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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.74 no.3 São Paulo July/Sept. 2022
http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220048
OPINIÃO
As contribuições dos povos indígenas para o desenvolvimento da ciência no Brasil: os povos originários colaboram de diversas formas com a sociedade brasileira desde a chegada dos portugueses até os dias de hoje
Gersem Baniwa
Indígena do povo Baniwa da Terra Indígena Alto Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira (AM). É professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Foi coordenador geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC), diretor-presidente do Centro Indígena de Estudos e Pesquisa (CINEP) e professor do curso de Licenciatura Específica Formação de Professores Indígenas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Introdução
No território hoje conhecido como Brasil estima-se que viviam mais de 12 milhões de indígenas, de mais de 1.600 povos ou etnias e mais de 1.400 línguas faladas. São sociedades autóctones das Américas que desenvolveram e continuam desenvolvendo civilizações complexas, autônomas e altamente sustentáveis, cujas histórias não acabaram, porque continuam vivas e cada vez mais enraizadas na sociedade de hoje.
As identidades e culturas indígenas têm conservado suas singularidades em meio ao mundo globalizado, sem isolamento. Conservam o papel socializador e educador da família, da comunidade, do povo, dos anciãos. Valorizam, transmitem e aplicam suas sabedorias e valores ancestrais, respeitando a natureza. As culturas indígenas também expressam os grandes valores universais. Nas solenidades das festas e dos rituais, no refinamento e beleza das vestimentas, na pintura corporal, na educação comunitária dos filhos, na concepção sagrada do território, da natureza e do cosmos, elas manifestam a consciência ancestral, histórica, moral, estética, ética, religiosa e social. A diversidade de visões de mundo e dos modos de organização da vida são transmitidos de pais para filhos e de geração para geração.
Da perspectiva dos povos originários da América, a história contada oficialmente sobre os 522 anos de Brasil está baseada em muitas inverdades criadas pelos colonizadores para atender seus interesses geopolíticos e de acordo com suas cosmovisões. Para os povos originários, o que aconteceu em 22 de abril de 1500, na região de Porto Seguro, na Bahia, foi uma invasão portuguesa aos seus territórios, seguido de declaração de guerra com fins de extermínio que ainda não acabou.
Quando Pedro Álvares Cabral desembarcou nas Terras dos Tupi e dos Guarani, estes estavam habitando o litoral e se beneficiando de um nicho ecológico abundante de peixes, tartarugas, moluscos, crustáceos e sal, proteínas imprescindíveis para a alimentação. Em 1500, os Tupi ocupavam uma parte importante da zona costeira compreendida atualmente entre o Ceará e a Cananeia (São Paulo) e os Guarani dominavam a faixa litorânea entre a ilha de Cananeia e a Lagoa dos Patos no Rio Grande do Sul, além de importantes regiões no interior [1].
A necessidade de encontrar justificativas civilizatórias, morais e religiosas para exterminar os nativos levou os colonizadores a instrumentalizarem fundamentos cristãos etnocêntricos, ora os desumanizando, ora inferiorizando suas culturas, línguas e saberes, propagando ideias preconceituosas de práticas que seriam bárbaras e anticristãs, tais como pagãos, antropófagos, canibais, degredados, degenerados e outras. Tais estereótipos passaram a justificar a escravidão, as "guerras justas", os massacres, o genocídio de milhões de pessoas.
Com a Independência do Brasil em 1822, as elites iniciaram a construção das bases de um Estado Nacional, marcado pelo nacionalismo e pela afirmação da soberania política nacional. O indígena, filho originário da terra, tornou-se legítimo representante simbólico da nacionalidade, pelo menos no plano literário romântico. Eleito como símbolo da nacionalidade, expressão do patriotismo, o indígena foi representado na Literatura, nas Artes Plásticas, nos discursos políticos e de intelectuais [2]. Cantados e exaltados, os indígenas tiveram suas línguas estudadas até pelo Imperador D. Pedro II. O próprio manto do Imperador era um trabalho indígena, confeccionado com penas de papos de tucanos [3], exaltando a bravura indígena, a resistência e a morte heroica.
Nos séculos XVIII e XIX duas imagens contraditórias sobre os indígenas predominavam no imaginário da sociedade brasileira. Por um lado, uma imagem positiva e romântica que considerava o indígena como "bom selvagem", símbolo de pureza ou de ingenuidade e protetor da natureza, e, por outro lado, uma visão negativa que considerava o indígena como "mau selvagem", "atrasado", "bárbaro" que deveria progredir aos padrões da civilização europeia ou deveria ser eliminado.
O modelo de política indigenista no Brasil sofre desde sua origem profundas contradições: enquanto se propunha a respeitar as terras e a cultura indígena, agia buscando integrar e assimilar os indígenas, transferindo e liberando seus territórios para colonização, ao mesmo tempo em que reprimia práticas tradicionais, as línguas indígenas e impunha uma pedagogia racista que devorou saberes, culturas e valores indígenas. Em 1973 foi criado o Estatuto do Índio através da Lei no 6.001 que passou a regular a situação jurídica dos indígenas, reafirmando a ideologia civilizacionalista e assimilacionista. As políticas adotadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pela Fundação Nacional do Índio (Funai) foram fortemente marcadas pela ideia de incapacidade dos índios.
Ao mesmo tempo em que o Estado reafirmava a incapacidade indígena, surgiam tentativas de extinção dos índios para fins de apropriação de suas terras. O Estado brasileiro buscou várias artimanhas para perseguir este objetivo. Uma das mais conhecidas foi a tentativa de definição de critérios de indianidade para estabelecer quem era índio e quem deveria deixar de ser índio através de um procedimento administrativo. Houve agentes públicos e intelectuais que tentaram realizar exames de sangue para definirem o grau de aculturação ou integração dos índios.
As décadas de 1960 e 1970 ficaram marcadas pela ameaça eminente de desaparecimento dos povos indígenas no Brasil, quando a população chegou a menos de 70 mil pessoas, dos mais de 12 milhões encontrados pelos portugueses em 1500. O primeiro contato dos indígenas com os europeus ocasionou imensa mortalidade por ser a barreira imunológica desfavorável aos índios. As epidemias trazidas e propagadas pelos europeus entre os nativos foram mortais, associadas à fome nas populosas aldeias jesuíticas [4]. Outros milhares de indígenas foram dizimados pelas guerras.
A partir dos anos 1970 os povos indígenas começam a ser vistos por outra perspectiva, como sujeitos e protagonistas de suas histórias, destinos e direitos. Em 2000, dados do Censo Demográfico surpreenderam a todos, revelando uma população de 734.127 autodeclarados indígenas, mais do que o dobro identificado em 1991, de 294.131 [5]. Em 2020 a população indígena havia alcançado 1.100 mil pessoas. Mas quanto a isso, Carneiro da Cunha afirma que nunca se voltará à situação de 1500, quando a densidade demográfica da várzea amazônica era comparável à da península ibérica: 14,6 habitantes por km2 na várzea amazônica [6] contra 17 habitantes por km2 na Espanha e Portugal [7].
Mas a concepção desenvolvimentista que vê os índios como estorvo, empecilho e obstáculo permanece viva. Os argumentos praticamente são os mesmos: a necessidade de garantir o domínio sobre as terras e suas riquezas e levar o progresso e a civilização aos povos indígenas considerados sem civilização e sem cultura. Aqueles que resistem em abandonar suas terras ou que contrapõem aos interesses do governo devem ser removidos, porque os interesses da nação estão acima de todos [8].
Crescem ameaças institucionais no Congresso Nacional, por meio de projetos de leis denominados de "pacote da morte". São dois projetos de leis, um que trata do Marco Temporal paras as demarcações de terras indígenas e outro que trata da abertura de terras indígenas para a exploração mineral. O marco temporal põe em jogo o reconhecimento do mais fundamental dos direitos humanos dos povos indígenas: o direito à terra. De um lado, a chamada tese do Indigenato, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial, reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário, ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". Do outro lado, há uma proposta restritiva que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do "marco temporal", afirmando que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob suas posses no dia 05 de outubro de 1988 (dia da promulgação da atual Constituição Federal), ou que naquela data estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Os povos indígenas consideram a tese injusta e perversa, pois legaliza e legitima as violências a que foram submetidos até a promulgação da Constituição Federal de 1988, em especial durante a ditadura militar e que suas histórias, vidas e existências não começam em 1988. A tese ignora o fato que até 1988 os povos indígenas eram tutelados do Estado e não tinham autonomia para lutar juridicamente por seus direitos. O próprio Estado aplicou artimanhas de pressão, opressão e violência para expulsar e deslocar povos indígenas de suas terras tradicionais.
O PL 191/2020 visa regulamentar a exploração mineral, madeireira, hídrica e agropecuária em terras indígenas. Atualmente, mesmo com a mineração proibida em terras indígenas em muitas delas, há inúmeras invasões de garimpeiros que praticam atividades de mineração de forma ilegal, violenta e criminosa, sob a omissão, conivência ou mesmo apoio e incentivo explícito do governo.
As contribuições dos povos indígenas à sociedade brasileira
As contribuições dos povos indígenas à sociedade brasileira tiveram início logo após a chegada dos portugueses às terras brasileiras. Os índios ensinaram as técnicas de sobrevivência na selva e como lidar com várias situações perigosas nas florestas ou como se orientar nas expedições realizadas. Em todas as expedições empreendidas pelos colonizadores estavam os nativos como guias e prestadores de serviços, assim como aliados na expulsão de outros invasores estrangeiros ou como mão de obra nas frentes de expansão agrícola ou extractivista (Figura 1) [9].
Nas primeiras décadas do século XVI os indígenas já trocavam o pau-brasil, madeira corante valorizada na Europa, por mercadorias com os colonizadores portugueses. Milhares de toras foram transportadas para Portugal. Os indígenas tornaram-se também a principal mão de obra na edificação de prédios e igrejas. Mesmo em meados do século XVII, quando a mão de obra negra já predominava nos engenhos, os indígenas passaram à prática de cultivo de alimentos nos arredores dos engenhos.
Hoje é aceito oficialmente o fato que o povo brasileiro é formado pela junção de três raças: a indígena, a branca e a negra. Mas não foi somente no aspecto biológico que os índios contribuíram para a formação do povo brasileiro, mas principalmente do ponto de vista cultural e epistêmico, começando com a própria língua portuguesa, que acabou incorporando várias palavras, conceitos e expressões de línguas indígenas. Há centenas de nomes de lugares (Iguaçu, Itaquaquecetuba, Paranapanema), de cidades (Manaus, Curitiba, Cuiabá) de pessoas (Ubiratan, Tupinambá, Raoni), de ruas e até de empresas (Aviação Xavante, Empresa Xingu).
Os índios, através de sua forte ligação com a floresta, descobriram nela uma variedade de alimentos, como a mandioca (e suas variações como a farinha, o pirão, a tapioca, o beiju e o mingau), o caju e o guaraná, utilizados até hoje na alimentação. Esse conhecimento em relação às espécies nativas é fruto de milhares de anos de conhecimento da floresta. Desenvolveram o cultivo de centenas de espécies como o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o tomate, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná e outros. Os conhecimentos culinários dos povos indígenas estão presentes na vida dos brasileiros.
Outro legado dos povos indígenas são os seus milenares conhecimentos medicinais. Alguns estudiosos estimam que os índios do Brasil já chegaram a dominar uma cifra de mais de 200.000 espécies de plantas medicinais. Foram os indígenas da América que dominaram, ao longo de séculos ou mesmo de milênios, conhecimentos sobre os produtos anestésicos, que hoje são fundamentais para os processos cirúrgicos praticados pela medicina moderna. A medicina tradicional possui um valor incalculável com potenciais para novas descobertas sobre os mistérios da natureza e da vida e que podem representar soluções para muitos males que hoje afligem a humanidade e os homens da ciência moderna.
Existem também as riquezas estratégicas que se encontram nos territórios indígenas, dos quais eles são guardiões e defensores. A principal delas é a megabiodiversidade existente em suas terras, que representam 13% do território brasileiro preservado. Fotos de satélite mostram que as terras indígenas são ilhas de florestas verdes rodeadas por pastos e cultivos de monoculturas. Esta não é apenas uma riqueza dos índios, mas de todos os brasileiros, na medida em que são florestas que contribuem para amenizar os desequilíbrios ambientais do planeta nos tempos atuais.
Os índios sempre foram considerados aptos para trabalhos militares, muitos sendo arregimentados pelas Forças Armadas para participar de inúmeros combates, como foi contra o Paraguai. Em algumas regiões da fronteira amazônica, jovens indígenas formam maioria nas corporações militares, elogiados e reconhecidos pelos seus comandantes por suas habilidades diferenciadas nas tarefas e exercícios diários. Os povos indígenas contribuíram para a conformação e defesa das fronteiras do Brasil. É o caso dos povos Macuxi e Wapichana, chamados no século XVIII de "muralhas do sertão". O Barão de Rio Branco e Joaquim Nabuco fundamentaram na presença destes povos e nas suas relações com os portugueses a reivindicação brasileira na disputa de limites com a então Guiana inglesa. Manuela Carneiro da Cunha reconhece que, da perspectiva da justiça histórica, é vergonhoso se contestar a conveniência de povos indígenas povoarem as fronteiras amazônicas que eles ajudaram a conquistar, consolidar e das quais continuam sendo guardiões [4].
Os povos indígenas brasileiros constituem ainda uma riqueza cultural invejável para muitos países e continentes do mundo. São 305 povos étnicos falando 275 línguas. 305 povos é bem mais que as 234 etnias existentes em todo o continente europeu. São poucos os países que possuem tamanha diversidade sociocultural e étnica. Os povos indígenas, além de herdeiros de histórias e de civilizações milenares, ajudaram e continuam ajudando a escrever e a construir a história do Brasil.
Nas últimas três décadas mais de 100 mil indígenas ingressaram no ensino superior e passaram a contribuir diretamente com a ciência acadêmica com suas formas, regimes e sistemas de conhecimento e promovendo a circulação e a validação de outros saberes, pautados em outras bases cosmológicas, ontológicas, filosóficas e epistemológicas. Os povos indígenas compartilham com o mundo, a partir da universidade, seus saberes, seus valores comunitários, suas cosmologias, suas visões de mundo e seus modos de ser, viver e estar no mundo. Assim, os povos indígenas estão contribuindo na construção de uma universidade que cada vez mais acolhe, agrega, soma, promove e expressa o universo ilimitado e plural de saberes, valores e sujeitos de conhecimentos. Uma universidade capaz de construir pontes, trilhas e horizontes civilizatórios que nos entrelaçam com as nossas diferenças e diversidades de existências.
Durante séculos de contato com os povos europeus, os povos indígenas não foram apenas vítimas da colonização. Eles também colonizaram os colonizadores com suas línguas, culturas, valores, saberes e fazeres e protagonizaram intercasamentos com não indígenas. Há quem acredita (eu acredito) que os povos indígenas inspiraram os ideais da Revolução Francesa com seus modos solidários, igualitários, comunitários, livres e autodeterminados de vida. Os povos indígenas são povos com suas histórias e da História que permanentemente (re)afirmam suas contemporaneidades e suas autoctonias em seus territórios e na vida nacional e global.
Referências
1. COUTO, J. A Construção do Brasil. Lisboa: Editora Cosmos, 1998.
2. SILVA E PENHA, S. A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da Lei no 11.645/2008. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.
3. AMOROSO, M. R.; SAEZ, O. C. Filhos do Norte: o indigenismo em Gonçalves Dias e Capistrano de Abreu. São Paulo, MEC/MARI/UNESCO, 1995.
4. CUNHA, M. C. O futuro da questão indígena. Estudos Avançados, v. 8, n. 20, 1994.
5. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Coordenação de População e Indicadores Sociais. Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos censos demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2005.
6. DENEVAN, W. The aboriginal population of Amazonia. In: DENEVAN, W. (ed.) The native population of the Americas. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1976, p. 205-235.
7. BRUDEL, F. Civilization materiéle, économic et capitalisme XV e XVIII e siécle. Tome I. Paris: Armand Colin, 1979.
8. BANIWA, G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula/Laced, 2019.
9. LUCIANO, G. J. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: SECAD/MEC/LACED/Museu Nacional, 2006.