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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.3 São Paulo jul./set. 2003

     

     

    COLEÇÕES BOTÂNICAS: DOCUMENTAÇÃO DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA

    Ariane Luna Peixoto
    Marli Pires Morim

     

    A demanda por conhecimento acerca da biodiversidade, em escalas global, regional e nacional, cresceu muito após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992. Os documentos preparatórios para o evento e os compromissos de governo assumidos e agendados, durante e após o evento, trouxeram para os mais diferentes setores da sociedade temas até então considerados apenas do rol dos cientistas. O conhecimento, a conservação e o uso sustentável da fauna, da flora e do ambiente onde vivem animais e plantas fazem parte, com destaque, desses temas. A discussão deles, hoje, perpassa diferentes meios de comunicação e segmentos da sociedade. Isso, embora desejado pelos cientistas, era impensado até antes da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), um dos documentos mais importantes da Conferência de 1992.

    A taxonomia biológica é a ciência que mais diretamente lida com a biodiversidade, especialmente nos níveis de espécies, e também com a diversidade genética. Até recentemente, taxonomistas tinham sua notoriedade apenas entre os seus pares, embora o seu trabalho, desde Lineu, na segunda metade do século XVIII, tenha sido considerado de grande importância e suporte indispensável para uma grande variedade de propósitos. Além do labor de colecionamento, identificação, descrição, estudos da biologia e interrelacionamento entre os táxons, esses cientistas são, de modo geral, chamados para opinarem e emitirem laudos sobre a biodiversidade.

    Taxonomistas de várias partes do mundo, organizados em sociedades científicas, após consultas e discussões amplas, elaboraram a Systematics Agenda 2000: Charting the Biosphere. Neste documento (1) foram traçados objetivos e estratégias visando, predominantemente, a responder questões como: Quais são as espécies do planeta e como elas se relacionam filogeneticamente? Onde elas ocorrem? Quais são as suas características? A missão da taxonomia, para o século XXI, aí estabelecida é descobrir, descrever e inventariar a diversidade de espécies do mundo; analisar e sintetizar as informações oriundas desse esforço em prol da ciência e da sociedade. Wilson (2) afirmou que descrever e classificar todas as espécies vivas do planeta era um dos grandes desafios científicos do século XXI. Ele também fez cálculos do custo econômico dessa tarefa – US$ 500 por espécie, um total de US$5 bilhões distribuídos por 10 ou 20 anos. Cientistas, em vários lugares do mundo, manifestaram-se, mostrando que este não era um valor tão alto, quando comparado com outras demandas de governos. Entretanto, a busca desse montante de recursos parece impossível quando os governos e fundos privados ainda não têm em alta prioridade o inventário da biodiversidade (3).

    Estima-se em 264 mil a 279 mil o número de espécies de plantas conhecidas no mundo, ou seja, de espécies formalmente descritas e documentadas em coleções biológicas (por espécimes, mas também, algumas vezes, por uma iconografia). O Brasil é considerado o país de maior diversidade biológica, destacando-se no ranking mundial de países megadiversos. Abriga cerca de 14% da diversidade de plantas do mundo! (4). Para o território brasileiro estima-se em 45,3 mil a 49,5 mil o número de espécies de plantas descritas (5). Em relação a fungos, estima-se que o planeta abrigue entre 70,5 mil a 72 mil espécies, das quais o Brasil detém 12,5 mil a 13,5 mil espécies descritas. Este alto padrão de diversidade dá ao Brasil extraordinária competitividade diante de demandas ambientais e biotecnológicas, nas quais o capital natural gera grandes benefícios econômicos, convertendo-se, mesmo, em poder.

    Os documentos que certificam a diversidade e a riqueza da flora de uma determinada região ou país encontram-se depositados em coleções botânicas. Essas coleções são bancos de materiais (espécimes ou exemplares) vivos ou preservados e os dados a eles associados. Os jardins botânicos, os arboretos e os bancos de germoplasma são exemplos de coleções vivas. Os herbários, as palinotecas são exemplos de coleções preservadas. Os herbários e outras coleções a eles associadas (carpotecas, xilotecas) são ferramentas imprescindíveis para o trabalho dos taxonomistas e apoio indispensável para muitas outras áreas do conhecimento. O herbário provê o voucher para um grupo de organismos vivos; fornece a base de dados acerca da distribuição geográfica e da diversidade de plantas; guarda a memória de conceitos morfológicos e taxonômicos e a maneira como esses conceitos foram sendo modificados.

    Os cinco maiores herbários do mundo, cadastrados no Index Herbariorum encontram-se listados na tabela 1. O Index Herbariorum lista 3.210 herbários do mundo, fornecendo seus endereços, especialistas vinculados, principais coleções sob sua guarda e outras informações, e entre eles estão 73 brasileiros (6). A Sociedade Botânica do Brasil mantém uma web na UFRGS contendo os principais dados sobre os herbários brasileiros, os taxonomistas e os táxons nos quais trabalham (7).

     

     

    No Brasil há 114 herbários ativos, dos quais cerca da metade detêm menos de 20 mil exemplares; 23 herbários têm mais de 50 mil exemplares. Os seis maiores herbários do Brasil encontram-se listados na tabela 2. Em conjunto, os herbários brasileiros guardam um acervo de pouco mais de 5 milhões de espécimes. A tabela 3 apresenta o quantitativo de espécimes por região geográfica. A densidade de coleta média para o Brasil é de 0,62 espécime por km2. Este valor é muito baixo quando comparado a valores estimados para alguns países de alta diversidade na América Latina, como México e Colômbia. As regiões sudeste e sul concentram os maiores quantitativos de herbários e densidades de coleta. A região norte, com a maior área territorial do país, é aquela que concentra o maior contingente de terras cobertas por ecossistemas naturais, e a que apresenta os menores índices de coleta e a menor quantidade de herbários.

     

     

     

     

    Embora o número de exemplares reunidos nas coleções brasileiras seja significativo e tenha crescido notadamente nas últimas décadas, especialmente devido a implantação de cursos de pós-graduação e de programas de floras estaduais e regionais, representa ainda muito pouco no contingente de acervos dos herbários do mundo. Este fato é contraditório, quando se considera que o país detém cerca de 14% da diversidade vegetal do planeta.

    Prance (11) mostrou o crescimento de alguns herbários no período compreendido entre 1974 e 1990. Na América Latina, os herbários de Bogotá (COL) e México (Mexu) foram os que mais se destacaram. Em 1990, o COL detinha 330 mil exemplares e o Mexu 550 mil, o crescimento correspondendo a 153% e 197%, respectivamente. O herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RB) é apontado como tendo um crescimento de 81%.

    É salutar perceber também o quanto se avançou no conhecimento da flora brasileira. A Flora Brasiliensis, editada por Martius, Eichler & Urban entre 1840 e 1906, descreve 22.767 espécies, das quais 5.689 eram novas para a ciência. Esta obra foi elaborada predominantemente com base em exemplares coletados por naturalistas europeus e enviados para herbários do exterior. Os tipos das espécies aí descritas, bem como outras coleções históricas, encontram-se, portanto, fora do país. O número de espécies conhecido hoje para angiospermas no Brasil representa mais que o dobro daquele citado na obra de Martius e colaboradores. Para os demais grupos de plantas e fungos este número é, então, muito maior. A maioria dos exemplares, especialmente os tipos de espécies descritas após a Flora Brasiliensis, está em herbários brasileiros (9).

    Alguns dados obtidos por grupos de cientistas podem demonstrar os avanços obtidos nos últimos anos, mas, principalmente, sinalizam o quanto ainda precisa se conhecer sobre a flora do Brasil, mesmo em regiões consideradas bem estudadas. Demonstram que novas espécies ou novas citações de ocorrências de táxons, independem da área geográfica abrangida ou do grupo vegetal em estudo. A Flora Fanerogâmica do estado de São Paulo tem dados publicados sobre 56 famílias, abrangendo 895 espécies. A obra completa compreenderá 7,5 mil espécies distribuídas em 180 famílias. Na análise de 49 famílias, algumas com dados ainda parciais, 43 táxons foram descritos como novos para a ciência e 121 novas ocorrências foram registradas para São Paulo, incluindo uma família botânica, Ceratophyllaceae (11). Foram assinaladas, também, espécies não reencontradas em campo, sugerindo que as mesmas estejam extintas no estado pela destruição de seus ambientes naturais, ou que sejam espécies raras ou com áreas de distribuição muito restrita. A documentação destes táxons não recoletados em São Paulo restringem-se hoje, apenas, aos exemplares guardados nas coleções de herbário. Na reserva ecológica de Macaé de Cima, no estado do Rio de Janeiro, onde foram identificados 883 espécies de angiospermas, 17 eram novas para a ciência (12). No município do Brejo da Madre de Deus, um inventário da bioflora dos musgos pleurocárpicos em uma propriedade de 700 hectares, revelou que das 23 espécies inventariadas para o local, seis eram novas ocorrências não apenas para aquela área, mas para o nordeste brasileiro (13).

    Conhecer as espécies de plantas e fungos que ocorrem no território brasileiro, organizar as informações e os dados a elas relacionadas e disponibilizar este conhecimento visando o progresso da ciência e o bem estar da sociedade são questões que necessariamente precisam perpassar pelo planejamento estratégico do país. O desconhecimento da biota brasileira torna o país vulnerável em muitos campos entre os quais cabe destacar a descoberta de novos fármacos, o patenteamento de processos biológicos e a impossibilidade de fazer parcerias verdadeiras com instituições científicas de diferentes países, de modo que ambos os lados possam obter dividendos do conhecimento gerado.

     

     

    Como vencer este desafio com um contingente criticamente pequeno de taxonomistas e com a maioria das coleções ainda não estruturadas para atender a crescente demanda de serviços? Qualquer modificação no status atual do conhecimento sobre a biodiversidade de modo a se alcançar patamares muito mais altos passa, essencialmente, pelo estabelecimento de um programa consistente e continuado de estímulo à formação de recursos humanos na área de taxomomia. Sem taxonomistas bem formados o país fica frágil diante dos compromissos assumidos na CDB e da impossibilidade de diagnósticos seguros de diferentes componentes da biodiversidade.

    Os herbários hoje informatizados vêm respondendo com muito mais agilidade às perguntas dos cientistas, dos gestores da área ambiental e também de outros segmentos da sociedade. Os herbários da Universidade Estadual de Feira de Santana (Huefs), com 65 mil espécimes, e o da Embrapa Amazônia Oriental (IAN) com 295 mil, totalmente informatizados, quando consultados, respondem de forma ágil com informações diversas sobre o acervo. Muitas vezes as respostas recebidas satisfazem às dúvidas e questões levantadas pelos estudantes e cientistas, evitando assim deslocamentos até as coleções e o manuseio do material. Este fato diminui os custos de pesquisa e agiliza o processo de geração do conhecimento. Entretanto, a informatização dos herbários brasileiros ainda é incipiente. Apenas 52% deles estão com mais da metade ou com o acervo totalmente informatizado (8). Neste contingente estão, principalmente, os herbários com acervos de menos de 20 mil exemplares. Por outro lado, 11% dos herbários sequer iniciaram o processo de informatização, estando entre eles alguns dos grandes herbários do país (8).

    A automação dos serviços de gerenciamento dos acervos vem modificando o labor curatorial. Entretanto é possível prever alterações muito maiores que poderão interferir em procedimentos desde a coleta de espécimes até a disponibilização de suas imagens na internet. O georeferenciamento de amostras constitui-se em informação essencial para correlacionar dados de diferentes origens, tanto bióticos como abióticos. A sua inclusão no protocolo de campo das amostras vem sendo cada vez mais requerida. A valorização de imagens de campo e de herbário facilitará o acesso a muitos caracteres e informações. O conceito de herbário virtual ainda está por ser definido. Os herbários virtuais hoje disponíveis compreendem predominantemente webs interativas com base de dados de nomes científicos que possibilitam consulta remota. Alguns já dispõem de imagens associadas aos nomes. O herbário do futuro certamente será muito diferente do atual, embora o espécime colecionado em campo e convenientemente armazenado certamente continuará sendo a sua pedra de toque. Entretanto, o que parece prioritário e não muito distante da realidade brasileira é a integração, dentro de cada herbário, de todas as suas coleções. Partes diferentes de uma mesma planta, como madeira, flores fixadas, folhas em gel de sílica para estudos de DNA e a exsicata, propriamente dita, com o mesmo código de acesso. Ou seja, interoperabilidade de diferentes bases de dados.

    As incongruências e conflitos nas estratégias adotadas por diferentes setores de governo visando inventários de biodiversidade em áreas naturais, especialmente em Unidades de Conservação (UC), vêm dificultando ou até inviabilizando o desenvolvimento de pesquisas básicas e essenciais para o avanço do conhecimento sobre a biota e os ecossistemas do país. Isto é contraditório, tendo em vista que entre as prioridades das UCs, e dos órgãos que as administram, estão expressos os inventários. Também são pouquíssimas as fontes de fomentos específicas e desburocratizadas, que priorizam projetos de inventários; que reconhecem que o enriquecimento de coleções científicas com exemplares colecionados dentro de padrões pré-estabelecidos é prioritário para a conservação.

    A globalização dos esforços necessários para a implementação da Convenção da Diversidade Biológica vem promovendo, através de vários mecanismos, a ampliação de canais de diálogos entre cientistas, sociedade e governos. A discussão de problemas como a mensuração, avaliação, conservação e sustentatibilidade da diversidade biológica e de seus componentes é feita não apenas nos museus e herbários, mas em diferentes fóruns de governo e de sociedade. A internet facilitou a divulgação das informações e dados, numa escala que era impensável há alguns anos.

    A guarda da coleção, como patrimônio no qual cada exemplar é único e insubstituível, é a principal tarefa das instituições que detêm esses acervos e dos órgãos que as mantêm. Entretanto, o futuro dos herbários depende, em grande parte, da sua habilidade de absorver e adaptar novas metodologias e tecnologias, e de compreender demandas já manifestas pela sociedade. A mudança de paradigma das coleções depende também de uma política governamental voltada aos acervos biológicos com investimentos apropriados e permanentes.

     

    Ariane Luna Peixoto é professora titular aposentada da UFRRJ, coordenadora do programa de pós-graduação do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
    Marli Pires Morim é pesquisadora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

     

     

    Referências bibliográficas

    1. SA2000. "Systematics Agenda 2000: Charting the Biosphere". Technical Report. New York. 34p. 1994.

    2. Wilson, H.D. A global map of biodiversity. Science 298: 2279. 2000.

    3. Heywood, V. Floristics and monography – na uncertain future? Taxon 50: 361-330. 2001.

    4. Shepherd, G.Conhecimento de diversidade de plantas terrestres do Brasil. In: Lewinsohn, T.M. & P.I. Prado. Biodiversidade brasileira. Síntese do estado atual do conhecimento. São Paulo.Contexto. 2002

    5. Lewinsohn, T.M. & , P.I. Prado. Biodiversidade brasileira. Síntese do estado atual do conhecimento. São Paulo.Contexto. 2002

    6. Holmgren, P. K. & Holmgren, N. H. Index Herbariorum, ed. 8. [http:// www.nybg.org/ bsci/ih/ih.html ]. 2003

    7. [http://www8.ufrgs.Br/taxonomia]

    8. Peixoto, A.L. & Barbosa., M.R.V. 2002. "The currente situation in Brazil: general strategies, regional differences, local floras, state-level floras and herbarium databasing". [http://www.cria.org/html].

    9. Silva, M.M.F., Carvalho, L.F. e Baungratz, J.F.A. O Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – um expoente na história da flora brasileira. Rio de Janeiro. JBRJ. 2001.

    10. Prance, G.T. 2001. Discovering the plant world. Taxon 50: 295-359.

    11. Mamede, M.C. ined. "A experiência do projeto Flora Fanerogâmica do estado de São Paulo". In: Peixoto, A.L. (org.). Coleções biológicas de apoio ao inventário, uso sustentável e conservação da biodiversidade. No prelo.

    12. Guedes-Bruni, R.R & Lima, M.P.M. "Abordagem geográfica, fitofisionômica, florística e taxonômica da reserva ecológica de Macaé de Cima". In: M. P. M. Lima & R.R. Guedes-Bruni, (org). Reserva ecológica de Macaé de Cima, Nova Friburgo, RJ: Aspectos florísticos das espécies vasculares. V.1. Rio de Janeiro. JBRJ.1994.

    13. Valdevino, J.A; Sá,P.S. A & Porto, K.C. Musgos pleurocárpicos da Mata Serrana de Pernambuco, Brasil. Acta Bot.Bras. 16(2): 161-174. 2002.