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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.76 no.2 São Paulo Apr./June 2024
http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240049
REPORTAGEM
O papel das instituições e da sociedade civil como importante ferramenta em defesa da liberdade acadêmica
Priscylla Almeida
Jornalista e produtora de conteúdo para áreas de Saúde e Ciência, Marketing e Publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca
Liberdade ao realizar estudos visando ao avanço do conhecimento, da inovação e do senso crítico. A definição de liberdade de pesquisa e acadêmica pode ser tão simples quanto a sua aplicação, já que é um fundamento que permite a utilização livre de ideias e questionamentos. Seu princípio essencial é muito mais que proteger a integridade plena do conhecimento de acadêmicos e pesquisadores: é o reflexo direto para o desenvolvimento de uma sociedade livre e democrática. "A liberdade científica é fundamental para o desenvolvimento e foi historicamente de grande importância: basta se lembrar das grandes descobertas científicas do passado", declara Sylvio Roberto Accioly Canuto, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pró-reitor de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). "Ainda que a liberdade de pesquisa seja vital para um desenvolvimento sem amarras (embora sempre dentro dos limites éticos), ela não pode como um todo se desvincular da sociedade".
Ameaças
A sociedade por muitas vezes vê, ao longo de sua história, seu direito básico à liberdade de pesquisa ameaçado por fatores que vão desde questões políticas e econômicas até éticas e censuras. "As ameaças podem ocorrer de diferentes formas, via difamação e ataque à credibilidade das instituições de pesquisa e dos pesquisadores, cortes em orçamentos e financiamentos levando ao estrangulamento das instituições e dos laboratórios de pesquisa, a desvalorização do trabalho acadêmico e, ainda, violações e pressões sobre professores e pesquisadores no exercício de suas atividades acadêmicas. Essas ameaças fragilizam o Estado democrático e comprometem a liberdade de expressão dos pesquisadores, limitando a diversidade de pensamento e a produção de conhecimento independente", declara Lucymara Fassarella Agnez Lima, professora do Departamento de Biologia Celular e Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e secretária regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Rio Grande do Norte.
Conforme o estudo "A liberdade acadêmica está em risco no Brasil?", conduzido pelo Observatório do Conhecimento em parceria com a SBPC, 58% dos 1.116 pesquisadores entrevistados das cinco regiões do país afirmam conhecer experiências de pessoas que já sofreram limitações ou interferências indevidas em suas pesquisas. Ainda, 27% já limitaram aspectos de suas próprias pesquisas e conteúdos em suas aulas por receio de retaliações. "A liberdade para pesquisar e ensinar é, por si própria, um fundamento da democracia. Portanto, uma democracia plena não pode existir quando as pessoas são intimidadas, perseguidas e assediadas pelo trabalho que realizam na docência ou na pesquisa", aborda Fernando Cássio, professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação na USP. "As instituições de ensino, de pesquisa, de fomento e de governo têm um papel fundamental na defesa dessas liberdades, uma vez que ataques ocorrem quase sempre contra indivíduos, visando infundir medo e estimular a autocensura. Isso envolve até a forma como os governos (que, frequentemente discordam dos diagnósticos dos especialistas, por razões óbvias) lidam com as críticas de pesquisadores" (Figura 1).
Atuações
Ao promover uma cultura de liberdade acadêmica, desenvolver políticas de proteção eficazes e atuar em defesa da autonomia acadêmica, instituições como a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), ABC, SBPC, dentre outras, frequentemente atuam na promoção de debates e campanhas de conscientização. Além de sustentarem os valores democráticos de liberdade de expressão e pensamento crítico, capacitando os cidadãos para avaliarem, de forma independente, as informações e os argumentos apresentados em debates públicos. "As instituições científicas são bastiões na luta por maior desenvolvimento socioambiental, sendo essencial que estejam politicamente vivas, isto é, que escutem e dialoguem com a sociedade para melhoria na qualidade de vida, hoje e sempre. A SBPC, como liderança nacional na defesa da ciência e defesa da sociedade, é parte essencial da luta pelo respeito social e desenvolvimento", declara Vandick da Silva Batista, doutor e professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e secretário regional da SBPC de Alagoas. Para Sylvio Canuto, "o conhecimento científico é um elemento essencial para o desenvolvimento de uma sociedade e tanto a SBPC como a ABC têm se engajado fortemente apontando que recursos para a ciência são verdadeiros investimentos para uma sociedade melhor".
Divulgação científica
A divulgação científica desempenha um papel essencial na promoção e na defesa da liberdade de pesquisa e acadêmica ao tornar a ciência mais acessível e compreensível para o público em geral. Além disso, contribui para a transparência e a democratização do conhecimento, ao combater a desinformação e garantir que os resultados das pesquisas sejam compartilhados ampla e livremente. "A divulgação científica é um caminho importante para o reconhecimento público da ciência e, em certa medida, funciona como um estímulo para que a sociedade como um todo se acostume a valorizar a produção do conhecimento e a reconhecer as tentativas de atacá-la", destaca Fernando Cássio. "Contudo, para além da divulgação científica que parte de nós, não é infrequente que o debate em diversas áreas seja dominado por não especialistas na grande imprensa e nas mídias alternativas. Esse 'desperdício' da inteligência nacional, que quase sempre simplifica perigosamente o debate público de questões complexas, também contribui para afastar a sociedade de pesquisadores e cientistas e para dessensibilizá-la em relação às tentativas de perseguir e intimidar aqueles e aquelas que trabalham para expandir as fronteiras do conhecimento".
A democracia depende de uma sociedade que tenha acesso à informação gerada com critérios transparentes e com amplo acesso. "Pesquisas com base científica, que não sejam limitadas por repressão, contratos ou constrangimentos, são um instrumento de defesa da voz da natureza e da sociedade e viabilizam o desenvolvimento sustentável de empresas, da cidadania e da evolução cultural. Pseudoinformação, gerada por opiniões não embasadas em informação criteriosa e checável, é crime altamente danoso a todos, devendo ser fortemente combatida", reforça Vandick da Silva Batista.
75 anos de comprometimento
Idealizada no ano seguinte à fundação da SBPC, em 1948, a revista Ciência & Cultura fomenta a disseminação do conhecimento científico, sempre comprometida com a liberdade de pesquisa e com as condições necessárias para sua realização. Durante seus 75 anos de existência, a revista testemunhou uma série de avanços científicos, transformações culturais e desafios enfrentados pela comunidade científica brasileira e internacional. Desde o período da ditadura militar, passando pelos mais recentes retrocessos à democracia e a Constituição Federal de 1988, a Ciência & Cultura é uma das publicações mais antigas de divulgação científica e um marco para a institucionalização da ciência no país. "Passamos um dos piores momentos da ciência brasileira com um governo negacionista. A SBPC foi e continua sendo um braço forte na defesa da ciência, das instituições e dos pesquisadores, denunciando e combatendo as ações antidemocráticas e o desmonte do nosso sistema de ensino e pesquisa. Entidades como a SBPC têm um papel fundamental em promover e proteger a autonomia científica, garantindo que os pesquisadores possam exercer suas atividades de forma independente", declara Lucymara Lima (Figura 2).
Ao celebrar essa longa jornada, é crucial reconhecer não apenas sua relevância, mas também o impacto como importante ferramenta para os debates contemporâneos. "A liberdade continua fundamental, mas hoje vivemos em uma sociedade muito complexa com demandas que necessitam que seus problemas sejam considerados. O conceito de excelência hoje coloca o engajamento social como um ponto relevante de uma instituição científica", segundo Sylvio Canuto.
Papel da sociedade civil
O papel da sociedade civil na defesa das liberdades de pesquisa e acadêmicas também é indispensável, em que estratégias podem ser adotadas para protegê-las em meio a estes retrocessos e desafios atuais. "A popularização e a conscientização da pesquisa, em todas as áreas do conhecimento, são fundamentais, incluindo a valorização das instituições e dos profissionais, garantindo liberdade à pesquisa independente realizada com o rigor científico necessário", segundo Lucymara Lima. Além disso, a sociedade civil tem o papel de pressionar autoridades e instituições pelo estabelecimento de políticas que garantam o desenvolvimento da ciência, tecnologia e a inovação (CT&I). "É necessário o engajamento nos debates públicos, a defesa de políticas que fortaleçam a autonomia das instituições de ensino e pesquisa, e a participação na promoção de um ambiente acadêmico plural e democrático".
A sociedade civil, ao mobilizar e defender a liberdade de pesquisa e acadêmica, contribui para a construção de uma sociedade indiscutivelmente mais democrática baseada no conhecimento. Para Vandick Batista, "precisamos de mais pontes entre os conhecimentos da pesquisa e as demandas sociais, demandando liberdade de expressão, mas também de realização. Para termos uma verdadeira Ordem e Progresso, há a necessidade da real comunicação entre gestores e pesquisadores, de onde conhecimentos venham a ser a base das tomadas de decisão".