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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.1 São Paulo jun./set. 2002

     

    História

    DIALOGANDO COM SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

     

    Sérgio Buarque de Holanda, escritor com uma sensibilidade crítica exarcebada, sofisticada vocação literária e certa disposição lúdica para a gozação, discretamente provocador, se não veladamente impertinente, é por vezes um autor desconcertante para o leitor desavisado. A sua é uma obra aberta para infindáveis releituras.

    Há os que o querem weberiano, há os que o têm como hegeliano. Há os que diferenciam a sua obra como crítico literário de sua obra como historiador, os que o vêem como sociólogo e mesmo os que o destacam como antropólogo da cultura material do Brasil colonial. O conhecimento crítico é, sobretudo transdisciplinar, pois dispensa o viés classificador de disciplinas acadêmicas, as palavras-chaves dos catálogos bibliográficos e o interesse de mercado por convencionar áreas genéricas do conhecimento. Como pensador e crítico da cultura reivindicava o direito de resistir a um método preciso que de alguma forma o aprisionasse ao escrever. Para ele, ser historiador era cultivar uma atitude e um modo de ser crítico apropriado para interpretar a cultura e a sociedade na sua dimensão histórica, temporal, universal. Esta atitude avessa a conformações de pensamento pré-fixadas, a escolas, a métodos bem delineados, a teorias abstratas se lhe afigurava imprescindível para interpretar de modo inovador, combativo e, portanto, interpretativo no sentido hermenêutico do conhecimento, entendido como um processo de desconstrução de tradições herdadas, de desocultamento de tendências de vir-a-ser na sociedade e na cultura brasileira. Num meio intelectual como o nosso, em que mesmo os inovadores tinham um viés conservador, se não autoritário, sua obra teria por vezes uma reverberação dissonante.

    O mais lido de seus livros foi Raízes do Brasil, e certamente o que suscitou maior número de polêmicas. Foi de início mal entendido como um livro que procurava definir as peculiaridades do caráter nacional brasileiro. Na verdade, em plena década do Estado Novo, em meio aos programas oficiais de nacionalização do ensino, de disciplinarização do idioma e de formalização de uma cultura nacional, Sérgio Buarque de Holanda fazia uma crítica acirrada ao conceito de uma identidade nacional permanente ou fixa. Alguns leram neste livro uma teoria sobre a formação do Estado brasileiro, outros procuraram diretrizes para o estudo das relações Estado e sociedade civil, outros, ainda balisas para o estudo do processo de modernização no Brasil.

     

     

    Seu livro é um acerto de contas e um desfilar de negações para com posicionamentos tanto de seus colegas modernistas, como de autores tradicionalistas, como Oliveira Viana. Ser do contra, estar na contra-mão é o que o levou a escrever um ensaio sutil sobre impasses e dificuldades atávicas da sociedade brasileira. Em vez de consolidar uma teoria, escreveu um livro sobre a ausência de equilíbrio entre elites dirigentes, Estado e os contornos congênitos da sociedade brasileira que, a seu ver, custavam a se expressar, tal o arcabouço de preconceitos acumulados por uma ideologia europeizada e elitista.

    Nos últimos dez anos no Brasil vem se entabulando, entre estudiosos das mais diferentes vertentes, um diálogo cada vez mais intenso entre os leitores de sua obra, tanto no campo da literatura, da história como no da crítica da cultura. Surpreende a riqueza de espaços abertos para o debate dos temas que explorou e pelos quais se interessa um número cada vez maior de estudiosos do Brasil contemporâneo. Um eixo de temas presentes em sua obra, que frutificou numa produção historiográfica renovadora é o estudo da pátria ausente e da crítica do processo elitista de formação da nacionalidade, sobre o qual se multiplicaram interpretações as mais variadas e para as quais infelizmente não há espaço neste artigo. Outro eixo de reflexões que nos surpreende pela riqueza de interpretações que tem suscitado é o conceito de homem cordial, que a ele parecia, em certo momento, esgotado, e que tem adquirido um sentido novo, inspirando interpretações cada vez mais significativas. O mundo deu voltas desde o lançamento de Raízes do Brasil em 1936 e hoje nos confrontamos com novas possibilidades de conceituar a politização do privado; temos necessidade de reinterpretar a urdidura de poder das relações pessoais, suas novas formas de inserção na cultura de comunicação de massa, no processo de globalização, nas teorias de recepção da literatura, nos estudos que exploram a circulação dos textos, a sociabilidade do mundo editorial, a historicidade do público leitor, assim como last but not least nas relações de gênero, assim como no problema da corrupção política.

    Um exemplo destas correntes críticas que deram atualidade às suas obras são os novos diálogos entabulados entre sua obra e as de pensadores contemporâneos como Jürgen Habermas ou Hans Georg Gadamer, juntamente com releituras inovadoras de seus trabalhos. A obra de João César de Castro Rocha, Literatura e cordialidade (UERJ, 1998) é um belo exemplo de como a obra de Sérgio Buarque de Holanda tem contribuído para trabalhos inovadores. Os ensaios de Antonio Arnoni Prado desvendaram uma parte inexplorada da obra de Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário. É preciso ressaltar a importância da edição organizada e comentada por Antonio Arnoni Prado dos seus ensaios de crítica literária reunidos em dois preciosos volumes, O espírito e a letra, (Companhia das Letras, 1996). Está para ser editada uma edição crítica da correspondência do historiador com Mário de Andrade, elaborada por Vera Cristina Newman Wood, que trará uma contribuição inestimável para os estudos de suas obras.

    Na trilha das releituras teóricas de sua obra citem-se as teses de mestrado defendidas na Unicamp, como o livro de Pedro Meira Monteiro, A queda do aventureiro (Unicamp, 1999), que consiste numa interpretação erudita, correta e sensível das afinidades que Sérgio Buarque de Holanda cultivava com Max Weber. A dissertação de Marcus Vinicius Correa Carvalho aprofundou as afinidades do historiador com a obra de Wilhelm Dilthey (Unicamp, 1997). Não há como dar conta exaustiva neste espaço dos inúmeros ensaios críticos que vêm renovando as interpretações da obra multifacetada do historiador, entre os quais o ensaio de Lucia Maria Paschoal Guimarães sobre afinidades do autor com Capistrano de Abreu (1996), assim como o livro inovador de Robert Wagner, A conquista do Oeste (UFMG, 2000), que aprofunda afinidades entre o conceito de fronteira de Frederick Jackson Turner e o de Sérgio Buarque de Holanda.

    O fato de estarem momentaneamente esgotadas tanto a coletânea de ensaios da coleção Cientistas Sociais da Ática, como a coletânea lançada em 2000 pela Fundação Perseu Abramo é significativo de um crescente interesse por sua obra.

    Livros disponíveis no mercado: Monções (1990) e Visão do Paraíso (1999) foram republicados pela editora Brasiliense e Raízes do Brasil (1997) e Caminhos e fronteiras (1994) pela editora Companhia das Letras. Em 1997, Raízes do Brasil chegou a sua nona edição, tendo sido traduzido para o japonês, o italiano e o espanhol. Sérgio Buarque de Holanda, com seu temperamento irreverente, aberto, boêmio e sociável, se pudesse, estaria certamente se divertindo com a sociabilidade prazerosa suscitada por este diálogo com seus novos intérpretes.

     

    Maria Odila Leite da Silva Dias
    é historiadora, professora do Programa de Pós-graduação em História da PUC-SP.