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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.1 São Paulo jun./set. 2002

     

     

    MICROFÍSICA DA VIOLÊNCIA, UMA QUESTÃO SOCIAL MUNDIAL 

    José Vicente Tavares dos Santos

     

    A configuração da violência difusa como uma questão social mundial, presente na agenda política de países de vários continentes, da América Latina à América do Norte, da Europa à África – disseminada e dramatizada pelos meios de comunicação em escala global – suscita um conjunto de questões sociológicas que orientam a investigação sobre o significado social e cultural das múltiplas formas de violência presentes nas sociedades contemporâneas, neste jovem século XXI.

    Estaria nascendo um código social de sociação, ou laços de sociabilidade, orientado pela violência? Qual o sentido social da violência enquanto excesso: o sem-sentido, as incivilidades, o extremo, o sofrimento ou a margem? Ou, ao mesmo tempo, não haveria a possibilidade de um sentido oculto, de uma terceira margem reveladora das fraturas do social? Estaria nascendo, a partir da superação da linguagem da violência, uma outra norma social, talvez alimentada pelas lutas sociais contra a violência?

    A mundialização, após a Era dos Extremos(1), tem sido definida como o primeiro período do século XXI, marcado pela globalização dos processos econômicos e pela mundialização das novas questões sociais que se manifestam, de forma simultânea e com distintas especificidades, nas diferentes sociedades. Pode-se entender a globalização, segundo Goren Therborn, como “relacionada a tendências de alcance, impacto ou encadeamento globais dos fenômenos sociais, ou a uma consciência de abrangência mundial entre os atores sociais”(2). A posição social das populações mais diretamente atingidas pela globalização caracteriza-se pela desigualdade de oportunidades de vida, isto é, um acesso desigual a recursos e uma vivência de situações sociais desiguais, as quais podem ser resumidas em oito dimensões: saúde; habitação; trabalho; educação; relações de sociabilidade; segurança; informação e conhecimento; e participação política.

     

     

    Poderíamos reconhecer em cada uma dessas dimensões, em relação à conscientização dos agentes sociais e de suas distintas posições de classe, de gênero e de etnia, a configuração de novas questões sociais mundiais. Isto significa que “a globalização não diz respeito apenas ao que está ‘lá fora’, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá ‘aqui dentro’, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas”(3).

    Mais ainda, “viver numa era global significa enfrentar uma diversidade de situações de risco”, que se distinguem em “risco externo”, “o risco experimentado como vindo de fora, da fixidez da tradição ou da natureza”, e “risco fabricado”, “o risco criado pelo próprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre o mundo. O risco fabricado diz respeito a situações em cujo confronto temos pouca experiência histórica”(4).

    Entre os conflitos sociais atuais, crescem os fenômenos da violência difusa e as dificuldades das sociedades, e dos Estados contemporâneos, em enfrentá-los(5). Na vida cotidiana, realiza-se uma inter-relação entre mal-estar, violência simbólica e sentimento de insegurança. Por um lado, estamos vivendo em um horizonte de representações sociais da violência para cuja disseminação em muito contribuem os meios de comunicação de massa, produzindo a dramatização da violência e difundindo sua espetacularização, enquanto um efeito da violência exercida pelo “campo jornalístico”. No caso da televisão, procura-se o sensacional, o espetacular, mediante a dramatização de fatos de maneira a produzir o extraordinário do mundo ordinário: “A televisão, que pretende ser um instrumento de registro, torna-se instrumento de criação da realidade. Caminhamos para um universo no qual o mundo social é descrito – prescrito pela televisão. A televisão torna-se o árbitro de acesso à existência social e política”(6).

    As raízes sociais destes atos de violência difusa parecem estar nos processos de fragmentação social: “a desagregação dos princípios organizadores da solidariedade; a crise da concepção tradicional dos direitos sociais em oferecer um quadro para pensar os excluídos”(7). Em outras palavras, na Era do Globalismo, estamos diante de processos de uma massificação paralelos a processos de individualismo(8): a “multidão solitária” – “Somos células em uma sociedade de massas. A globalização é celular”(9) – vive em uma pluralidade de códigos de conduta.

    Neste jovem século XXI, desenvolve-se a vivência de uma incerteza: “O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível”(10). Esta é uma das facetas da lógica cultural da modernidade tardia: “Nossa época, desencantada, se desembaraça das utopias, reafirma o presente, resgata fragmentos do passado e não possui demasiadas ilusões a respeito do futuro”(11).

    Repõe-se o problema de qual é o lugar da alteridade cultural na sociedade em processo de globalização(12). “Nas sociedades do capitalismo tardio, o culto da liberdade individual e o desdobramento da personalidade se reformam e se localizam no centro mesmo das preocupações”(13). Em outras palavras, estamos diante de processos de massificação paralelos a processos de individualismo exacerbado e de solidão narcisista. Rompe-se a consciência coletiva da integração social, há um “declínio dos valores coletivos e com o crescimento de uma sociedade extremamente individualista”(14). Vivemos uma situação de incerteza fabricada, na qual “há uma pressão contínua para desmantelar as defesas trabalhosamente construídas”(15), ainda mais porque “na opinião pública se realizam, enfim, através do efeito dos mass media e da imagem de criminalidade que transmitem, processos de indução de alarme social que, em certos momentos de crise do sistema de poder, são manipuladas diretamente pelas forças políticas interessadas, no curso das chamadas campanhas de ‘lei e ordem’, mas que … desenvolvem uma ação permanente na conservação do sistema de poder …”(16).

    Como efeito dos processos de exclusão social e econômica, inserem-se as práticas de violência como norma social particular de amplos grupos da sociedade, presentes em múltiplas dimensões da violência social e política contemporânea. Nesse passo, novos dilemas e problemas sociais emergem no horizonte planetário, em uma era de conflitualidades(17).

    Trata-se de uma ruptura do contrato social e dos laços sociais, provocando fenômenos de “desfiliação” e de ruptura nas relações de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro(18).

    Tais rupturas verificam-se nas instituições socializadoras – como nas famílias, nas escolas, nas fábricas, nas religiões – e no sistema de justiça penal (polícias, academias de polícia, tribunais, manicômios judiciários, instituições da justiça penal e prisões), pois todas vivem um processo de ineficácia do controle social e passam a uma fase de desinstitucionalização ou de recorrente crise(19).

    Efetiva-se uma pluralidade de diferentes tipos de normas sociais, algo mais do que o próprio pluralismo jurídico, levando-nos a ver a simultaneidade de padrões de orientação da conduta muitas vezes divergentes e incompatíveis, como, por exemplo, a violência configurando-se como linguagem e como norma social para algumas categorias sociais, em contraponto àquelas denominadas de normas civilizadas, marcadas pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado(20).

    As diferentes formas de violência presentes em cada um dos conjuntos relacionais que estruturam o social poderiam ser explicadas se, em uma primeira aproximação, compreendêssemos a violência como um ato de excesso, qualitativamente distinto, que se verifica no exercício de cada relação de poder presente nas relações sociais de produção do social(21).

    Não basta, pois, remeter a violência às determinações econômicas ou políticas, embora seguramente elas permaneçam atuando como causas eficientes(22). Abandonamos, ainda, a concepção soberana do poder, e, por conseguinte, a concepção soberana da violência, na medida em que privilegia a violência do Estado, ou contra o Estado.

    Inversamente, se aceitarmos a idéia de uma microfísica do poder, de Foucault, ou seja, de uma rede de poderes que permeia todas as relações sociais, marcando as interações entre os grupos e as classes, poderemos estendê-la conceitualmente aos fenômenos da violência: aparenta ser útil, portanto, superar as concepções soberanas do poder e da economia, para dar conta da microfísica da violência.

     

     

    Por conseqüência, temos uma série de elementos fundamentais na definição da violência(23). A noção de coerção, ou de força, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo específico na coerção com dano que se efetiva.

    A afirmação de um dano supõe o reconhecimento das normas sociais vigentes, pertinentes a cada sociedade, em um período histórico determinado, normas que balizarão os padrões de legitimidade: a violência define-se então como um fenômeno cultural e histórico. Revela-se como um procedimento de caráter racional, o qual envolve, em sua própria racionalidade, o arbítrio, na medida em que o desencadear da violência produz efeitos incontroláveis e imprevisíveis. Simultaneamente, nas composições macros-sociais, a violência é fundadora de uma sociedade dividida e desigual, fundada em relações de dominação e de submissão

    Subjacente a todas as formas possíveis de violência, percebe-se – como foco ordenador da lógica de coerção social, como efetividade ou virtualidade nunca esquecida, ou como princípio operatório das relações – o exercício da violência física(24). Temos, então, o recurso à força e a aplicação da coerção, física e simbólica, como pertencentes às relações sociais de violência(25).

    A prática da violência vai se inserir em uma rede de dominações de vários tipos – classe, gênero, etnia, etária, por categoria social, ou a violência simbólica – que resultam na fabricação de uma teia de exclusões, possivelmente sobrepostas. Na perspectiva de uma microfísica da violência, “o que existe de mais perigoso na violência é sua racionalidade. Certamente, a violência em si mesma é terrível. Mas a violência encontra seu fundamento mais profundo na forma de racionalidade que nos utilizamos … Entre a violência e a racionalidade, não há incompatibilidade(26)”.

    Em seu conjunto, poderíamos considerar a violência como um dispositivo de poder, em que se exerce uma relação específica com o outro mediante o uso da força e da coerção: isto significa estarmos diante de uma modalidade de dispositivo que produz um dano social, ou seja, uma relação que atinge o outro com algum tipo de dano.

    A violência consiste em um dispositivo porque é composta por diferentes linhas de realização(27): apresenta uma visibilidade, por vezes de modo demonstrativo; vem a ser acompanhada por uma enunciação; vale dizer, sempre uma violência é antecedida, ou justificada, prévia ou posteriormente, por uma violência simbólica, que se exerce mediante uma subjetivação pelos agentes sociais envolvidos na relação: “… a violência simbólica impõe uma coerção que se institui por intermédio do reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de outorgar ao dominante quando somente dispõe, para pensá-lo e para pensar a si mesmo, de instrumentos de conhecimento que tem em comum com o dominante e que constituem a forma incorporada da relação de dominação”(28).

    Trabalhamos com a noção de “cidadania dilacerada”, pois evoca o dilaceramento do corpo, da carne, a crescente manifestação da violência física na sociedade contemporânea, que ameaça as próprias possibilidades da participação social(29). Força, coerção e dano, em relação ao outro, como ato de excesso presente nas relações de poder – do nível macro, do Estado, ao nível micro, entre os grupos sociais – vêm configurar a violência social contemporânea.

    Trata-se, em suma, de uma forma de interação social na qual se dá a afirmação de um poder legitimado por uma determinada norma social, conferindo-lhe, então, o aspecto de forma de controle social: a violência configura-se como uma “disposição de controle, aberta e contínua”(30). Podemos, enfim, considerar a violência como um dispositivo de poder, uma prática disciplinar que produz um dano social, atuando sobre espaços abertos, e que se instaura com uma justificativa racional, desde a exclusão, efetiva ou simbólica, até a prescrição de estigmas.

    Contra a barbárie enunciada pela violência, a difusão de uma ética da solidariedade, cuja base seja o respeito ao outro, pode compor uma linha de fratura no dispositivo da violência, o que possibilitaria a passagem a outros dispositivos: a emergência de lutas sociais contra a violência representa uma dessas linhas de fratura no dispositivo da violência.

    Dentro destas linhas de fratura, o respeito à dignidade humana, com fundamento no direito à vida, poderia consistir no fundamento de uma luta social contra a violência. Seria, então, possível, pensar a construção de uma cidadania mundial, marcada pela criação institucional e pela difusão e comunicação de práticas sociais, jurídicas e simbólicas inovadoras e planetárias(31). Visualiza-se – no tempo infinito da paciência, do diálogo e da mediação dos conflitos sociais – a perspectiva de construção de uma segurança do cidadão e da cidadã, composta por políticas sociais, por projetos sociais preventivas, protagonizados pelas administrações públicas, pelo mundo associativo, pelo terceiro setor, pelas escolas: a emergência da planificação emancipatória no campo da mediação de conflitos e da pacificação da sociedade contemporânea(32).

    Emerge a possibilidade de um controle social democrático, orientado pelo respeito à dignidade humana, construindo regras de sociabilidade, na rua, no bairro, na escola, nos estádios e nas instituições. Uma modalidade de segurança cidadã capaz de realizar, de modo substantivo e multicultural, projetos sociais e políticos que reconstruam a solidariedade, a dignidade humana e a liberdade da ação coletiva, pacificando as relações sociais e produzindo uma outra temporalidade de esperanças não-violentas em um espaço planetário.

     

    José Vicente Tavares dos Santos é sociólogo pela UFRGS, Mestre pela USP, Doutor de Estado pela Université de Paris – Nanterre, Professor titular de Sociologia e Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Diretor da ALAS – Associação Latino-Americana de Sociologia.

     

     

    Referências

    1 Hobsbawn, E. A era dos extremos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

    2 Therborn, G. “Globalização e desigualdade: questões de conceituação e de esclarecimento”. Revista Sociologias. Porto Alegre, PPG-Sociologia do IFCH da UFRGS, ano 3, nº 6, jul/dez 2001, p. 122-169.

    3 Giddens, A. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro, Record, 2000.

    4 Idem, ibidem.

    5 Idem, Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. Sousa Santos, B. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez,2000. Pinheiro, P. S., Mendez, J. E. e O’Donnell, G. Democracia, violência e injustiça. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

    6 Bourdieu, P. Sur la télévision. Paris: Líber, 1996.

    7 Rosanvallon, P. La nouvelle question sociale. Paris: Seuil, 1995.

    8 Ianni, O. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

    9 Diaz, M. Pós-modernidad. Buenos Aires: Eudeba, 1989.

    10 Durkheim, E., op. cit. p. 376.

    11 Diaz, M., op. cit.

    12 Souza Santos, B., op. cit., 2000.

    13 Diaz, M., op. cit., 1989.

    14 Hobsbawm, E. Novo século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    15 Bauman, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

    16 Baratta, A. Criminología crítica y crítica del derecho penal. 4 ed. México: Siglo Veintiuno. 1993.

    17 Tavares dos Santos, J. V. (ed.) Violências em tempo da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999.

    18 Castel, R. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.

    19 Tavares dos Santos, J. V., op. cit., 1999.

    20 Elias, N. O processo civilizador – uma história dos costumes. Vol. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. Elias, N. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Vol. II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

    21 Tavares dos Santos, J. V. “A violência como dispositivo de excesso de poder”. Revista Sociedade & Estado. Brasília, UnB, V. 10, n. 2, julho-dezembro 1995, p. 281-98.

    22 Tavares dos Santos, J. V. “A cidadania dilacerada”. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, n. 37, junho de 1993, p. 131-48.

    23 Chesnais, J. C. Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours. Paris: Laffont, p. 11.

    24 Chesnais, J. C., op. cit., p. 12.

    25 Fischer. La dynamique du social. p. 3 e p. 6/7.

    26 Foucault, M. Dits et Ecrits. Paris: Gallimard, tomo IV, 1994, p. 38/39.

    27 Deleuze, G. “Qu’est-ce qu’un dispositif ?”. In: Michel Foucault Philosophe (Rencontre Internationale). Paris: Seuil, 1989, p. 185/195, esp. p. 185/186.

    28 Bourdieu, P. “La domination masculine”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, Minuit, n.84, septembre 1990, p. 2-31. Bourdieu, P. La domination masculine. 1998. Paris, Seuil.

    29 Tavares dos Santos, J. V., op. cit., 1993.

    30 Deleuze, G., op. cit., 1898, p. 191.

    31 Sousa Santos, B., op. cit., 2000.

    32 Tavares dos Santos, J. V. “Novas questões sociais mundiais, projetos sociais e culturais e a planificação emancipatória”. In: Revista Humanas. Porto Alegre, IFCH da UFRGS, V. 24, n. 1-2, janeiro-dezembro de 2.001, p. 163-85.