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Cienc. Cult. vol.54 no.2 São Paulo Oct./Dec. 2002

RÉQUIEM PARA TIO TONINHO
ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI
notícia de ontem: foi desta para melhor meu tio homônimo (na fria manhã de 3 de junho de 1999 em Pirassununga onde nasceu e de onde pouco saía) sua folia já não viu a luz do dia quando jovem causticava um jeito cínico que intransigente a alturas tantas lhe cobrou inquieto o que não tinha e como os tinha dispensou os próprios dentes sabia como ninguém recortar figuras em cascas de laranja (que espremia depois incendiadas sobre as cabeças dos vizinhos) era o escultor na mesa de jantar em certa conta nela oito eram par (falando só dos sobrinhos) famintos todos feito gatos implorando os formatos que ele amassava exatos no miolo dos pães quando eu tinha onze anos era certo e sabido que o tio Toninho ia a São Paulo só para provar as delícias da doceira Gerbaud: festa em quarto fechado que repartia comigo o silêncio pródigo era seu cultivo e o humor negro em quadrinhos: Drácula X9 Cine Mistério de onde vinha o apelido sem dó de Augusta Frankestein (Schimidt de certidão) lugar-tenente no solar de minha avó viciado em troça mas sem pingo de desdém ou fauno imperfeito ou solitário no pélago do rio Mogi: que imagem a memória retém deste estranho confrade de quem fui compadre desde os quinze anos? tardes desfeitas dias horas e a manhã também em frente à casa dele me queimei nas taturanas subindo pelas figueiras tanta era a dor tanta a pele torturada que clamei uivei como um cão: tio Toninho não tinha pomada a lembrança é brisa leve (desmancha com a sazão) na mão contrária do vento: trinta lençóis engomados e a cada verão uma cama para o sobrinho sem tempo |
GATO
ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI
rasante zoon à risca: decifro um gato sob as unhas do menino prévio ao meu temor: movo-me entre as raias com cuidado evito o negro onde me perco: não toco o tigrado dorso nem o riso convexo olho: desdobro um tanto a memória que rumina: mão infante o pintou zebrino em véspera de pulo: angulo o quadro dos bigodes que sobram sobre as tetas pois é fêmea e trívio como qualquer gato mas esse exato moveu geleiras |
Antonio Fernando De Franceschi é autor, entre outros livros de poesia, de Tarde Revelada (Brasiliense, 1985), Caminho das Águas (Brasiliense, 1987), Sal (Companhia das Letras, 1989) e A Olho Nu (Companhia das Letras, 1993). Os poemas inéditos ora publicados fazem parte da "Suíte Pirassununga", que integrará o próximo livro do autor.