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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.1 São Paulo jan./mar. 2003

     

     

    VERMES, VERMINOSES E A SAÚDE PÚBLICA

    Pedro Paulo Chieffi
    Vicente Amato Neto

     

    As infecções parasitárias dos intestinos, de acordo com as prevalências segundo as quais são evidenciadas, refletem com boa margem de segurança as condições de vida de diferentes comunidades. Influem, no sentido de que elas ocorram com intensidades variáveis, expressivos fatores exemplificados sobretudo por saneamento básico, educação inclusive especificamente para a saúde, habitação e higiene alimentar, que, quando existem de formas satisfatórias, coibem a expansão dessas parasitoses. Água ou alimentos e contato desprotegido com o solo permitem comumente as contaminações, precisando então merecer prioritárias atenções. Disso tudo, resulta que a maior ou melhor proeminência de tais infecções fique na dependência de condições relacionadas com desenvolvimentos regionais, fazendo com que num extremo elas deixem de constituir preocupações.

    Os modos de ocorrência e a freqüência com que parasitoses intestinais são encontradas em determinadas localidades dependem de interações complexas entre hospedeiros, parasitas e ambiente.

    É provável que nos primórdios da história da humanidade, quando nossos antepassados possuíam hábitos nômades, sobrevivendo como caçadores-coletores sem território fixo, a freqüência de infecção por enteroparasitas, especialmente geohelmintos, fosse menor do que quando, após adotar hábitos gregários, o homem passou a ocupar território definido e a cultivar o solo, além de criar animais (1).

    Estudo realizado em planície do Irã, localizada nas proximidades do mar Cáspio, ilustra bem a influência do tipo de contato com o solo na ocorrência de helmintíases intestinais. Os autores investigaram os padrões de ocorrência de helmintíases na população de quatro vilarejos, próximos entre si, nos quais variava a atividade econômica básica de seus habitantes, resultando em contato diferenciado com o solo e/ou animais. Em uma das localidades, a atividade produtiva principal consistia no cultivo de produtos agrícolas que impunha contato freqüente com o solo e verificou-se prevalência elevada de infecção por geohelmintos, principalmente Ascaris lumbricoides e Trichuris trichiura. Em outro vilarejo, onde a atividade básica resumia-se no cultivo de arroz em área inundada, predominava a infecção por ancilostomídeos. Por fim, nas duas outras localidades, nas quais a criação de gado assumia importância econômica, os helmintos enteroparasitas mais comuns eram Trichostrongylus sp. e Taenia saginata (2).

    A freqüência de infecções por geohelmintos é influenciada por variáveis de natureza ambiental e modificações introduzidas pela atividade humana podem alterar a distribuição dessas espécies, facilitando ou dificultando sua ocorrência (3). Tais influências são mais facilmente percebidas no caso da infecção por ancilostomídeos, cujas larvas eclodem dos ovos cerca de 24 horas após chegarem ao solo e são mais sujeitas à ação deletéria da dessecação e de outros fatores adversos. Assim, a ancilostomíase encontra-se mais comumente confinada a regiões tropicais e subtropicais, cujo solo apresenta melhores condições para reter a umidade e está submetido a temperaturas mais elevadas.

    A introdução de modificações no ecossistema visando melhorar as condições de vida humana pode, contudo, criar situações propícias à manutenção de larvas de ancilostomídeos. Assim, a irrigação de solos áridos, nos quais as larvas não conseguiriam permanecer vivas por longo tempo, criou microambiente que permitiu sua sobrevivência, como ocorreu, por exemplo no Egito e em outros países árabes. Por outro lado, países de clima temperado ou frio, cujo solo submetido a temperaturas baixas não permitiria a sobrevida de larvas de ancilostomídeos, experimentaram, no começo do século XX, importantes epidemias de ancilostomíase entre mineiros de carvão, cujo ambiente de trabalho, representado pelas galerias de minas, constituiu-se em ecossistema extremamente bem adaptado para as larvas desses nematódeos, por oferecer microambiente úmido e bem aquecido, influindo, também, a precariedade das condições higiênicas então vigentes.

    Outro exemplo de como alteração brusca do ambiente pode favorecer a transmissão de geohelmintoses ocorreu no Haiti. Ali se observou uma elevação importante na prevalência de ancilostomíase, após a derrubada de cobertura vegetal em região que se tornou mais sujeita a inundações e, conseqüentemente, aumentou o teor de umidade do solo.

    Alterações ambientais, todavia, podem dificultar a transmissão de geohelmintoses. Assim, a significativa queda na ocorrência de infecção por geohelmintos, e especialmente por ancilostomídeos, verificada em muitas regiões do estado de São Paulo tem sido explicada como conseqüência de modificação nas relações de produção no meio rural e do intenso processo de urbanização ocorrido em áreas metropolitanas (4).

    De maneira geral, ocorreu queda na prevalência de infecção por enteroparasitas no Brasil e, em particular, no estado de São Paulo nas últimas décadas. No município de São Paulo, uma avaliação revelou diminuição significativa na prevalência de enteroparasitoses, como decorrência de melhoria das condições de vida e especialmente da elevação dos níveis de escolaridade da população. Todavia, em muitas áreas de nosso país ainda são observados altos índices de infecção por parasitas intestinais, quer em razão da persistência de condições de vida menos privilegiadas em amplos segmentos da população, quer pela existência de condições particulares de ordem epidemiológica, justificando a colocação desses agravos entre os problemas de saúde pública que necessitariam de atenção especial na agenda das autoridades sanitárias (5).

     

     

    A configuração clínica dessas infecções é inconstante. Às vezes não se traduzem por manifestações, se bem que continuem propiciando transmissões; em certas situações, agem agravando doença concomitante vinculada a maior gravidade ou, então, constituem todo o motivo que exige assistência médica.

    O encontro, nas fezes, de protozoários até agora tidos como comensais serve para denunciar contaminação oral-fecal de intensidade variável. Entamoeba coli, Endolimax nana, Chilomastix mesnili e Iodamoeba bütschlii são, por enquanto, esses microrganismos, felizmente ainda não influenciados por imunodepressão. Trichomonas hominis e Blastocystis hominis configuram controvérsias por terem suas patogenicidades não definidas com segurança; contudo, indícios relacionam agressividade de Blastocystis com deficiência imunitária.

    Existe a possibilidade de que tipos de tais parasitoses assumam feições correlacionadas com gravidades. Como ilustrações, lembramos a necrose amebiana em geral situada no fígado, a balantidíase fulminante, a tricuríase com infecção muito acentuada, a estrongiloidíase generalizada e a criptosporidíase intensa, estando as duas condições por último citadas mais comumente implicadas com imunodepressão. Peculiaridades regionais são conhecidas e, felizmente, a necrose ou a tricuríase referidas surgem com bem maior freqüência em determinados outros países.

    Surtos são viáveis, possibilitados por influências facilitadoras. Assim, rememoramos os de isosporíase ou oxiuríase em certas comunidades como creches, asilos e instituições congêneres, assim como os de criptosporidíase que chegam a comprometer grande número de pessoas.

    Os diagnósticos são realizáveis de maneiras simples e pouco custosas, sendo utilizadas técnicas e condutas bem padronizadas (6). Alguns métodos, calcados por exemplo em procedimento imunoenzimático ou em biologia molecular, estão ficando em foco, mas, de fato, podem prestar auxílios em poucas circunstâncias, quando convém determinar espécies, como no caso da amebíase, e para evidenciar antígenos em fezes.

    Alguns parasitas, como Cryptosporidium, Cyclospora e microsporídeos, só passaram a gerar preocupações em épocas recentes. Quase nunca eram cogitados. Entretanto, hoje fazem parte de interesses comuns, especialmente na presença de déficit imunitário.

    Houve nítido progresso quanto aos tratamentos (6). Atualmente a grande maioria das doenças parasitárias intestinais pode ser eficientemente tratada, inclusive por meio de doses únicas ou de medicamentos com amplo espectro de atividade. Em relação às formas graves, também são possíveis sucessos terapêuticos. Condutas para abranger expressivos grupos populacionais, após caracterizações epidemiológicas adequadas, ficaram viáveis. Portanto, esse panorama difere muito do vigente em décadas não muito distantes, quando dificuldades para usos, toxicidades e pequenas efetividades eram habituais. A propósito dessas parasitoses, sucedeu algo diferente do que se passa com outras, freqüentes nos países em desenvolvimento e não merecedoras de devidas atenções pelos produtores de fármacos.

    A quantidade de indivíduos com imunodepressão, ou até com imunossupressão, aumentou sensivelmente nas últimas décadas. Contribuíram para isso os tratamentos de mesenquinopatias, do câncer e de doenças da área da hematologia, que ficaram habituais. Transplantes de órgãos também participam e presentemente processou-se acréscimo extremamente ponderável: a infecção devida ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), responsável pela síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). O muito vigente déficit imunológico em questão gerou claros agravamentos de parasitoses intestinais, outrossim mais difundidas e tratáveis com notórias dificuldades, não raramente sem sucessos. São destacáveis, a propósito, a isosporíase, a criptosporidíase e a estrongiloidíase (7). Portanto, ocorreu a concretização de um compartimento novo no qual situam-se periculosidades e modificações epidemiológicas ligadas a afecções parasitárias muitas vezes pouco proeminentes.

    Essas infecções intestinais fazem parte do grupo de endemias parasitárias presentes no Brasil e exemplificadas por doença de Chagas, esquistossomíase mansônica, filaríases, leishmaníases e malária. Dependem do subdesenvolvimento econômico-social e, ainda bem, em geral não são graves, podendo ser tratadas com razoável facilidade. Isso comumente não acontece com as outras enfermidades citadas, com exceção da esquistossomíase, que permanece influenciada pelo mau saneamento básico mas ficou menos proeminente pela disponibilidade de singela e eficiente terapêutica. Almejamos que, nesse panorama, as parasitoses que afetam os intestinos arrefeçam progressivamente, imitando o que já sucedeu em outros países por causa da coibição dos fatores que facilitam as inconvenientes prevalências delas.

     

    Pedro Paulo Chieffi é professor­titular de Parasitologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; e professor-assistente-doutor do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.

    Vicente Amato Neto é professor-emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo(USP); chefe do Laboratório de Parasitologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo; e chefe do Laboratório de Investigação Médica-Parasitologia do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da USP.

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Schantz, P.M. "Human behavoir and parasitic zoonosis in North America". In: Croll, N.A. & Cross, J.H. (eds.) Human ecology and infectious disease. New York, Acad. Press, p. 188-223. 1983.

    2. Ghadirian, E.; Croll, N.A. & Gyorkos, T.W. "Sociocultural factors and parasitic infections in the Caspian littoral region of Iran". Trop. Geog. Med.; 31: 485-491. 1979.

    3. Lilley, B.; Lammie, P., Dickerson, J. & Eberhardt, M. "An increase in hookworm infection temporally associated with ecologic change". Emerg. Inf. Dis.; 3: 391-393. 1997.

    4. Ferreira, M.U.; Ferreira, C.S. & Monteiro, C.A. "Tendência secular das parasitoses intestinais na infância na cidade de São Paulo (1984-1986)". Rev. Saúde Públ.; 34(Supl.6): 73-82. 2000.

    5. Waldman, E.A. & Chieffi P.P. "Enteroparasitoses no Estado de São Paulo: questão de saúde pública". Rev. Inst. Adolfo Lutz; 49: 93-99. 1989.

    6. Chieffi, P.P.; Gryschek, R.C.B. & Amato Neto, V. Parasitoses intestinais - diagnóstico e tratamento. São Paulo, Lemos Editorial, p. 11-35. 2001.

    7. Cinerman, S.; Cinerman, B. & Lewi, D.S. "Prevalence of intestinal parasitic infection in patients with acquired immunodeficiency syndrome in Brasil". Int. J. Infect. Dis.; 3: 203-206. 1999.