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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.2 São Paulo oct./dic. 2002

     

     

    A PERSPECTIVA DE TEMPO NO SONHO

    Therezinha Moreira Leite

     

    O sonho, fenômeno de ordem psicológica e representação com foros de ilogicidade à lógica característica de vigília, se revela essencial à realização integrada no ser humano. Seu espaço justamente refere a abertura possível a conteúdos de tipo onírico que são relatados em vigília, freqüentemente em momentos de relaxamento diante de estruturas do pensamento e da lógica vígil. Especialmente em psicoterapia e psicanálise, conclusões, decisões, continuidade no processo do desenvolvimento pessoal ou grupal, são fartamente documentadas após relatos de sonhos e elaborações de conteúdos de tipo onírico.

    Desse ponto de vista, um princípio básico de desvendamento de conteúdos e sentidos de sonhos aponta a relevância de se levar em conta o tempo do sonho; isto é, a importância de se respeitar a continuidade do relato e a continuidade de associações próprias ao sonhador, considerando-se especialmente o sentido que se revele nele próprio. Interpretações apressadas de significado podem constituir impropriedade em relação ao conteúdo e, especialmente, ao sonhador e sua existência, bem como ao tempo do sonho, e ao tempo do sonhador.

    No relato, único referencial com que contamos de experiência a níveis cognitivo e afetivo no sonhador, e vivida em representação peculiar de tempo e espaço, estas são mediadas pela lógica de vigília. As relações expressas pela linguagem falada não constituirão reprodução exata do material de sonhos. Estarão impregnadas pela tentativa de articulação adequada de um conteúdo com caráter de realidade mas ilógico e irracional (segundo linguagem corrente), para comunicação inteligível a um outro, e também para si mesmo.

    O movimento para articulações novas e para a mudança que decorre do trabalho com sonhos, possibilita a percepção do tempo no sonho como transposto a um plano de relações não-factuais em que o sujeito conta com graus de liberdade inerentes a processos criativos. Dados determinantes da história pessoal, da simbologia e da linguagem próprias à cultura, mas também à estrutura e dinâmica inerentes ao sonhador, condicionam essa articulação e mudança. Como os restos diurnos se prestam à formação de sonhos, estes provêem restos noturnos para a continuidade da elaboração psíquica e da realização do dia a dia.

    Somos então confrontados com o tempo em extensão ampla: passado, presente e futuro se encontram nos vários pontos de intersecção em que as imagens apontam para o sentido que, fundamentalmente, se encontra no sujeito. Numa rede de significantes que ficam explicados no tempo e espaço pessoais, a relação entre os elementos da estória(do sonho) se faz numa rede de sentidos; não em uma seqüência cronológica, como se entende a sucessão em anterioridade e posterioridade na História. O caos, como podemos conceituar o não-tempo e a modalidade de seqüência em sonhos, permanece importante vetor para a construção humana nesse contexto, relevante justamente pela ordenação de experiências vitais de caráter afetivo e cognitivo que configura e sugere como verdade à consciência vígil.

    Regras e ordenações específicas em sonhos podem ser extraídas dos aspectos formais em sua apresentação. É o que acontece quando a cena inicial indica a conclusão do tema tratado, no entanto, sucedendo-se a ela, os elementos que constituem a trama em outras condições, é apresentada em momento anterior. Fases na progressão do trabalho em sonhos têm sido indicadas como progressão a um epílogo. Diversamente, insiste-se aqui na elaboração temporal como elemento inerente ao sonhador e a seu sonho: esta perspectiva, e os dados colhidos segundo a mesma poderão, possivelmente, contribuir ao entendimento da estrutura subjetiva e do processo psíquico em particular.

    A ocorrência de sonhos com temas típicos e com temas de caráter universal exige que sejam consideradas questões a respeito da possível caracterização dos sonhos em culturas diferentes, em grupos de diversas atuações profissionais, em várias idades "...são dados que ressaltam o caráter cultural e grupal não apenas do ponto de vista pessoal, mas social" (1). No entanto, não se exclui a necessidade de se considerarem as associações a esses conteúdos nos sonhos individuais, para se compreender o sentido que tomam na elaboração pessoal de cada um.

    Em vista desses dados, no entanto, pode-se atestar o sentido social do sonho, bem como sua importância para o grupo humano. Aliás, seu uso para entendimento do sujeito e para indicações em sua realização vem de longa data, como indicam as inscrições em textos gregos, egípcios e, em especial, as referências bíblicas. Freud, em seu livro A interpretação dos sonhos cita, por exemplo, como Alexandre parte para a batalha, depois de um sonho que o orientou para essa realização, da qual saiu vencedor (2). Estudos e pesquisas atuais têm-se dirigido ao levantamento de características no nível social e cultural como as citadas acima. Especialmente com isso poderíamos reconhecer que a formação e a temática onírica se originariam num amálgama comum à existência humana, ainda que se diferencie em cada um. Em conclusão, podemos referir o sonho como inserido igualmente na história humana, como o referimos inserido na história subjetiva. Uma grande contribuição a seu valor na vida humana será poder reconhecer o sentido de seu conteúdo inserido no valor simbólico cultural de sua linguagem. Seu tempo estará, então, marcado pela história em que se desloca o sujeito.

     

    Therezinha Moreira Leite é psicóloga e professora aposentada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia-USP

     

     

    Referências

    1 Davignaud, J., Davignaud, F. e Corbeau, J-P. La banque des rêves, Paris, Payot, 1979.

    2 Freud, S. La interpretacion de los sueños. Obras completas, Madrid: Biblioteca Nueva, 1948, p. 231-581.