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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.2 São Paulo abr./jun. 2003

     

     

    Para Melhor Conhecer nossa biodiversidade
    Miguel Trefaut Rodrigues

     

     

    Há muito têm me preocupado as consequências de algumas das medidas oficiais tomadas para proteger nossa biodiversidade. Ao lado de um inegável impacto positivo, elas têm influído negativamente no desempenho científico do país e deixado de abranger parcela importante do público a que se destinam. Na condição de líder mundial em diversidade biológica, o Brasil deve dispor de leis eficientes para protegê-la, desde que razoáveis e compatíveis com o avanço do conhecimento científico. Tais normas devem assim ser elaboradas após ampla consulta à comunidade científica, o setor da sociedade responsável pela geração do conhecimento nesta área.

    Vejo, com apreensão, que na série de medidas provisórias publicadas visando controlar a utilização do patrimônio genético brasileiro, a comunidade científica não foi suficientemente consultada. Não é assim que poderemos chegar ao Brasil que todos sonhamos.

    Embora o país seja líder em diversidade biológica, falta muita investigação para alcançarmos um conhecimento mais realístico sobre a diversidade de nossa fauna e flora, sobre as doenças de nossas plantas e animais e, por exemplo, para conhecer a infinita riqueza de informação que nos reserva a ontogenia de nossas espécies. Precisamos trabalhar muito, com as mais variadas técnicas, para conhecer um pouco melhor nossa biota, e corremos contra o tempo. Temos consciência de que áreas naturais que estão sendo desmatadas podem alojar espécies que se vão para sempre eliminando, também definitivamente, informação biológica essencial à compreensão de muitos processos vitais. Este é um dos motores insistentes do zoólogo, do botânico e, entre outros, do biomédico, preocupados em conhecer e descrever a diversidade biológica do país. Fazem-no, pois sabem de sua importância para ajudar a compreender e reconstruir a história biológica do planeta para podermos planejar o crescimento sustentado de um mundo mais justo.

     

     

    É neste quadro de amplo desconhecimento sobre a diversidade biológica do país que deve ser compreendido o papel das medidas provisórias, cristalizadas pelo decreto 3945, de 28 de setembro de 2001 e reafirmadas pela resolução 001, de 8 de julho de 2002 do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Pretende-se regular a utilização dos recursos biológicos, fiscalizando a bioprospecção e repartir os benefícios de sua utilização.

    O enorme avanço, com a implementação de dispositivos legais apropriados, foi anulado pelos entraves impostos à atuação da comunidade científica brasileira envolvida com pesquisa básica.

    Por falta de diálogo, os critérios a cumprir pela nova legislação paralisam e engessam a investigação científica relacionada ao melhor conhecimento de nossa biodiversidade. Não quero me deter aqui sobre os efeitos das medidas provisórias anteriores que paralisaram boa parte das atividades de pesquisa e de pós-graduação em zoologia e botânica deste país, nos últimos dois anos. Os protestos de toda parte deveriam ter sido ouvidos e tomados como lição; não o foram. Aprenderemos um dia a calcular esse prejuízo a partir das horas de pesquisa desperdiçadas por profissionais qualificados, a partir da perda de recursos públicos, do desgaste da imagem do país no exterior e do custo de informação genética para sempre desaparecida causada por entraves burocráticos. Não resta dúvida de que o preço é muito elevado!

    A partir da última edição da medida, todo e qualquer projeto de pesquisa científica que acesse o patrimônio genético de qualquer espécie nativa deve obter as autorizações devidas do CGEN. Projetos detalhados, formulários, acordos, currículos, datas exatas de viagem acompanhadas de seus itinerários, fontes de financiamento, credenciamento de instituições com tradição secular, autorização de proprietários e uma infinidade de outros documentos devem agora ser enviados para credenciar instituições e pesquisadores para que acessem, a qualquer nível, o patrimônio genético de nosso país e produzam conhecimento sobre ele. Não houve, na promulgação da medida, qualquer discriminação afeita à pesquisa básica. Trata-se indiscriminadamente aquele que descreve a fauna, flora ou as doenças do país que desconhecemos e o que quer pesquisar nossa biodiversidade com fins de exploração comercial.

    Preocupa-me o caos e o atraso que a medida causará ao desenvolvimento da pesquisa. A malha burocrática criada é de tal ordem que só pode ter sido concebida por quem nunca enfrentou, com a freqüência necessária, as dificuldades e a imprevisibilidade da pesquisa de campo num Brasil que desconhece o conforto das grandes cidades. A abrangência da medida é de tal ordem que nos transporta ao Brasil pré-1808; voltamos a fechar os portos às nações amigas! Pior, fechamo-los também àqueles em quem o Estado investe maciçamente para que conheçamos melhor nossa diversidade biológica. As exigências atuais para colaboração internacional já estão fazendo com que nossos parceiros voltem os olhos para outros países.

    Ao invés do foco da atividade fiscalizadora estar centrado na bioprospecção visando exploração comercial, ultimada por registro de patentes, fiscalizar-se-ão todos os cientistas brasileiros. Não é preciso muito esforço para verificar que o desperdício de recursos públicos é enorme. Gasta-se energia e capacidade intelectual com quem não é alvo direto da medida, ao invés de concentrar os esforços na fiscalização das atividades ilegais que se procura coibir. Não posso deixar de pensar que existem melhores maneiras de gastar as horas de trabalho dos cientistas e técnicos deste país, ou, em última análise, de utilizar mais adequadamente o dinheiro público.

    Lamento que as regras venham penalizar pesquisadores que, há anos, vêm dando a conhecer a diversidade biológica que desconhecemos. É este tipo de ciência básica, sem fins lucrativos, que gera a informação para o trabalho dos técnicos em saúde, política e legislação ambiental do país. Por ser urgente e imprescindível, ela precisa de agilidade e não pode estar sob a égide de tais medidas. Mantê-la atrelada às mesmas regras que a pesquisa que ultima bioprospecção comercial, representará sua asfixia e enorme perda para o país.

    Nos dias atuais, o avanço do conhecimento tornou obrigatório o seqüenciamento gênico para identificar espécies, conhecer suas relações de parentesco e investigar a origem e o desenvolvimento de processos biológicos altamente complexos. Para os zoólogos e botânicos, acessar ou seqüenciar o material genético de algumas espécies não é uma prática comercial, mas um recurso moderno para identificar espécies desconhecidas e reconhecer processos evolutivos e de desenvolvimento ainda não identificados. Muita pesquisa básica na área de bioquímica, fisiologia e biologia molecular também acessa material genético, mas objetiva resolver problemas e processos biológicos, talvez cruciais para o destino da humanidade, sem qualquer preocupação comercial imediata.

    Para surpresa da comunidade científica, agora permanentemente fiscalizada com tais medidas, não há interferência do CGEN nas transações comerciais envolvendo a fauna e a flora nativa. Milhares de peixes ornamentais, plantas, madeiras e outros produtos naturais a partir dos quais se pode acessar seu patrimônio genético, continuam a ser exportados, sem fiscalização alguma. Se quisermos construir um país sério, precisamos ser minimamente coerentes e buscar o diálogo com os setores qualificados da sociedade para tentar equacionar esses problemas. Sinceramente, não me parece que os crimes que se pretende coibir tenham origem na comunidade universitária honesta deste país que se dedica à pesquisa básica.

     

     

    Faço um especial apelo ao novo governo para que reverta esse quadro, a partir do diálogo entre a comunidade científica e os órgãos ambientais e legislativos do país. Se não acreditarmos na nossa comunidade científica, que vive hoje franca expansão, estaremos condenados a ocupar um lugar medíocre entre as nações do futuro.

    A cada hectare de paisagem natural derrubado perdemos muita informação que se extingue com a fauna e flora que a acompanha, muitas vezes superior àquela hoje depositada na totalidade das bibliotecas do planeta. Como país megadiverso temos obrigação moral de minimizar essas perdas. Devemos todos dar o melhor de nós, trabalhando em prol da melhoria do conhecimento, de uma fiscalização mais adequada, do uso sustentado e da repartição de benefícios da diversidade biológica brasileira. Para tal, precisamos de uma legislação ágil e eficiente, que não prejudique o avanço do conhecimento, permitindo-nos explorar e conservar adequadamente nossa maior riqueza.

     

    Miguel Trefaut Rodrigues é professor titular do Instituto de Biociências e ex-diretor do Museu de Zoologia da USP.