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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.2 São Paulo abr./jun. 2003

     

    Centenário

    O PROJETO PORTINARI E A IMAGEM DIGITAL

     

    O país que não preserva os seus valores culturais
    jamais verá a imagem da sua própria alma.

    CHOPIN

     

    Quando começamos o projeto de documentar a obra do pintor Cândido Portinari, em abril de 1979, tínhamos um triplo desafio: localizar, documentar, catalogar e pesquisar obras e documentos sobre a obra, vida e época de Portinari, espalhados por todo o Brasil e no exterior; formatar estes conteúdos, cruzando-os entre si, para criar uma grande base de conhecimentos, não só sobre a obra e a vida de Cândido Portinari (1903-1962), mas também sobre o pensamento de sua geração; instrumentar estes conteúdos, mobilizando-os para uma ação abrangente de inclusão social, de fomento ¾ especialmente junto às crianças e às novas gerações ¾ de valores como a cidadania, a auto-estima, a solidariedade, a justiça, a paz e a não violência. Estes são os valores pelos quais Portinari deu a vida, não só na sua expressão plástica e poética, mas também durante toda a sua longa e sofrida militância política.

    Em 1978, pude constatar pessoalmente que o Museu de Arte Moderna de Nova York possuía mais informações sobre Portinari do que todas as instituições brasileiras que havia visitado. Não havia nenhum catálogo geral, os livros sobre a obra e a vida do pintor estavam esgotados, não se conhecia o paradeiro da maioria das obras, nunca havia sido realizada uma exposição retrospectiva. Lembro-me de um artigo no jornal O Globo, que começava com a manchete: "Portinari, o pintor. Um famoso desconhecido". Ali o repórter Elias Fajardo da Fonseca dizia: "Mais de 95% da obra do maior pintor brasileiro contemporâneo está hoje inacessível ao público, guardada em coleções particulares".

     

     

    Neste desafio inicial, entendemos por obras todas as gravuras, desenhos, e pinturas, incluindo desde os pequenos esboços até os grandes murais. Foram levantadas assim 5,3 mil obras atribuídas a Portinari. Os documentos são: 30 mil cartas, recortes de periódicos (cerca de 12 mil), depoimentos gravados (130 horas gravadas com 65 depoentes), filmes e vídeos, catálogos de exposições e leilões, livros, monografias e textos diversos.

    Para realizar esse levantamento, foram necessários 23 anos, durante os quais o Projeto Portinari percorreu todo o território brasileiro e mais de 20 países das três Américas, da Europa e do Oriente Próximo.

    Nos versos da música Bailes da vida, Milton Nascimento nos ensina que "o artista tem de ir aonde o povo está". Isto é particularmente verdadeiro para o caso de um pintor como Portinari, que legou ao país uma ampla síntese crítica e emocionada de todos os aspectos da vida brasileira. Hoje, quando revejo o caminho percorrido nesses anos, fico maravilhado pelo papel absolutamente determinante e central da ciência e da tecnologia em nosso trabalho. A sensação é a de um milagre. É verdade que o Projeto Portinari contou com a boa fortuna de ter nascido e de ter ser criado na universidade. Mais exatamente, na área científica da universidade. Tenho a convicção que isto fez toda a diferenca. Minha própria história, como um dos fundadores do Departamento de Matemática da PUC-Rio e seu primeiro diretor, certamente contribuiu para este fato inusitado, o de um projeto aparentemente situado na esfera da arte e da cultura nascer do empenho ativo de inúmeros companheiros das áreas das ciências.

    PRESERVAÇÃO DIGITAL O Projeto Portinari adotou uma sistemática rigorosa para a documentação fotográfica, determinando padrões uniformes para formato, tipo de filme e equipamento a ser utilizado, a forma de iluminação do original, a inclusão de escalas de cor e de cinzas junto ao mesmo, os cuidados especiais na revelação das imagens, etc. Apesar de todas essas precauções, o material resultante, especialmente as transparências coloridas, é sabidamente perecível.

    Na época, os métodos para minimizar essas perdas eram pouco confiáveis, geralmente fundamentados no controle da temperatura e da umidade relativa, além da exposição à luz. O Projeto Portinari visitou, nos Estados Unidos, os laboratórios da Kodak em Rochester, o Museu Internacional de Fotografia, o Rochester Institute of Technology, a Polaroid, em Cambridge, além de consultar os maiores especialistas e centros de pesquisa fotográfica de renome mundial. Deduzimos de toda esta busca que outros métodos deveriam ser empregados, métodos que não estavam no universo físico-químico tradicional, mas sim nas novas tecnologias que iam sendo desenvolvidas na área da informática. Surgia, assim, a idéia, e acreditamos que o Projeto Portinari foi um dos primeiros a propô-la publicamente, de preservar esse acervo de transparências através de sua digitalização e armazenamento em meios de grande permanência.

    Fui, entre outros locais de tecnologia de ponta, ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde os colegas do grupo de processamento de imagens, Luiz Alberto Vieira Dias e Nelson Mascarenhas, digitalizaram o slide de uma obra utilizando equipamentos dedicados às imagens de satélites. Lembro-me ainda vivamente da emoção que sentimos ao ver surgir aquele Bumba-Meu-Boi de Portinari na tela do I-100... Quem iria imaginar, naqueles tempos, o extraordinário avanço dessas tecnologias nas décadas seguintes!

    Com efeito, o acervo reunido pelo Projeto Portinari representa um dos mais importantes arquivos multimídia existentes sobre o processo histórico-cultural brasileiro entre as décadas de 20 a 60.

    Sempre fiel à idéia de levar a obra do pintor "aonde o povo está", o programa Brasil de Portinari, dirigido a crianças da rede escolar, desde 1997 recebeu mais de 450 mil crianças, percorrendo todos os estados brasileiros, sem exceção, em 92 exposições interativas. Este programa ampliou-se em vários desdobramentos, atingindo escolas, favelas, populações ribeirinhas, presídios, hospitais, etc.

    Portador deste DNA peculiar, preocupou-se o Projeto Portinari, desde a sua concepção, em imprimir ao seu trabalho características de rigor científico, de sistemática criação de metodologias e de permanente contato com o estado da arte nas aplicações de ciência e tecnologia aos problemas gerados por sua execução.

     

    João Candido Portinari é diretor
    do Projeto Portinari-PUC-Rio