SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.2 São Paulo Apr./June 2003

     

     

    COLMÉIA DA NOITE*
    CARPINEJAR

     

    Não durmo, o sono escapa
    como um presságio.
    O fruto retorna à lama do caroço,
    recomeçando o sumo
    das ruínas.

     

    Tento descansar no lado contrário.
    Careço de escuro no próprio escuro.
    Os objetos vão contornando
    a sombra, alforriando os pertences.
    A memória é o hábito de trocar os lençóis,
    mas há manchas que permanecem
    corroendo o tecido. Há manchas que limpam:
    o orvalho, o sêmen, a urina,
    sobras da natureza-morta.

     

    Não durmo, protegida pelos
    punhos cerrados da cama.
    O sol da camisola branca confunde a pele,
    avulso, sufocado na colméia da noite.
    Um assassino rumina no insone,
    sem o perdão de um dia depois do outro.

     

    Distraio os pensamentos
    por alguns minutos. Como ocupá-los
    em madrugadas inteiras?

     

    Uma milícia de abelhas assopra as pálpebras,
    o assobio das asas.
    Assusto-me com o freio das juntas,
    ruído das vértebras e vísceras.
    Não encontro recato, velamento,
    para aquietar o fermento das veias.

     

    Não entendo o silêncio
    e o subestimo como trégua da fala.
    Ele não começa ao cessar as palavras,
    não termina ao pronunciá-las.

     

    Corro ao caminhar lenta,
    os chinelos arrastados, indecisa âncora,
    contrariando o leme e a direção da proa.
    A madeira se move, o solo é volúvel
    como a água. Os ombros carregam
    os parentes e as intrigas.
    Afundada no sopro, arqueio as costas.
    Estou presa à curvatura de um porão
    a céu aberto.

     

    Enquanto as horas passam,
    o rosto pasta. Boi engordando
    o declive do campo.

     

    Amadureci a covardia em sarcasmo.
    Posso rir do sofrimento.
    Mistérios existem para simular profundidade.
    Sou rasa, fútil. Não reverencio a primavera,
    a mais sádica das estações.
    Desde a infância, ela floresce minha asma.

     

    Posso adiar a morte,
    nunca o nascimento.
    É impossível cortar a semente.

     

     

    * Poema do livro inédito Cinco Marias

    Carpinejar é autor dos livros As solas do sol (Bertrand Brasil, 1998), Um terno de pássaros ao sul (Escrituras Editora, 2000), Terceira sede (Escrituras, 2001) e Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002). Recebeu vários prêmios como Cecília Meireles 2002, da União Brasileira de Escritores (UBE); Marengo D'Oro, de Gênova (Itália); duas vezes o Açorianos de Literatura, edições 2001 e 2002; Destaque Literário - Júri Oficial como melhor livro de poesia da 46ª Feira do Livro de Porto Alegre (RS), e Fernando Pessoa, da União Brasileira de Escritores/RJ, em 2000.