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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.76 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2024

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240013 

    ENTREVISTA

     

    Além da Ciência: retrato em família de César Lattes

     

     

    Chris Bueno

    Jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre Ciência)

     

     

    Por trás do renomado físico César Lattes, conhecido por suas contribuições revolucionárias na física de partículas, há um lado muitas vezes esquecido: o homem de família dedicado e amoroso. Engana-se quem pensa que, mesmo imerso em sua intensa vida profissional, Lattes se distanciou de sua amada Martha Siqueira Netto e de suas queridas filhas Maria Carolina, Maria Cristina, Maria Lúcia e Maria Tereza. Em cada passo de sua jornada científica, ele carregava consigo o amor e a presença forte que marcavam sua relação com a família. O físico não poupava esforços para garantir o bem-estar da família e para proporcionar às suas filhas o máximo de acesso ao conhecimento. Ele valorizava cada conquista delas, mesmo que parecesse trivial aos olhos de outros. Além disso, Lattes cultivava o apreço da família pela cultura brasileira, especialmente pela música, enriquecendo ainda mais o ambiente familiar com arte e sabedoria. Nesta entrevista exclusiva, as filhas de César Lattes nos conduzem por um retrato íntimo e emocionante da vida familiar do renomado cientista. Juntas, elas compartilham memórias e revelam o lado humano por trás do gênio que marcou a história da ciência brasileira.

    Confira a entrevista!

     

    Ciência & Cultura - César Lattes é um dos maiores cientistas brasileiros, e sua pesquisa tem imenso impacto nacional e internacional. Mas como ele era em família? Quais características ou eventos ficaram mais marcantes na memória de vocês?

    Maria Cristina Lattes - Papai morou em vários lugares, algumas vezes nós acompanhamos. A família do papai é daqui de São Paulo e a família da mamãe é de Recife. Fomos para o Rio de Janeiro, depois viemos para Campinas, quando foi criada a Unicamp. Mas ainda nem existia a Unicamp fisicamente, na verdade. Existiam alguns prédios que eram usados pelas faculdades de medicina, todos espalhados. E nós viemos para cá. (Figura 1)

     

     

    Maria Lúcia Lattes - Ele tinha uma questão muito interessante: qualquer profissão que a pessoa exercesse, ele saberia muita coisa daquela profissão. Por exemplo, eu acho que ele sabia de psicologia, em termos de autor, mais do que eu. Uma vez ele se encontrou com a minha cunhada, que é bailarina, e ela falou: "eu nunca vi uma pessoa entender tanto de balé que nem o seu pai". Então, qualquer profissão que você tivesse, ele se interessaria e saberia muito a respeito. Tinha que tomar cuidado, às vezes, para que você não se sentisse ameaçada e constrangida [risos]. Mas, via de regra, eu acho que ele estimulou todas nós em todas as profissões que abraçamos.

    "Ele sempre estimulou nossa curiosidade, aprendizado, cultura, de uma forma muito natural."

    Maria Cristina Lattes - Sem contar que ele nunca exigiu que tivéssemos nível universitário. Para ele era uma coisa natural você procurar esse caminho. Eu me lembro que quando comecei a trabalhar como técnica em Química, estava feliz da vida, porque com 19 anos estava ganhando um dinheirinho. Mas ele falou "só que daqui a pouco você vai enjoar, porque um trabalho técnico não vai te solicitar tanto". Só que ele nunca falou para mim: "você tem que fazer faculdade". Depois acabei percebendo que queria fazer um curso superior. A Carol, nossa irmã mais velha, sempre teve interesse em arte. E ele incentivava que ela tivesse contato e conhecimento com tudo relacionado à arte. Não existia uma pressão em relação a isso. Era natural.

    Maria Tereza Lattes - Fazia parte do dia a dia que fôssemos para a universidade. Não era uma imposição, uma coisa obrigatória.

    C&C - Em várias entrevistas e depoimentos de amigo consta que ele não media esforços para que as filhas tivessem o máximo de acesso ao conhecimento, valorizando tudo o que elas produziam, e ainda apreciassem a produção cultural brasileira, em especial a música. Poderiam comentar?

    MCL - Ele sempre estimulou nossa curiosidade, aprendizado, cultura. Engraçado que de uma forma muito natural, nós não percebíamos que estávamos sendo incentivadas. Isso era natural. Ele não dizia "você precisa ler isso, você precisa estudar aquilo". Ele nunca impôs nada. Em termos de cultura, tinha uma coisa que acho interessante: podíamos ler o que quiséssemos, desde que não fosse fotonovela. Vocês se lembram disso?

    MLL - Lembro. Fotonovela não podia. Nem aqueles livrinhos de banca, ele também não gostava [risos]. Agora, tinha uma coisa que ele falava que era muito interessante: depois que voltei para morar em Campinas, o meu primeiro consultório era debaixo do quarto dele. E qualquer livro que eu comprasse, ele dizia: "sua educação eu vou pagar até o fim". Então, ele normalmente pagava todos os meus livros. O que eu fosse comprar, era ele quem pagava.

    MTL - Sim. Para qualquer neto, qualquer neta, ele sempre fez isso. Tenho livros e livros e livros até hoje por causa disso.

    MCL - Eu só ganhei enciclopédias! [risos] Mas ganhei algumas coisas interessantes, como Júlio Verne, Jorge Amado. Era muito mesclado.

    C&C - Muitos alunos dele me disseram que realmente ele não impunha o aprendizado, nem entregava nada pronto: ele ia conversando, estimulando a construir o raciocínio...

    MTL - É, ele ensinava estimulando o raciocínio. Ele falava: "agora me ensine o que foi que eu te expliquei."

    MCL - Eu achava física muito interessante e fácil, mas era uma questão também de olhar as coisas com muita tranquilidade. Ele não mistificava a física. Então, se você tinha alguma dúvida, você perguntava, ele te respondia. E as minhas dúvidas, pelo menos, chegaram só até o colegial, porque depois segui outro caminho... Então eram coisas que, quando olhamos para trás, vemos que era superficial. O que era complicado é que quando eu tinha que estudar acelerada para alguma coisa, eu preferia perguntar para a minha mãe, porque ele nunca me deixou decorar uma fórmula. Então, se eu perguntava para ele alguma coisa, ele fazia com que eu entendesse a forma para chegar até lá. Ele dizia: "depois você pode decorar, mas você tem que saber chegar lá". (Figura 2).

     

     

    "Ele era um grande patriota. Para ele era inadmissível que a pessoa não representasse o próprio país."

    C&C - Sem contar que tinha os cachorros também, que sempre o acompanhavam em aulas, cursos, conferências...

    MLL - Papai foi de vanguarda nisso! Ele ia para a Unicamp levando o cachorro, viajava levando o cachorro, levava o cachorro para o hotel... O cachorro que mais durou com ele chamava Arthur da Costa e Silva, em homenagem ao nosso presidente. Mas tinha o apelido de Gaúcho. Era um perdigueiro meio vira-lata que o acompanhava em defesa de tese, andava pela Unicamp...

    MTL - Os nomes eram sempre peculiares: tinha a Larissa e o Gorbatchov, o Salomão, o Chico Buarque de Holanda...

    MCL - Os nomes dizem muito do humor dele! [risos]

    C&C - E como isso influenciou a escolha profissional de vocês? Alguma de vocês é física?

    MCL - Não! Nenhuma de nós seguiu esse caminho!

    MTL - A Carol era artista plástica, eu sou arquiteta, a Cristina se formou Técnica em Química, mas depois fez faculdade de Administração, e a Maria Lúcia é psicóloga.

    MCL - Acho que, de certa forma, nós tivemos sorte de não ter o pendor para física, porque, sendo filhas dele, eu acho que seria muito "pesado" ser filha dele e ter a profissão de físico. Seria complicado.

    C&C - Falando da profissão dele, quando vocês eram menores, como vocês viam a carreira dele? Como entendiam o que o pai de vocês estava fazendo?

    MLL - Eu não tinha a menor dimensão.

    MTL - Eu achava muito diferente dos pais das minhas amigas.

    MCL - Eu achava até que ele trabalhava pouco, porque ele não tinha que sair ou voltar em um horário fixo. [risos]

    MLL - Eu desconfiava dele também. Eu falava para minhas amigas: mas como assim seu pai sai todo dia para trabalhar? Porque o meu ficava em casa.

    MCL - Ele trabalhava em casa e, muitas vezes, noites adentro. Então, nós não tínhamos essa rotina do pai que sai todo dia para um escritório, por exemplo. Era um ritmo muito peculiar. Só que quando você faz parte, você não percebe isso. Aquele é o seu normal.

    MTL - Nunca soubemos que ele era famoso. Sabíamos que ele tinha uma certa importância, mas famoso, quem está mostrando para nós agora são todos vocês.

    MLL - Quando viemos para Campinas, teve um certo rebuliço, foi jornalista lá no hotel entrevistar ele. Mas eu não tinha a dimensão do que era.

    MTL - Eu não achava que aquilo era só para nós, eu achava que com todo mundo era assim.

    MCL - Eu também achava isso, que fazia parte da vida da maioria das pessoas. Ainda bem! Já pensou se tivéssemos essa consciência? [risos] Além disso, ele era um grande patriota. Para ele era inadmissível que a pessoa não representasse o próprio país. Então, mesmo em oportunidades de trabalho que ele pôde desenvolver com outras equipes de outros países, ele fazia questão de ter os créditos para o Brasil.

    "Para mim, independente de ser o meu pai, eu me deparei com um personagem interessantíssimo e colocado na história de uma maneira singular."

     

    C&C - Vocês estão preparando um livro para celebrar o centenário de Lattes. Podem falar um pouquinho sobre a obra?

    MCL - Estou organizando com a concordância e a colaboração das irmãs. Tudo começou quando mexi nas fotos de família, guardadas principalmente por ele. E aí comecei a tomar consciência do personagem que era o papai. Para mim, independente de ser o meu pai, eu me deparei com um personagem interessantíssimo e colocado na história de uma maneira singular. Quando comecei a mexer, percebi a importância dele na história da física, e como foi tudo isso ambientado em uma época tão turbulenta no Brasil. Então, isso foi aumentando o projeto, que era para ser uma coisa pequena, doméstica, só que eram tantas informações, tantas coisas que seriam importantes de serem colocadas, que o livro tomou uma dimensão maior. Meu genro é editor e começou a coordenar e a me ajudar a desenvolver esse projeto. Então, vai ser um livro a respeito do papai, que está sendo desenvolvido com a ajuda de todo mundo, e que nasceu não de uma cobrança, mas de uma vontade de ter esse registro.

    C&C - No processo de pesquisa para o livro, e de todas essas comemorações que estão ocorrendo, quais descobertas e informações mais lhes chamaram a atenção?

    MLL - Acho que está sendo divertido relembrar dele e de suas histórias. Papai tinha um humor bem irreverente, bem pitoresco. Então, para mim, me divertiu um bocado algumas histórias dele que lembramos juntas. Assim, para mim o que mais pegou foi essa parte afetiva. E confesso que me surpreendo, porque entendo raso o que ele fez. Acho muito legal, entendo a importância, mas não consigo explicar. Me dá umas lufadas de orgulho rever o que ele fez com um distanciamento, agora que sou mais velha. E a parte dele como pai, como pessoa, me diverte. Porque ele era irreverente, eu gosto de irreverência.

    MCL - Tem horas que a emoção toma conta, viu? Para mim, ele é uma das pessoas mais generosas que eu conheço. Ele nunca teve um olhar crítico em relação a nenhuma pessoa, desde que a pessoa estivesse fazendo o possível. Eu nunca vi meu pai dizer que alguém era "burro". Ele sempre respeitou o ser humano naquilo que a pessoa podia fazer.

    MTL - O que oferecia de melhor para ele estava ótimo. Ele conseguia buscar na pessoa aquilo que ela estava oferecendo, e para ele aquilo era motivo de orgulho. Ele tinha amigos de várias classes sociais, intelectuais, e tratava todos da mesma forma. Não delicado, porque ele não era uma pessoa exatamente delicada. Mas era gentil. E jamais em cima do pedestal, sempre pé no chão.

    C&C - Por fim, qual é o maior legado que ele deixou para você?

    MTL - Para mim, foi ser uma pessoa correta. Nada a mais, nada a menos. Ele me ensinou isso.

    MLL - Acho que o maior legado dele foi despertar o desejo de aprender em nós, estimulando a curiosidade intelectual. Ele era muito curioso. Essa questão de você ser curioso e desejar aprender, eu acho que foi um legado importante que ele me deixou. E também ter nos preservado, de certa forma, de tudo aquilo. Nós só pudemos conhecer, de fato, a dimensão de quem ele era depois. Não era isso que era importante para ele. O importante para ele era ser um pai que nos formasse bem.

    MCL - Para mim, o legado foi o amor familiar. Independente de qualquer dificuldade de relacionamento, ele deixou uma família com uma estrutura de amor que não vemos em qualquer lugar.