SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.1 São Paulo jan./mar. 2003

     

     

     

    ENTREVISTA

    Quase-cristais: do descrédito à tecnologia

     

    O físico Dan Shechtman, do Instituto Tecnológico Technion, em Haifa, Israel, é conhecido por ter descoberto os quase-cristais em 1982, o que lhe valeu o prêmio Wolf de Física de 1999 (o mais importante depois do Nobel). A descoberta dos quase-cristais rompeu um paradigma na cristalografia, a parte da física que lida com cristais (ver box). Shechtman esteve no Rio de Janeiro por ocasião da 27ª Assembléia Geral do Conselho Internacional para Ciência (ICSU), de 20 a 28 de setembro de 2002, e concedeu esta entrevista exclusiva para a Ciência e Cultura, onde fala das dificuldades iniciais para convencer a comunidade científica da sua descoberta.

     

    CIÊNCIA E CULTURA Por que se demorou tanto para descobrir os quase-cristais?

    DAN SHECHTMAN Bem, primeiro, porque se precisava trabalhar com metais não-tradicionais. Bem não-tradicionais. O que eu fiz. Segundo, os quase-cristais vieram a ser descobertos por microscopia eletrônica [a técnica mais usada para cristais é difração por raios-X]. Isso porque esses materiais, no início, eram muito pequenos, da ordem de micrômetros [um micrômetro é igual a um milésimo de milímetro]. O que eu fiz. Terceiro, você tinha que ser muito persistente em acreditar no que você estava fazendo, e proteger suas idéias contra as de cientistas muito famosos do establishment, que diziam: "Dan, isto não pode ser"...

     

    Por que esse ceticismo dos cientistas?

    SHECHTMAN Bem, quando eu descobri os quase-cristais, vi simetrias rotacionais. E uma das simetrias rotacionais que vi foi a simetria de rotação 5 [simetria na qual o objeto parece o mesmo após girar 1/5 de volta completa]. Essa simetria era bem conhecida, e não poderia existir em cristais. No primeiro momento, pensei que era um acidente, algum tipo de erro científico que eu tinha que resolver ­ e se tratava de uma estrutura muito complexa. Mas eu insisti em analisá-lo e, por dois anos, todos os meus colegas disseram: "Oh, Dan, isso não pode ser", e eu dizia: "Bem, vocês sabem, eu sou um bom microscopista eletrônico", e examinei todos os erros possíveis, porque havia feito uma quantidade razoável de experimentos com microscopia eletrônica e sabia que aquilo não era um resultado espúrio.

     

    Como essa situação se reverteu?

    SHECHTMAN Dois anos depois, em 1984, no Technion, outro pesquisador, Ilan Blech, na época professor do instituto, juntou-se a mim e sugeriu um modelo para explicar a observação. Então enviamos o artigo para publicação. O primeiro não foi publicado, mas o segundo foi, e então toda a comunidade juntou forças. Nem todos estavam convencidos, incluindo muitos cientistas famosos. Um deles era Linus Pauling, químico, laureado duas vezes com o Nobel. Ele nunca acreditou e teve muitos seguidores, que diziam que, se Linus Pauling falava "Não pode ser", então não podia ser. Mas a comunidade de seguidores cresceu, Linus Pauling morreu, e hoje milhares de pessoas ao redor do mundo, cientistas bem estabelecidos, estudam quase-cristais.

     

    Foi difícil para o senhor, como cientista, manter suas convicções nessa situação?

    SHECHTMAN Sim, e vou dizer o porquê. Quando descobri os quase-cristais, meu grau no Technion era professor-assistente. O período era entre 1982 e 1984. Esse era um cargo de baixa hierarquia. Se meus resultados fossem um disparate, eu podia estar colocando minha carreira em risco. Portanto, era atemorizante. Além disso, eu estudei numa direção contrária à de cientistas muito bem estabelecidos e era obviamente embaraçoso dizer-lhes: "você está errado e eu estou certo". Então, passaram-se anos, mas o número de adeptos da teoria cresceu constantemente, até que toda a comunidade juntou forças para afirmar a descoberta.

     

    Já existem aplicações tecnológicas para os quase-cristais?

    SHECHTMAN Toda aplicação tecnológica de qualquer material depende de suas propriedades. As principais são as seguintes: os quase-cristais são materiais metálicos, mas agem quase como isolantes para eletricidade e condução de calor. Segundo, esses materiais são muito duros e resistem à fricção e ao desgaste. Também não furam facilmente, como o teflon, de forma que as pessoas usam-nos para recobrir frigideiras e panelas ­ mas, ao contrário do teflon, se você os raspa com uma faca, eles não se soltam, não se desgastam. Em uma outra aplicação, importante e muito útil, se você cria um material e, no seu interior, você tem partículas muito pequenas de quase-cristais, então você pode aumentar dramaticamente as propriedades daquele material. Um exemplo é o aço comercial produzido na Suécia sob patente por uma companhia chamada Sandvik (http://www.steel.sandvik.com). Eles produzem comercialmente um aço inoxidável extremamente forte e duro, que é usado em hospitais e barbeadores elétricos. Outros usos: se você adiciona pequenas bolinhas de quase-cristais em plástico, então esse plástico não se desgastará tão facilmente. Por exemplo, muitos aparelhos têm engrenagens de plástico ­ por exemplo, ventiladores e batedeiras ­ se você adiciona quase-cristais em pó neles, então eles não se desgastam e duram por muitos anos.

     

    Roberto Belisário