento nos Biomas Brasileiros por Satélite (PMDBBS). Disponível em: mma.gov.br/projeto-de-monitoramento-do-desmatamento-nos-biomas-brasileiros-por-sat%C3%A9lite-pmdbbs.html. Acesso em: nov. 2020.
18. Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig). Monitoramento territorial e ambiental dos biomas brasileiros e respectivas paisagens naturais e antrópicas. Disponível em: lapig.iesa.ufg.br/lapig/index.php. Acesso em: nov. 2020.
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