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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.54 n.2 São Paulo out./dez. 2002

     

     

    RÉQUIEM PARA TIO TONINHO

    ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI

    notícia de ontem: foi desta para melhor meu tio homônimo (na fria manhã de 3 de junho de 1999
    em Pirassununga onde nasceu e de onde pouco saía)
    sua folia já não viu a luz do dia

     

    quando jovem causticava um jeito cínico
    que intransigente a alturas tantas
    lhe cobrou inquieto o que não tinha
    e como os tinha dispensou os próprios dentes

     

    sabia como ninguém recortar figuras
    em cascas de laranja (que espremia depois
    incendiadas sobre as cabeças dos vizinhos)
    era o escultor na mesa de jantar

     

    em certa conta nela oito eram par
    (falando só dos sobrinhos) famintos todos
    feito gatos implorando os formatos
    que ele amassava exatos no miolo dos pães

     

    quando eu tinha onze anos era certo e sabido
    que o tio Toninho ia a São Paulo
    só para provar as delícias da doceira Gerbaud:
    festa em quarto fechado que repartia comigo

     

    o silêncio pródigo era seu cultivo e o humor negro
    em quadrinhos: Drácula X9 Cine Mistério
    de onde vinha o apelido sem dó de Augusta Frankestein
    (Schimidt de certidão) lugar-tenente no solar de minha avó

     

    viciado em troça mas sem pingo de desdém
    ou fauno imperfeito ou solitário no pélago do rio Mogi:
    que imagem a memória retém deste estranho confrade
    de quem fui compadre desde os quinze anos?
    tardes desfeitas dias horas e a manhã também
    em frente à casa dele me queimei nas taturanas
    subindo pelas figueiras tanta era a dor tanta a pele torturada
    que clamei uivei como um cão: tio Toninho não tinha pomada

     

    a lembrança é brisa leve (desmancha com a sazão)
    na mão contrária do vento:
    trinta lençóis engomados e a cada verão uma cama
    para o sobrinho sem tempo

     

    GATO

    ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI

    rasante zoon à risca:
    decifro um gato
    sob as unhas do menino
    prévio ao meu temor:
    movo-me entre as raias
    com cuidado
    evito o negro
    onde me perco:
    não toco o tigrado dorso
    nem o riso convexo
    olho:
    desdobro um tanto a memória
    que rumina: mão infante
    o pintou zebrino
    em véspera de pulo:
    angulo o quadro dos bigodes
    que sobram sobre as tetas
    pois é fêmea
    e trívio
    como qualquer gato
    mas esse exato
    moveu geleiras

     

     

    Antonio Fernando De Franceschi é autor, entre outros livros de poesia, de Tarde Revelada (Brasiliense, 1985), Caminho das Águas (Brasiliense, 1987), Sal (Companhia das Letras, 1989) e A Olho Nu (Companhia das Letras, 1993). Os poemas inéditos ora publicados fazem parte da "Suíte Pirassununga", que integrará o próximo livro do autor.