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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.76 no.2 São Paulo Apr./June 2024

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240036 

    ARTIGO

     

    Malária, maleita, paludismo

     

     

    Erney Plessmann Camargo

    Médico, membro da Academia Brasileira de Ciências, professor titular de parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e diretor do Instituto Butantan

     

     


    RESUMO

    A malária é um flagelo antigo que afeta cerca de 300 milhões de pessoas anualmente, causando 1,5 a 2 milhões de mortes, principalmente na África, onde quase 3 mil crianças morrem diariamente. A doença custa à África aproximadamente US$2 bilhões por ano e mata mais do que a AIDS e qualquer outra doença infecciosa. Presente em mais de 90 países, como Índia, Brasil, Afeganistão e China, a malária é predominante em regiões subdesenvolvidas, tendo desaparecido da Europa e América do Norte. A maioria dos casos em países desenvolvidos são importados. Esse sofrimento é causado por um protozoário e um mosquito.

    Palavras-chave: Malária; Maleita; Paludismo; Doenças Tropicais.


     

     

    A malária sempre foi, desde a Antiguidade, um dos principais flagelos da humanidade. Atualmente, pelo menos 300 milhões de pessoas contraem malária por ano em todo o mundo. Destas, cerca de 1,5 a 2 milhões morrem. Quase 3 mil crianças morrem por dia de malária na África. Os custos diretos e indiretos da malária para a África são da ordem de US$ 2 bilhões por ano. A doença mata, anualmente, duas vezes mais que a AIDS e muito mais que qualquer outra doença infecciosa.

    A malária está presente, também, em mais de 90 países, embora com prevalência diferente. Os mais comprometidos são Índia, Brasil (cerca de 300 mil casos/ano), Afeganistão e países asiáticos, incluindo a China.

    A malária é tipicamente uma doença do mundo subdesenvolvido. Já desapareceu da Europa e da América do Norte, onde vicejou até a metade do século XX. Na última década, apenas cerca de 400 casos anuais de malária foram registrados no Canadá, e 900 nos Estados Unidos. Porém, a grande maioria destes casos eram importados; apenas uma dezena se originando no próprio país, a maioria resultante de transfusões de sangue.

    Todo esse sofrimento a humanidade deve a dois inimigos que se aliaram há milênios para seviciar a espécie humana: um protozoário e um mosquito.

     

    A doença e sua transmissão

    Também chamada de maleita, impaludismo, paludismo e febre terçã ou quartã, a malária apresenta sintomatologia típica, quase inconfundível [1]. Manifesta-se por episódios de calafrios, seguidos de febre alta, que duram de 3 a 4 horas. Esses episódios são, em geral, acompanhados de profundo mal-estar, náuseas, cefaleias e dores articulares. Passada a crise, o paciente pode retomar sua vida habitual. Mas, após um ou dois dias, o quadro calafrio/febre retorna e se repete por semanas até que o paciente, não tratado, sare espontaneamente ou morra em meio a complicações renais, pulmonares e coma cerebral. Tratado a tempo, só excepcionalmente morre-se de malária.

    O intervalo entre os episódios, a gravidade da doença e seu grau de mortalidade dependem de muitos fatores, mas, principalmente, da espécie de parasita causador da malária. Existe um espectro enorme de formas clínicas de malária, umas mais graves, outras mais brandas e outras até sem sintomas. Quando sintomática, a característica principal da maleita é a sua notória intermitência.

    A malária é causada por protozoários, que se multiplicam nos glóbulos vermelhos do sangue do homem. As espécies causadoras da malária humana são quatro: Plasmodium vivax, P. falciparum, P. malariae e P. ovale. O falciparum é responsável por uma forma muito grave de malária, outrora chamada de terçã maligna. Das mortes anuais devidas à malária, mais de 95% são causadas pelo falciparum. O vivax causa uma doença mais branda, a terçã benigna, que, no entanto, tem o inconveniente de retornar após ter sido aparentemente curada. Isso porque nas células do fígado do homem infectado podem permanecer algumas formas em hibernação [1].

    Poções contra a malária são conhecidas na China há 30 séculos. O princípio ativo dessas poções, a artemisinina, é hoje usada como droga importante no tratamento da malária. Os incas, no século XVI, e depois deles o mundo todo, já usavam o extrato da casca da quina para o tratamento da malária. O quinino é o princípio ativo da quina de uso contemporâneo. Vários medicamentos foram sintetizados, ao longo dos anos, pela indústria farmacêutica. Cada um tem uma indicação preferencial segundo o tipo de plasmódio, idade do paciente, gravidade da doença, gestação, entre outros fatores. Mas todos contribuem para que o tratamento atual da malária seja fácil e eficaz. Com tratamento adequado e em tempo hábil, ninguém deveria morrer hoje de malária.

    O homem é o único hospedeiro em natureza das espécies de plasmódio, transmitidas de homem a homem pela picada de mosquitos hematófagos (pernilongos, carapanãs) que albergam as formas infectantes do plasmódio em suas glândulas salivares (Figura 1).

     

     

    A ocorrência de malária está intimamente associada à presença e proliferação de mosquitos do gênero Anopheles. São muitíssimas as espécies de Anopheles, cada uma com suas preferências evolutivas e alimentares. Todas elas põem seus ovos em coleções d'água, mas algumas preferem águas paradas, outras preferem águas limpas de fluxo lento, ou sujas, ou de fluxo rápido. Algumas exigem muito calor, muitas gostam de temperaturas amenas. As fêmeas alimentam-se sempre de sangue e podem ser permissivas ou exigentes quanto ao fornecedor desse sangue, picando todo tipo de animal ou um tipo de animal apenas. Os machos alimentam-se de fluidos de plantas e flores e, portanto, não transmitem a malária (Figura 2).

     

     

    Cada região do mundo tem sua fauna específica de Anopheles e a epidemiologia da malária depende da composição dessa fauna. Existem mais de 350 espécies de Anopheles em todo o mundo, a maioria permitindo a proliferação de plasmódios em seu organismo, em laboratório, mas apenas cerca de 30 a 50 são capazes de transmitir, em natureza, os plasmódios humanos. No Brasil, os mosquitos transmissores da malária nas regiões costeiras, e particularmente na Mata Atlântica, eram o A. cruzi, o A. bellator e o A. aquasalis. Hoje, estes mosquitos têm importância epidemiológica apenas potencial. Mas, por todo o interior do país, incluídas as capitais, a principal espécie transmissora sempre foi o Anopheles darlingi que, hoje, ausente das áreas urbanizadas brasileiras, está restrito à Amazônia.

     

    A malária na história e no mundo contemporâneo

    A característica intermitente da febre malárica permitiu identificar sua presença em escritos chineses e egípcios de 3 mil anos a.C. Nos escritos médicos do Brasil, é possível identificá-la já no século XVI e, daí por diante, em toda a história médica brasileira [2,3,4], embora não existam, até o século XIX, registros quantitativos sobre sua prevalência.

    Estima-se que no início do século XX, em todo o mundo, a incidência e a mortalidade por malária fossem, em percentagem, cerca de 10 vezes maior do que a atual. Mesmo quando não fosse letal, a malária, como dizia Sir Patrick Manson em 1900 [5], tornava o homem "inapto para o trabalho e para os prazeres da vida".

    Em 1900, a maior parte (> 80%) da superfície terrestre era afligida pela malária, que só poupava as regiões polares e subpolares. Nem os países mais avançados da Europa estavam a salvo. Os países mediterrâneos, mormente a Itália, eram os principais centros malarígenos do continente europeu. Nas primeiras décadas do século XX, em parte como consequência da Primeira Grande Guerra, que privou de recursos as colônias inglesas e francesas, a situação da malária no mundo deteriorou. Basta ver o número de mortes por malária na própria Inglaterra, entre os anos 1887 e 1922. A partir de 1917, é nítida a reversão da tendência de queda gradual que vinha sendo uma constante na Inglaterra: 1887, 193 casos; 1905, 79 casos; 1915, 65 casos; 1917, 126 casos; 1919, 268 casos. Sem chegar às dimensões da malária na Índia, China e Oriente Médio, a situação foi de calamidade também no resto da Europa, sendo particularmente grave na Grécia, Itália, Iugoslávia, Bulgária, România, Polônia e Rússia. A situação da Grécia serve de exemplo: em 1923, a malária foi a terceira causa mortis de toda a Grécia, perdendo apenas para as diarreias infantis e a tuberculose. Até os Estados Unidos reportavam altos índices de malária, em torno de 600 mil casos por ano, entre 1930 e 1940.

     

    A malária no Brasil

    No Brasil, no fim do século XIX, a malária estava presente em todo o território nacional, particularmente na costa litorânea, poupando apenas alguns segmentos dos estados sulinos. A Amazônia e todo o planalto central viviam imersos na maleita, como mostra Martins Costa [2] em mapa datado de 1885. No entanto, apesar das estimativas indicarem 6 milhões de casos de malária por ano, no início do século XX no Brasil, a situação da malária era estável, sem notórios surtos epidêmicos.

    Porém, no fim do século XIX, explodiu uma grande epidemia na Amazônia. A borracha tornara-se matéria-prima preciosa e as perspectivas de extração do látex e de riqueza imediata, embora não fáceis, levaram para a Amazônia legiões de nordestinos flagelados por terrível seca em suas terras. Dessa migração maciça nasceram a cultura do extrativismo seringalista e a miscigenação de indígenas e nordestinos, dando origem aos amazônidas do século XX, e a primeira grande epidemia amazônica de malária.

    Ainda em função da borracha, o Brasil se comprometeu a construir uma estrada de ferro que possibilitasse a vazão ao látex boliviano: a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Para evitar o trecho encachoeirado do rio Madeira, a estrada ligaria Santo Antonio (hoje parte de Porto Velho) a Guajará-Mirim no rio Mamoré. Mais de uma empresa e várias levas de trabalhadores, muitos do Caribe, tentaram, do fim do século XIX ao início do XX, construir a ferrovia do diabo [6,7]. Acabaram vencendo, mas milhares sucumbiram à malária. Foi a segunda grande epidemia amazônica de malária, de horrível memória, testemunhada por Oswaldo Cruz e Carlos Chagas [8,9].

    Fora dessas explosões epidêmicas, a malária no Brasil seguia um curso sem intempéries no século XX. Ela ainda estava presente nas grandes capitais, mas sem grandes surtos epidêmicos. Fajardo em 1904 [10] proclamava que "na cidade do Rio de Janeiro não há impaludismo...". No entanto, suas próprias observações contradiziam essa assertiva ao confirmar microscopicamente casos de malária oriundos de várias partes do Rio de Janeiro, como Ilha do Governador e até da Praça da República, no centro carioca. Apesar de seu esforço semântico para distinguir "casos de paludismo" de "endemia palustre", a realidade é que os casos de malária do Rio eram autóctones e, portanto, a doença estava presente, sim, na capital da República, no início do século XX. Como estava também presente na capital e na província de São Paulo, particularmente em Santos, Campinas e nos vales dos rios Piracicaba e Tietê. Na verdade, a malária estava presente em todas as capitais brasileiras, sendo endêmica em todo o país. Só após a Segunda Grande Guerra, a malária abandonará as capitais brasileiras e se refugiará na Amazônia.

    Porém, antes que isso acontecesse, duas grandes epidemias explodiram no Brasil.

    Uma foi uma réplica das epidemias amazônicas anteriores. Com a ocupação dos seringais da Ásia tropical pelos japoneses, a borracha ameaçava faltar para os aliados em guerra. Os seringais da Amazônia renasceram e, com eles, a malária. Nova leva de migrantes nordestinos constituiu o "Exército da Borracha". Morreram mais combatentes nesse front, vítimas da malária, que no front da guerra contra o nazifascismo.

    "A malária no Brasil seguia um curso sem intempéries no século XX."

    A outra foi uma epidemia absolutamente inesperada e, até então, única no mundo, que teve o adicional papel de influenciar todo o programa da OMS para o controle da malária. Vale a pena recontar essa história que traz consigo alguns ensinamentos fundamentais sobre o controle da malária.

    Tudo começa no fim da década de 1930, em Natal [11,12]. Destroyers franceses que faziam, a cada quatro dias, a rota postal França-Natal, via Dakar, provavelmente trouxeram para cá o terrível transmissor da malária na África, até então ausente do país: o Anopheles gambiae. Esse mosquito tem hábitos muito parecidos com o atual vetor da dengue no Brasil. Ambos criam-se em pequenas coleções de água, como poças e vasos, pneus e cacimbas etc. São domésticos e antropofílicos. Vorazes, picam a qualquer hora do dia. Prolíficos, invadem e colonizam qualquer ambiente. O Anopheles gambiae ocupou imediatamente as imediações da estrada de ferro e os canais próximos à foz do Potengi e, daí, foi subindo Natal adentro para, em poucos meses, ocupar um território de 6 mil km2. Em 1928, antes da invasão, haviam ocorrido 28 mortes por malária em Natal. Esse número aumentou 12 vezes em 1932. Em um único bairro (Alecrim), 10 mil pessoas adquiriram malária dentre uma população de 12 mil indivíduos. Ação vigorosa dos serviços de saúde do Estado eliminaram o gambiae de Natal e controlaram a malária.

    Só que o gambiae não desapareceu, apenas se retirou, subiu os rios Apodí e Assú, atravessou a chapada do Apodí e infiltrou-se também pelas margens do Jaguaribe no Ceará. Nessas regiões foi ganhando terreno, proliferando e se expandindo em silêncio. Até que, em 1938, começam a surgir alguns casos de malária. Progressivamente, a malária foi ganhando caráter explosivo. A população do Ceará era praticamente virgem com relação à malária, isto é, tinha imunidade nula contra a doença. Foi uma calamidade pública. Alguns números esclarecem mais que descrições. Para uma população de 250 mil habitantes, o Rio Grande do Norte registrou, em apenas seis meses de 1938, cerca de 50 mil casos de malária. Em vários povoados rurais e ribeirinhos, o número de casos rondou a casa dos 80 a 90% da população. A mortalidade foi altíssima, mais de 10% dos pacientes, sem imunidade e já debilitados pela fome, morreram por falta de tratamento. Dizem as crônicas e jornais da época que todas as famílias do vale do Jaguaribe vestiram luto em 1939.

    Getúlio Vargas, com a ajuda da Fundação Rockfeller, resolveu enfrentar a epidemia. Juntos, investiram US$ 350 mil em um exército de médicos e técnicos, muitos deles já experimentados no combate ao mosquito transmissor da febre-amarela. A luta contra o gambiae foi formidável. Não sobrou um único criadouro na região que não fosse revirado e aspergido com larvicida. Até vasos de cemitério e potes com água benta receberam sua dose de larvicida. Infelizmente, não havia ainda o DDT, mas todas as casas foram fumigadas com piretro. De qualquer forma, a vitória foi esmagadora e, em 1940, o Anopheles gambiae seria completamente erradicado do Brasil. Esse foi o maior sucesso, ao nível mundial, de erradicação de uma espécie nociva de uma dada região.

    "Florestas tropicais são por constituição e natureza criadouros de mosquito."

    Logo após a guerra, os recém-produzidos e poderosíssimos inseticidas de ação residual (DDT), juntamente com medidas de saneamento ambiental, levaram à drástica redução da malária da maior parte da Europa e de muitos países menos desenvolvidos, o Brasil aí incluído. A euforia foi enorme. Foi tão grande que levou a OMS a criar o programa de erradicação da malária, sustentado em três pilares: combate ao mosquito por meio do DDT, melhoria das condições sanitárias gerais e tratamento dos pacientes. O projeto era bom, mas, na prática, não funcionou como se esperava.

    A ideia da erradicação encontrou suporte no sucesso nordestino, mas ignorou alguns fatos básicos desse sucesso. Primeiro, o mosquito transmissor no Brasil era alienígena, não tinha raízes no país e mal conseguira se estabelecer em um segmento limitado e agreste do território, e não o melhor possível para sua proliferação. Portanto, estava extremamente vulnerável. Segundo, seu controle exigiu dispêndios acima das disponibilidades de muitos países do mundo (US$ 350 mil era muito dinheiro em 1938). Finalmente, a campanha antimalária exigiu determinação política incomum e a mobilização de técnicos e médicos até hoje sem similar no país.

    Como consequência, a malária não foi erradicada da Terra e, em algumas regiões (como na África), nem foi tocada. Em outras, regrediu por algum tempo, mas voltou com o vigor de antes. Porém, naquelas regiões já dotadas de facilidades sanitárias, com disponibilidade de medicamentos e serviços médicos, e onde os serviços especiais de combate à malária se mostraram eficientes, a malária foi consideravelmente reduzida. Dessa forma, praticamente desapareceu do mundo desenvolvido nos anos 1950.

    No Brasil, sob o comando inicial de Mário Pinotti e conduzida pelo recém-criado Serviço de Combate à Malária, sucessor do Serviço de Combate à Febre Amarela, a campanha contra a doença atingiu o objetivo de controlar, mas não de erradicá-la. A malária sumiu das cidades e se refugiou em um paiol de pólvora na Amazônia, onde permanece intocada. Os 6 milhões de casos do início do século viraram apenas 50 mil em 1970.

    Notável sucesso para o país, mas por que o sucesso não se estendeu à Amazônia? Pela conspiração de vários fatores em conjunto. Em primeiro lugar, o combate ao Anopheles darlingi é impraticável. Seria preciso borrifar com DDT toda a floresta, uma vez que esse mosquito é silvestre, promíscuo, picando o homem e outros animais tanto fora como dentro do domicílio. Pelas mesmas razões, dedetizar apenas as casas é inútil. Telar as casas nem pensar, porque mosquitos entram pelos vãos das tábuas deixadas intencionalmente distantes umas das outras para fins de ventilação. O uso de mosquiteiros não faz sentido porque implica em que o homem permaneça sob ele do pôr do sol ao amanhecer. Repelentes podem ser bom para turistas, não para quem tivesse que usá-los dia e noite. Em medidas de saneamento básico, destinadas a eliminar criadouros de mosquitos, nem pensar. Florestas tropicais são por constituição e natureza criadouros de mosquitos. Destruí-los seria destruir a floresta.

    Resta o tratamento de pacientes, que, apesar de todas as dificuldades logísticas decorrentes da imensidão amazônica, é a única capaz de controlar a progressão da malária. O tratamento da malária é eficaz. As drogas são fornecidas e administradas à população por agentes dos serviços de saúde. O tratamento dos pacientes, além de curá-los, serve para limitar o alastramento da malária. Logicamente, o tratamento se destina a indivíduos com sintomas de malária. Todavia, recentemente descobriu-se que, em regiões remotas da Amazônia, existe um número muito grande de indivíduos, talvez a maioria, que são assintomáticos, isto é, são portadores do parasita, mas não desenvolvem a doença [13,14]. Esses indivíduos são nativos da Amazônia e certamente contraem infecções maláricas desde a infância. Com o tempo, e após repetidas infecções, desenvolvem um certo grau de imunidade. Quando reinfectados, têm uma forma branda da doença, sem sintomas. Por serem assintomáticos, não são detectados pelos serviços de saúde e, portanto, não são tratados. Porém, embora sem sintomas, carregam o parasita em seu sangue e são capazes de infectar mosquitos. Dessa forma, servem de fonte de infecção para novos indivíduos, funcionando como reservatórios da doença.

    A existência de reservatórios assintomáticos esclarece muitos aspectos da epidemiologia da malária amazônica. Em condições normais, a malária é endêmica na Amazônia. Com relação ao resto do país, a sua prevalência é alta (entre 15 a 20 casos por mil habitantes). Apesar da prevalência alta, a malária é, de certa forma, estável na Amazônia, embora apresente variações regionais, sendo baixa sua prevalência nas capitais e altíssima nas zonas de colonização recente.

    Indivíduos não imunes correm alto risco de contrair malária ao adentrarem a Amazônia. Se esses indivíduos forem em grande número, podem explodir epidemias. Foi assim nos episódios da borracha e na construção da Madeira-Mamoré. Foi assim recentemente, a partir dos anos 1970, com a descontrolada migração de paranaenses e gaúchos em busca de terras doadas pelo Incra em Rondônia.

    Sem imunidade e sem a "cultura da malária", esses bravos imigrantes foram vítimas da maior epidemia de malária da história da Amazônia. Em duas décadas, a prevalência da malária em Rondônia passou de cerca de 20 casos por mil habitantes para 100 casos por mil habitantes. No pico da epidemia, Rondônia chegou a ter 300 mil casos de malária por ano para uma população de apenas um milhão de habitantes [15,19]. A mortalidade foi também alta. Com o tempo, os migrantes foram ficando parcialmente imunes, enquanto seus núcleos de assentamento ganhavam melhorias sanitárias e progressiva urbanização. A malária estabilizou-se de novo em Rondônia, o front migrando agora para Roraima, onde a história mais ou menos se repete.

    E se repetirá sempre que grandes levas de migrantes se dirigirem à Amazônia, até que criemos mecanismos de controle que contemplem as peculiaridades da epidemiologia da malária amazônica. Não será tarefa fácil.

     

    Referências Bibliográficas

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    Sítios na Internet:

    Malária, doença:

    http://www.sbpc.org.br

    Estatísticas:

    http://www.who.int/ith/countrylist02.html

    http://www.who.int/wer/archives.html

    http://www.funasa.gov.br

    http://www.funasa.gov.br/sis/sis00.htm

    Plasmódios:

    http://www.cdfound.to.it/-atlas.htm

    http://www-micro.msb.le.ac.uk/224/Malaria.html

    http://rph.wa.gov.au/labs/haem/malaria/history.htm

    Anopheles:

    http://icb.usp.br/~marcelcp/Default.htm

    Madeira-Mamoré:

    http://www.ronet.com.br

    Terapêutica:

    http://www.funasa.gov.br/pub/pub00.htm#" target=

     

    Texto publicado originalmente em:
    CAMARGO, E. P. Malária, maleita, paludismo. Ciência & Cultura, São Paulo, v. 55, n. 1, 2003.
    * Esse texto foi atualizado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.