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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.2 São Paulo Apr./June 2003

     

    Literatura

    NO CENTENÁRIO DE GEORGE ORWELL

     

     

    "Vivemos em um mundo louco onde os
    contrários se convertem continuamente
    entre si, os pacifistas se descobrem
    adorando Hitler, os socialistas
    tornam-se nacionalistas, os patriotas
    colaboracionistas,os budistas oram pela
    vitória do exército japonês, e a Bolsa
    sobe se os russos preparam a ofensiva".

    G. ORWELL, Horizonte, set.1943

     

    O século XX será lembrado como uma época de utopias negativas, ou seja, de distopias, do pesadelo social, das sociedades completamente imperfeitas, e isso não apenas no plano das efetividades sociais - os campos de concentração resumem o assunto - mas também no âmbito das formulações literárias.

    Eric Hugh Blair - mais conhecido como George Orwell (1903-1950) - é, com Aldous Huxley, o antiutopista mais famoso do século passado. O primeiro de seus contos utópicos, Animal farm (1945), mesmo não sendo o mais conhecido, é talvez o melhor do ponto de vista literário. O tom faz lembrar Swift ou Voltaire. Certo dia os animais, em uma fazenda, cansados dos maus tratos e guiados pelos porcos, se rebelam contra os homens e libertam-se da opressão. A nova república procura elevar o espírito das massas, que infelizmente são pouco influenciáveis, sobretudos as ovelhas. Reduzem-se portanto os princípios a um só, facilmente assimilável: "Quatro patas é bom; duas pernas é mau", ilustração de um radical maniqueísmo. Logo surgem as discórdias, a situação piora para a maioria, enquanto os porcos no poder isolam-se nos privilégios. O slogan fundamental se torna: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros". Reduzidos novamente à escravidão, os bichos verão os porcos entrarem em acordo com os fazendeiros vizinhos para explorá-los. Contundente e cortante, amargamente irônico, esse breve conto é a obra de um idealista desiludido.

    Foi dito que Orwell desencadeou uma crítica geral a todos os totalitarismos, e que o javali Napoleão encarna ao mesmo tempo Stálin, Hitler, Mussolini e Franco. Pode ser, mas não se deve ignorar a abundância de detalhes que se referem claramente à URSS. O padrão da fazenda é o aristocrático-czarista que suscitou o descontentamento do qual nascerá o discurso de Major, o teórico (Lênin); Napoleão-Stálin elimina Snowball-Trotsky; a festa dos animais cai no dia 12 de outubro; a construção de um moinho lembra o primeiro Plano Quinqüenal; o episódio do encontro de Napoleão com os fazendeiros lembra os encontros entre Stálin e os governos do Ocidente, e por aí vai. Animal farm mostrou a dissolução de todas as revoluções, sempre instrumentalizadas por alguns. Mas isto não faz de Orwell um esquerdista arrependido: ele não desafoga o seu ressentimento com relação ao socialismo, mas contra um socialismo, e a sua amargura se alimenta de uma questão particular.

    Uma luz muito mais trágica ilumina 1984, a obra mais famosa de Orwell, publicada em 1949 e nascida de uma gama de terrores gerada pelas hediondas forças sociais liberadas pela política moderna. Fala da anulação da identidade individual, da corrupção da linguagem através da manipulação ideológica, da falsificação e perda da memória histórica pela ação dos meios de comunicação de massa. Neste famoso romance, Orwell mostrou como um partido único se apodera das mentes, as submete e entrega sem resistência ao Estado onipotente. A guerra permanente entre as superpotências mantém viva a psicose do terror; e foi inventada para "consumir inteiramente os produtos da máquina sem elevar o padrão geral de vida", porque as massas devem permanecer pobres e ignorantes para serem dominadas. Os três super-Estados possuem de fato o mesmo sistema político, e esta guerra não busca outro fim a não ser o de "manter intacta a estrutura da sociedade". Isto explica o slogan "A guerra é paz", que eliminaria todo dissídio interno diante do perigo externo. Em resumo, busca-se o poder pelo poder. Quando estiver destruída a família, erradicado o instinto sexual e absorvida a vontade individual, então "não existirá mais amor senão aquele pelo Grande Irmão". Para alcançar este fim, a filosofia do Partido é simples: não existe realidade exterior à mente que a concebe: dominai as mentes e dominareis a realidade.

    1984 é uma profecia sobre as coisas que virão? Ou, como na sátira swiftiana, um ataque ao presente e uma advertência para que esperemos o pior se não fizermos nada para mudar? Uma anatomia de forma grotesca dos regimes nazista e bolchevique? Para Umberto Eco, pelo menos três quartos desta obra não é distopia, é História. 1984 é um romance, uma obra de imaginação, e como tal pode carregar diversas temáticas com vários níveis de significados. Dela herdamos conceitos como novilíngua, duplo-pensar, Grande Irmão, etc, que entraram para o vocabulário político do Ocidente.

    Nenhuma distopia contemporânea deu margem a tantas discussões sobre seu significado como 1984, e isso é fácil de entender: 1984 foi publicado no ápice da primeira onda histérica da guerra fria, aparecendo no meio do desenvolvimento do mais importante acontecimento político do nosso tempo.Foi inevitável seu uso como uma das armas da guerra fria. Conservadores apoderaram-se da obra, gratos, e usaram-na como propaganda contra a Rússia.

    Os simpatizantes da esquerda podiam por sua vez pensar que o alvo de 1984 fosse o stalinismo, não o socialismo. 1984, como Animal farm, denuncia uma ditadura pessoal e não o socialismo, do qual foi um fervoroso defensor. O romance é obra de um homem que, no clima da guerra fria, vê com angústia formar-se um grande bloco político, diante do qual a revolução russa se degenera numa hipócrita tirania. Isso era suficiente para desiludi-lo, não para fazer dele - como apressadamente se disse - um "conservador moderado". A posição política de Orwell estava publicada em 1937, na sua obra The road to Wigan Pier: "Eu faço parte da esquerda e a essa dedico a minha obra, do mesmo modo como odeio o totalitarismo russo e a sua venenosa influência sobre este país".

    Para os admiradores da obra como fascinante produto de imaginação literária que é, prevalecia que a questão da veracidade ou não da "profecia" orwelliana não dificultasse a compreensão e o valor da obra. Em anos recentes, de fato, proliferaram as interpretações desta obra como alegoria, sátira, autobiografia (lembrança dos internatos da infância), religião, etc. Apesar do surpreendente caráter do seu romance, Orwell não é um inovador. O seu mundo é aquele da II Guerra Mundial, porém mais tétrico e desolador.

    Considerava Orwell em 1944, em carta a H.J.Willmett, que "o mundo parece mover-se na direção das economias centralizadas", e junto a isso "avançam os horrores do nacionalismo emotivo e uma tendência à desconfiança na existência da verdade objetiva, enquanto os fatos devem ajustar-se à palavras e às profecias de qualquer führer infalível. Já em certo sentido a história deixou de existir; isto é, não há nada que possa ser universalmente aceito como a história de nosso tempo".

    Este é, no essencial, o seu juízo.

     

    Carlos Eduardo Berriel é professor do
    Departamento de Teoria Literária do
    IEL-Unicamp. Coordena grupo de
    estudos sobre Renascimento e
    Utopia e prepara antologia de utopias italianas.