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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.2 São Paulo out./dez. 2002

     

    Literatura

    A VERSÃO FRANCESA DE OS SERTÕES

     

    A aventura de traduzir Os sertões de Euclides da Cunha para o francês foi a seguinte: Antoine Seel, "normalien" brilhante, dominando perfeitamente o português, e eu próprio, assinávamos, em conjunto, os artigos que o jornal Le Monde publicava sobre literatura brasileira. No início dos anos de 1980, as traduções para o francês de ficção escrita no Brasil se multiplicavam, e isso justificava uma colaboração regular, especializada na questão. Eu conseguira mesmo que o jornal publicasse duas páginas inteiras sobre a situação da literatura no Brasil. Foi essa nossa presença nas páginas do Le Monde que levou a editora Gallimard nos convidar, a Antoine Seel e a mim, para traduzirmos Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Depois desse trabalho feito, a editora Metailié nos propôs um contrato para Os sertões, de Euclides da Cunha.

    Está claro que nós prevíamos que as dificuldades seriam muito maiores que no caso da escrita límpida de Graciliano Ramos. Nesta, os problemas maiores situavam-se à volta do caráter elíptico, concentrado, cheio de anacolutos, das frases sem verbo: era preciso proceder a um desbaste na tendência que a língua francesa possui em explicitar. Mas, uma vez encontrado o tom, era ir em frente, como uma locomotiva nos trilhos.

    No caso de Euclides da Cunha, os problemas eram opostos. Primeiro, uma inverossímil riqueza de vocabulário, onde palavras arcaicas se sucedem a termos científicos raros, a regionalismos, a neologismos muito singulares e de difícil compreensão. Em seguida, havia o estilo admirável, mas retorcido, complexo, onde frases longuíssimas dividem o mesmo parágrafo com outras enxutas, às vezes de uma palavra só. Há em Euclides uma lembrança de latinista: como no discurso ciceroniano, a ordem indireta muitas vezes impera, dispondo o verbo em posições esdrúxulas, dentro do percurso sinuoso que traçam oração e parágrafo.

     

     

    Havia uma tradução francesa, anterior, datada de 1947, feita com amor por Sereth Neu. Mas ela caíra numa armadilha que nós queríamos evitar. Transpusera para o francês as longas frases, cheias de meandros, dando-lhes clareza, picando-as com ponto final; escolhera sempre a ordem direta; evitara as palavras raras. Isso revela, por sinal, a força criadora do estilo de Euclides da Cunha, que não é apenas um ornamento, mas um constituinte vigoroso de sua força literária e de seu pensamento. É fácil constatar: a primeira tradução, no início da obra, na parte intitulada "A Terra", dava uma irresistível impressão de um insípido manual de geografia.

    Como vencer, no entanto, a passagem de uma língua para a outra, sem enfraquecer por demais o original? O partido foi de obedecer, quando fosse possível, às estruturas retorcidas e não hesitar diante de um vocabulário raro, arcaico, técnico. Apenas nos recusamos a neologismos. Tomamos o partido de um glossário, que foi inserido no fim da edição, onde se encontravam os regionalismos, respeitados, sem nenhuma tentativa de aproximar o texto de equivalências aproximativas. No resultado final, está claro, permanece, para nós, a consciência que se trata de um eco, talvez enfraquecido, mas que buscou conservar a dinâmica torturada do original.

    Uma outra dificuldade, é que não existia, e não existe até hoje, uma edição comentada da obra. Ora, em Os sertões, o número de citações teóricas é muito grande e elas são determinantes. Muitas, presentes na cultura do tempo, são para nós, hoje, por demais obscuras. Eram essenciais para Euclides da Cunha, porém. Assim, o último capítulo do livro, feito de uma única frase, espécie de vórtice para onde, aos poucos, a obra fora se reduzindo do geral ao particular, diz o seguinte: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades..." Quem é esse Maudsley? Que leitor pode responder, de imediato, à questão? Era preciso, pensamos, construir um conjunto de notas que explicasse essas referências teóricas. Por sinal, algo semelhante ocorrera com Memórias do cárcere. Não se tratava, aqui, de referências eruditas, mas de um enxame de personagens reais que participaram, de longe ou de perto, da trajetória do autor, personagens que era necessário identificar para apresentá-los ao leitor. Neste sentido, as edições francesas possuem um aparato de informações ausente de qualquer edição brasileira.

     

    Jorge Coli
    é historiador de arte e professor da Unicamp