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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.2 São Paulo out./dez. 2002

     

     

    O TEMPO DA CULTURA EM NIETZSCHE

    José Carlos Bruni

     

    Grande parte da fama do filósofo Friedrich Nietzsche advém de sua concepção do eterno retorno do mesmo. Na verdade, grande enigma que desafia a compreensão comum e que tem despertado as mais engenhosas interpretações, no intuito de tornar aquela idéia um pouco mais clara. Esse ponto culminante das reflexões de Nietzsche sobre a questão do tempo tem deixado em segundo plano outros aspectos de sua filosofia da temporalidade, alguns dos quais serão objeto do presente texto, especialmente as noções de pressa (die Hast) e devagar (langsam).

    Em várias ocasiões, Nietzsche expressa sua preferência pelos leitores que são calmos e "amigos do lento". Nas conferências "Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino", Nietzsche escreve:

    "O leitor de quem espero algo (...) deve ser calmo e ler sem pressa. (...) O livro está destinado aos homens que ainda não caíram na pressa vertiginosa de nossa época rodopiante e que não sentem um prazer idólatra em ser esmagados por suas rodas. Portanto para poucos homens! Mas esses homens ainda não se habituaram a calcular o valor de cada coisa pelo tempo economizado ou pelo tempo perdido, eles 'ainda têm tempo'; a eles ainda está permitido, sem que venham a sentir remorsos, escolher e procurar as boas horas do dia e seus momentos fecundos e fortes para meditar sobre o futuro de nossa cultura (Bildung), eles mesmos podem se permitir ter passado um dia de maneira digna e útil na meditatio generis futuri. Tal homem ainda não desaprendeu a pensar enquanto lê, compreende ainda o segredo de ler entrelinhas, tem mesmo o caráter tão esbanjador que medita ainda sobre o que leu, mesmo muito tempo depois de não ter mais o livro entre as mãos. E não para escrever uma resenha ou outro livro, mas apenas e somente isso – para meditar! Condenável esbanjador!" (1).

     

    E em Aurora lemos:

    "Tal livro, tal problema não têm pressa; além disso somos amigos do lento, eu tanto quanto meu livro; não se foi filósofo em vão, talvez é-se ainda, diríamos, um professor de leitura lenta – finalmente, escreve-se também lentamente. Agora, isso não só faz parte dos meus hábitos, como também do meu gosto – um gosto maldoso, talvez? Nada mais escrever que não leve aquela espécie de homem que 'tem pressa' ao desespero. A filologia é efetivamente essa arte venerável que exige de seu admirador antes de tudo uma coisa: afastar-se, dar-se tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento, como um conhecimento de ourives aplicado à palavra, que tem de fazer seu trabalho fino e cuidadoso e nada alcança se não alcança lentamente. É precisamente nisso que ela é hoje mais necessária do que nunca, é justamente nisso que ela nos atrai e nos encanta no mais alto grau, numa época de 'trabalho', quero dizer: na época da pressa, de indecente e suada velocidade, que quer 'acabar logo com tudo' e também com todos os livros, velhos ou novos. Mas ela própria [a filologia] não acaba logo com qualquer coisa, ela ensina a ler bem, isto é, devagar – profunda, cuidadosa, retrospectiva e antecipadamente, descobrindo intenções, com portas deixadas abertas por dedos e olhos suaves... Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendei a ler-me bem!" (2).

     

    E na Genealogia da moral:

    "É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido (...) e para o qual é imprescindível ser quase uma vaca e não um 'homem moderno': o ruminar..." (3).

     

    É significativo que essas recomendações figurem sempre nos prefácios dos livros; parecem sugerir que a lentidão é a própria condição de inteligibilidade dos textos a serem lidos, o primeiro pressuposto da atividade do espírito enquanto tal. Mas também tendo a crer que muito nos enganaríamos se víssemos nestes textos requisitos para a compreensão somente dos escritos do próprio Nietzsche, ou conselhos ditados pelo bom senso para o bom aproveitamento da leitura em geral. A calma e o devagar (reforçadas pelas imagens do professor meditativo e da vaca) são antes exigências essenciais da formação e da cultura, pressupostos que dizem respeito à própria existência da cultura. "A cultura diminui a cada dia porque a pressa torna-se maior." (4). A exigência que Nietzsche faz aos seus leitores – que devem ser calmos e saibam ler devagar – é uma exigência dirigida à cultura e não a este ou aquele leitor em particular. Com isso, Nietzsche mostra que há um tempo próprio à cultura, tempo este que não deve ser confundido com nenhum outro e que faz da cultura exatamente o que ela é. Concebendo a filosofia, as ciências e as artes como os três campos principais nos quais a cultura se realiza, Nietzsche vai primeiramente distinguir a cultura verdadeira (ou autêntica) da pseudo-cultura, o que historicamente coincide com a cultura grega antiga e a cultura moderna. Ele vai se deter na crítica da cultura de sua época, ou mais precisamente, a cultura moderna. Explorar com alguma pertinência o tema da modernidade nesse filósofo é tarefa que excede em muito nossos limites. Lembremos apenas que é justamente pela distinção entre o tempo da lentidão e o tempo da pressa que os conceitos de cultura autêntica e de pseudo-cultura podem ser estabelecidos. Nietzsche entende por cultura autêntica ou verdadeira aquela que permite ao homem aceder ao seu próprio ser (ou devir) e ao ser (ou devir) da natureza e construir assim uma vida em que a felicidade seja possível. Esse tipo de cultura só pode ser alcançado "por muita aplicação, auto-domínio, restrição a poucas coisas, por muita repetição, tenaz e fiel, do mesmo trabalho, das mesmas renúncias; mas há homens que são os herdeiros e senhores dessa riqueza de virtudes e habilidades adquiridas lentamente – porque, em função de um casamento feliz e razoável e também de acasos felizes, as forças adquiridas e acumuladas ao longo de muitas gerações não se dispersam nem se dissipam, mas são reunidas firmemente numa única aliança" (5).

     

     

    A cultura moderna constitui-se como negação da verdadeira cultura, em primeiro lugar por instituir um tempo acelerado e agitado, oposto a qualquer forma de tranqüilidade. Em Humano, demasiadamente humano, Nietzsche escreve no aforismo 285: "A intranqüilidade moderna. – À medida que andamos para o Ocidente, se torna cada vez maior a agitação moderna, de modo que no conjunto os habitantes da Europa se apresentam aos americanos como amantes da tranqüilidade e do prazer, embora se movimentem como abelhas ou vespas em vôo. Essa agitação se torna tão grande que a cultura superior já não pode amadurecer seus frutos; é como se as estações do ano se seguissem com demasiada rapidez. Por falta de tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie. Em nenhum outro tempo os ativos, isto é, os intranqüilos, valeram tanto. Logo, entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em grande medida o elemento contemplativo" (6), a ser alcançado pelo esforço acima mencionado. Mas como se pode compreender o processo pelo qual o mundo moderno chegou a esse ponto? A resposta está "num dos dogmas da economia política mais caros do tempo presente. Tanto conhecimento e tanta cultura quanto possível – portanto tanta produção e tantas necessidades quanto possível –, portanto tanta felicidade quanto possível: eis mais ou menos a fórmula. Nós temos aqui como objetivo e finalidade da cultura a utilidade ou mais exatamente o lucro, o maior ganho possível de dinheiro (...) 'A união da inteligência e da propriedade' que é posta como princípio nessa concepção de mundo toma valor de exigência moral. Chega-se a odiar toda cultura que favorece o solitário, que propõe fins além do dinheiro ou do lucro, que exige muito tempo. (...) A moral que está aqui em vigor exige claramente qualquer coisa de inverso, a saber uma cultura rápida, para que se possa tornar-se um ser que ganhe dinheiro, mas também uma cultura suficientemente aprofundada para que se possa tornar-se um ser que ganhe muito dinheiro." (7). Mas não é apenas o afã de lucro que representa um perigo mortal para a cultura. Nietzsche fala do "egoísmo do Estado" para designar as tentativas dessa instituição de submeter a cultura aos seus objetivos próprios que nada têm a ver com a natureza da verdadeira cultura. E no que diz respeito à ciência, o filósofo lamenta a degradação a que é levado o homem de ciência. "Este paradoxo vivo que é o homem de ciência, caiu recentemente na Alemanha em tal pressa como se a ciência fosse uma fábrica e cada minuto desperdiçado exigisse um castigo. Agora ele trabalha tão duro quanto o quarto estado, o estado dos escravos, seu estudo não é mais uma ocupação, mas uma pena, ele não se vê nem à direita nem à esquerda, e passa por todos os negócios e hesitações que a vida traz em seu seio, com aquela semi-atenção ou com aquela lamentável necessidade de repouso próprias do trabalhador esgotado." (8).

    Enfim, além de refletir também sobre as condições psicológicas que levam à pressa (9), é no aforismo 329 de A gaia ciência que Nietzsche alcança a formulação mais abrangente de toda essa problemática que ao mesmo tempo a resume e a amplia num enfoque propriamente sociológico: "Lazer e ócio. – Há uma selvageria pele-vermelha, própria do sangue indígena, no modo como os americanos buscam o ouro: e a asfixiante pressa com que trabalham – o vício peculiar ao Novo Mundo – já contamina a velha Europa, tornando-a selvagem e sobre ela espelhando uma singular ausência de espírito. As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa – vivem como alguém que a todo instante poderia 'perder algo'. 'Melhor fazer qualquer coisa do que nada' – este princípio é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior. Assim como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que trabalham, o próprio sentido da forma, o ouvido e o olho para a melodia dos movimentos também sucumbem. A prova disso está na rude clareza agora exigida em todas as situações em que as pessoas querem ser honestas umas com as outras no trato com amigos, mulheres, parentes, crianças, professores, líderes e príncipes – elas não têm mais tempo para as cerimônias, para os rodeios da cortesia, para o esprit na conversa e para qualquer otium (ócio), afinal. Pois viver continuamente à caça de ganhos obriga a despender o espírito até a exaustão, sempre fingindo, fraudando, antecipando-se aos outros: a autêntica virtude, agora, é fazer algo em menos tempo que os demais. (...) Se ainda há prazer com a sociedade e as artes, é o prazer que arranjam para si os escravos exaustos de trabalho. Que lástima essa modesta 'alegria' de nossa gente culta ou inculta! Que lástima essa desconfiança crescente de toda alegria! Cada vez mais o trabalho tem a seu lado a boa consciência: a inclinação à alegria já chama a si mesma 'necessidade de descanso' e começa a ter vergonha de si. 'Fazemos isso por nossa saúde' – é o que dizem as pessoas quando são flagradas numa excursão ao campo. Sim, logo poderíamos chegar ao ponto de não mais ceder ao pendor à vida contemplativa (ou seja, a passeios com pensamentos e amigos) sem autodesprezo e má consciência." (10). Nietzsche parece dizer que o mundo moderno é um mundo sem espírito porque é um mundo sem tempo para o espírito.

    Toda essa visão sombria que se depreende dos textos citados e de muitos outros que analisam as formas da cultura moderna e sua organização não devem nos conduzir à conclusão apressada de que a verdadeira cultura é totalmente impossível no mundo moderno. Nietzsche, em O viandante e sua sombra, aforismo 189 ("A árvore da humanidade e a razão") nos convida a comparar a humanidade a uma grande árvore que dá bons frutos se for bem cuidada e tratada. E por mais que os homens ainda sejam governados por instintos cegos, sempre haverá indivíduos que, de alguma maneira, alcançam a sabedoria – e conclui: "Nossa tarefa grandiosa consiste em preparar a terra para receber uma planta da maior e mais formosa fecundidade – uma tarefa da razão para a razão!" (11).

     

    José Carlos Bruni é professor do programa de pós-graduação em Sociologia da USP e professor do Departamento de Filosofia da Unesp.

     

     

    Notas

    1 Nietzsche, F. Kritische Studienausgabe. München, DTV/de Gruyter: Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, vol. 21, pp. 648-9, 1988.

    2 idem, ibidem, vol. 23, p. 17.

    3 id., ib., vol. 25, p. 256.

    4 id., ib., vol. 27, p. 717 (Cf. também: "Somente o filólogo lê lentamente e medita meia hora sobre seis linhas" (id., ib., vol. 8, p. 332), isto é, média de cinco minutos para cada linha!).

    5 id., ib., vol. 31, p. 260.

    6 id., ib., vol. 22, p. 232.

    7 id., ib., vol. 21, pp. 667-8.

    8 id., ib., vol. 21, p. 202.

    9 id., ib., vol. 21, p. 379.

    10 id., ib., vol. 23, pp. 556-7.

    11 id., ib., vol. 22, p. 636.

     

    Bibliografia consultada

    Obras de Nietzsche em português

    - Ecce Homo (tr. Paulo César Souza). São Paulo: Max Limonad, 1985.

    - Genealogia da moral (tr. Paulo César Souza). São Paulo: Brasiliense, 1987.

    - O nascimento da tragédia (tr. Jacob Guinsburg). São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

    - Além do bem do mal (tr. Paulo César Souza). São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

    - A gaia ciência (tr. Paulo César Souza). São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

    - Humano, demasiado humano (tr. Paulo César Souza). São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

    Obras sobre o tema "tempo e cultura"

    Wenndorff, R. Zeit und Kultur Geschichte des Zeitbewußtseins in Europa. Opladen: West deutscher Verlag, 1985.

    Chauí, M. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.

    Bruni, J. C. " Tempo e trabalho intelectual". In: Tempo Social – Revista de Sociologia da USP (São Paulo, 3 (1-2) , 1991, pp 155-68.