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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003

     

     

    CENTROS DE RECURSOS BIOLÓGICOS: SUPORTE AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA

    Vanderlei Perez Canhos

     

    COLEÇÕES MICROBIOLÓGICAS EX-SITU Microrganismos e material biológico têm sido historicamente preservados e distribuídos por coleções de culturas de microrganismos, bancos de sementes e repositórios de tecidos de células humanas e animais. Os diferentes tipos de coleções, sejam elas de trabalho, institucionais ou de serviço, têm uma importância destacada na conservação e exploração da diversidade genética e metabólica de microrganismos e culturas de tecidos de células. O material biológico destas coleções é matéria-prima para a obtenção dos mais variados produtos biotecnológicos incluindo fármacos, alimentos, bebidas alcoólicas e ácidos orgânicos. São também utilizados na biorremediação de resíduos industriais e no tratamento de esgotos domésticos. Na agricultura, os microrganismos são importantes na fixação biológica de nitrogênio e no controle biológico de pragas. Culturas puras obtidas de coleções de referência são utilizadas em atividades de ensino, estudos taxonômicos, identificação de patógenos e testes de controle de qualidade de produtos e materiais (1). Portanto, o material biológico conservado por métodos adequados em coleções de culturas tem uma ampla gama de aplicações nas áreas de saúde, agropecuária, indústria e meio ambiente. A estimativa do mercado global para produtos derivados de recursos genéticos nas áreas de fármacos, fitofármacos, agricultura e outras aplicações biotecnológicas situa-se na faixa de US$ 500 a US$ 800 bilhões por ano (2).

     

     

    EVOLUÇÃO DAS COLEÇÕES DE SERVIÇO Coleções microbiológicas ex-situ podem ser classificadas como coleções de trabalho, coleções institucionais ou coleções de serviço. Como infra-estrutura fundamental na conservação e distribuição de recursos genéticos, com a finalidade de pesquisa e desenvolvimento, as coleções de serviço merecem atenção especial e contam com financiamento de longo termo em países industrializados. A primeira coleção de serviço que se tem registro, é a Coleção Kral, estabelecida em Praga, em 1890, com a finalidade de fornecer culturas puras para estudos comparativos e identificação de bactérias patogênicas. No início do século 20, outras coleções de serviço foram estabelecidas na Europa, Estados Unidos e Japão, com a finalidade básica de conservar e fornecer material de referência para estudos taxonômicos. Estas coleções passaram por um contínuo processo de evolução, visando atender demandas especializadas decorrentes do avanços na microbiologia industrial (década de 60), biotecnologia (década de 80) e engenharia genética e genômica (década de 90).

    Existem cerca de 470 coleções de culturas de microrganismos e células registradas no Centro Internacional de Dados da Federação Mundial de Coleções de Culturas (3). Destas, cerca de 20 coleções abrangentes podem ser enquadradas como coleções de serviço e contam com forte respaldo governamental. As demais, cerca de 450, são classificadas como coleções especializadas de trabalho ou coleções institucionais de acesso restrito. Embora valiosas, essas coleções não contam com o respaldo necessário para assegurar a sua perenidade, sendo normalmente mantidas pelo esforço individual de pesquisadores.

    A consolidação das principais coleções internacionais como infra-estrutura para a prestação de serviços ocorreu nas últimas duas décadas. O mesmo não ocorreu com as coleções de países em desenvolvimento, em função da ausência de políticas adequadas para o setor, recursos limitados e falta de demanda industrial qualificada.

    A MUDANÇA DE PARADIGMA Na última década, mudanças profundas de cunho político, regulatório e tecnológico afetaram a forma de operação de coleções de serviço de interesse biotecnológico, criando novos desafios que devem ser superados. Entre os desafios a serem vencidos, destaca-se a necessidade de desenvolvimento de capacidade institucional (infra-estrutura e recursos humanos) que garanta o depósito de material biológico em coleções nacionais, de acordo com as regras estabelecidas na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). No Brasil, é urgente a necessidade de se equacionar problemas de infraestrutura para depósito de material biológico associado ao acesso monitorado, conforme Medida Provisória n° 2.186-16, de 2001, que dispõe sobre o acesso e remessa de material biológico e repartição de benefícios advindos do uso dos recursos genéticos.

    Outro problema a ser equacionado é o credenciamento e implantação de centros depositários de material biológico associado a processos de patentes, de acordo com a Lei de Propriedade Industrial vigente no país. Não existe, até o momento, nenhuma autoridade depositária de material biológico para fins patentários na América Latina.

    Mudanças no marco legal internacional referente às questões de bioética, bioterrorismo e segurança biológica, estão resultando na imposição de medidas muito restritivas de acesso ao material biológico patogênico. Essas restrições incluem o acesso a material de referência, importante para o controle epidemiológico de doenças infecciosas, controle de pragas agrícolas e testes de qualidade de produtos industriais, como cosméticos e desinfetantes.

    Em 1998, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estabeleceu um grupo de trabalho para discutir os desafios e as oportunidades associadas ao estabelecimento de uma Rede Global de Centros de Recursos Biológicos. O documento resultante recomenda o estabelecimento dessa rede, a ser construída a partir das competências existentes, mas de forma inclusiva, de modo a abrigar novas coleções com perfil complementar (4).

    A definição da estratégia para a implementação dessa rede global está sendo objeto de estudo de grupo de trabalho, no âmbito do programa de biotecnologia da OCDE. Composto por representantes de países membros da OCDE e especialistas no tema, o grupo concentra esforços na definição de sistemas de acreditação e critérios de qualidade, em padrões de operação de centros de recursos biológicos e na abordagem de questões associadas à biossegurança e harmonização de legislação.

    TECNOLOGIA DE INFORMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO Avanços nas áreas de genômica e proteômica, e estudos de prospecção da biodiversidade estão gerando novos materiais biológicos, variando de genes a organismos, e aumentando a demanda por estudos in silico (computacional) visando a obtenção da síntese do conhecimento existente. Os dados de seqüências e seus sub-produtos, incluindo bibliotecas genômicas, chips de proteínas e microarrays de expressão, devem ser preservados juntamente com o material biológico, e devem ser disponibilizados, assegurando os direitos de propriedade intelectual.

    A integração transparente entre sistemas de informação relevantes está sendo catalisada pela adoção de padrões e protocolos recomendados pelo GBIF, permitindo cruzar dados de microrganismos com informações científicas e tecnológicas (5).

    O Sistema de Informação de Acesso a Recursos Biológicos (Cabri) é uma iniciativa da União Européia que integra as principais coleções ex-situ de microrganismos e células, via sistema federado de bancos de dados acessível via internet (6). São 26 catálogos integrados com cerca de 90 mil ítens, incluindo células humanas e animais, bactérias e arqueas, fungos e leveduras, plasmídeos, fagos, sondas de DNA, células de plantas e vírus. Essa iniciativa está facilitando a implementação da Rede Européia de Centros de Recursos Biológicos (7). A rede tem como missão facilitar e ampliar a oferta de produtos biológicos de qualidade para a comunidade científica e industrial. Novos centros com padrões de qualidade aceitáveis estão sendo incorporados à rede.

     

     

    A SITUAÇÃO DAS BRASILEIRAS Embora o Brasil se destaque no quadro internacional pela capacidade institucional, quando comparado com outros países em desenvolvimento, o sistema existente de coleções de serviço é ainda bastante incipiente, em função da falta de uma política adequada para o setor (8).

    Na área de saúde, o exemplo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é significativo na medida que congrega no Instituto Oswaldo Cruz, 11 centros de referência nacionais, 5 centros colaboradores da Organização Mundial da Saúde, e 14 coleções de culturas, sendo 10 setoriais e 4 institucionais. É exemplo da complexidade da matéria, pois reflete o convívio simultâneo de coleções institucionais com coleções especializadas de trabalho. É necessário adotar medidas que permitam um tratamento sistêmico, que possibilitem consolidar as coleções permanentes de serviço da Fiocruz de forma integrada a um sistema nacional de centros de recursos biológicos a ser instituído.

    No setor da agricultura, o conhecimento sobre a diversidade de organismos diretamente relacionados à fertilização biológica de solos encontra-se em estágio avançado, em decorrência dos esforços da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A Coleção de Culturas de Bactérias Diazotróficas da Embrapa- Agrobiologia possui um acervo valioso que inclui linhagens relevantes para a elucidação dos mecanismos de fixação biológica de nitrogênio e suas aplicações tecnológicas. A coleção registra informações taxonômicas, ecológicas e fisiológicas sobre as linhagens do acervo. A Coleção de Culturas de Fitobactérias, do Laboratório de Bacteriologia Vegetal, do Instituto Biológico de São Paulo, mantém um acervo que constitui a maior fonte de linhagens bacterianas fitopatogênicas oriundas de áreas tropicais.

    Na área da genômica funcional, o Brasil conta hoje com uma significativa capacidade instalada para a execução de projetos de seqüenciamento de genes. Esses avanços criam a necessidade de se estabelecer uma estratégia adequada para a estocagem e distribuição dos clones gerados nos diversos projetos genoma, assim como no tratamento adequado para a integração da informação associada a este tipo de material biológico. O Centro Brasileiro de Estocagem de Genes - Brazilian Clone Collection Center- (BCCCenter) foi criado para viabilizar a estocagem e distribuição dos clones gerados nos projetos financiados pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Inaugurado em 2001, o BCCCenter é o único centro de estocagem de genes da América Latina especializado em genes de plantas e fitopatógenos.

    Na setor de meio ambiente e indústria, a Coleção de Culturas Tropical (CCT) estabelecida, em 1988, como coleção de serviço, teve um papel de destaque na capacitação de recursos humanos e prestação de serviços especializados durante a década de 90. Em função dos recursos públicos limitados para a sua manutenção e da falta de visão e compromisso institucional, a coleção foi desestruturada em 2001. A Coleção Brasileira de Microrganismos de Ambiente e Indústria (CBMAI) estabelecida, em 2001, com o respaldo institucional da Universidade Estadual de Campinas, está se estruturando para atender a demanda por serviços técnicos especializados neste setor.

    A REORGANIZAÇÃO DAS COLEÇÕES BRASILEIRAS O início de um tratamento organizado, visando o desenvolvimento de uma política para a consolidação de coleções de serviço, deu-se no final dos anos 80 através do Programa Setorial de Coleções de Culturas (PSCC) da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Na década seguinte, o apoio a coleções selecionadas através de processo competitivo, teve continuidade no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT). Mais recentemente, o apoio a coleções foi retomado no programa de biotecnologia e recursos genéticos do MCT (9) visando a consolidação de uma rede de centros de serviços com coleções abrangentes e permanentes nas áreas de saúde, agricultura, meio ambiente e indústria. No futuro, a rede consolidada de coleções de serviço deverá ser ampliada de forma a integrar centros de referência, coleções especializadas e autoridades depositárias de material biológico para fins patentários.

    Com objetivo de catalogar e integrar os dados dos acervos existentes em coleções nacionais, o ministério está apoiando o desenvolvimento e a implementação do Sistema de Informação de Coleções de Interesse Biotecnológico (Sicol) (10). Lançado em 2002, o Sicol reúne informações de 17 coleções de culturas, em um sistema de informação on-line através do qual o usuário pode localizar linhagens de microrganismos, e cruzar dados taxonômicos (Species 2000), dados de literatura científica (Scielo e PubMed) e informações de genomas (GenBank), agregando valor ao material biológico das coleções brasileiras.

    Em 2001, no escopo do Programa de Tecnologia Industrial Básica (11) o MCT constituiu um grupo de trabalho cujo produto foi a publicação do documento "Sistema de Avaliação da Conformidade de Material Biológico" (12). O documento traz uma análise do estado da arte no setor e recomenda uma política de fomento para a construção da base técnica de um sistema de avaliação da conformidade de material biológico, de forma a ampliar a oferta de material biológico certificado, estimulando o seu uso em pesquisas científicas e inovação tecnológica.

    DE COLEÇÕES DE SERVIÇO À REDE BRASILEIRA DE CENTROS DE RECURSOS BIOLÓGICOS O material biológico certificado é um recurso de alto valor agregado, presente em inúmeros produtos dos mais diversos setores da economia. O acesso de insumos e produtos ao mercado internacional estará sujeito, de forma crescente, a uma complexa legislação, constituindo-se potencialmente em barreiras sanitárias e comerciais. A superação destas barreiras dependerá da criação de uma estrutura de serviços tecnológicos que responda aos procedimentos de avaliação da conformidade e que sejam capazes de fornecer, mediante certificação e formas correlatas, a evidência de que os produtos atendem a requisitos técnicos especificados em normas e regulamentos. As exigências relativas à qualidade dos materiais biológicos para quaisquer fins representam um grande salto na agregação de valor aos produtos decorrentes de aplicações industriais, agrícolas, de saúde e ambientais. Por outro lado, tais exigências demandam significativo investimento na organização da base técnica laboratorial, na formação de quadros técnicos e intermediários e no estabelecimento de logística que garanta a prestação de serviços em ambiente de alta confiabilidade quanto aos quesitos de biossegurança, rastreabilidade, sigilo e proteção patentária.

    A transformação de coleções de serviço em centros de recursos biológicos depende da definição de uma política de Estado, que assegure a capacitação contínua de centros credenciados e a consolidação de um sistema de informação que assegure a integração dos esforços. Isto só será possível através de adoção de uma estratégia que garanta o apoio de longo prazo aos centros componentes da rede, associado a um mecanismo de avaliação de qualidade e de desempenho.

     

    Vanderlei Perez Canhos é diretor do Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA) e membro da Diretoria Executiva da World Federation for Culture Collections-WFCC.

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Canhos, V.P. e Manfio, G.P. Microbial Resource Centres and Ex-Situ Conservation. Em: Applied Microbial Systematics, Pags: 421- 446. Editores F.G. Priest e M. Goodfellow. Kluwer Academic Publishers. 2000.

    2. Ten Kate, K. e Laird, S.A. The commercial use of biodiversity: access to genetic resources and benefit-sharing – Earthscan Publications Ltd, London. 1999.

    3. WFCC, World Federation for Culture Collections www.wfcc.info

    4. OCDE, Biological Resource Centers: underpinning the future of life sciences and biotechnology, Paris, França. 66 p. 2001. http://www.SourceOECD.org

    5. Canhos, V.P. "Informática para Biodiversidade: padrões, protocolos e ferramentas." Ciência e Cultura 55 (2): 45-47. 2003.

    6. CABRI, Common Access to Biological Resources Information www.cabri.org

    7. European Biological Resources Centers Network - EBRCN

    8. Canhos, V.P., Umino C. e Manfio, G.P. Coleções de Culturas de Microrganismos. Em: Biodiversidade do Estado de São Paulo, Brasil: síntese do conhecimento no final do século XX. Volume 7: Infra-estrutura de Conservação in-situ e ex-situ, Pags 81-101, Editores: M. C. W. de Brito e C.A. Joly Fapesp, São Paulo, Brasil. 1999. http://www.biota.org.br

    9. MCT, 2002. Programa de Biotecnologia e Recursos Genéticos – Definição de Metas. Ministério da Ciência e Tecnologia. Brasília, DF. MCT, SEPCT, CGBI, 47p.

    10. SICol – Sistema de Informação sobre Coleções de Interesse Biotecnológico sicol.cria.org.br

    11. MCT. Programa Tecnologia Industrial Básica e Serviços Tecnológicos para a Inovação e Competitividade. Ministério da Ciência e Tecnologia. Brasília, DF. MCT, SEPTE, CGPT. 100p. 2001.

    12. MCT. Sistema de Avaliação de Conformidade de Material Biológico. 2002. www.mct.gov.br/Temas/Desenv/MaterialBiologico.pdf