SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número3 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.3 São Paulo jul./sep. 2003

     

     

    DOENÇAS E SEUS IMPACTOS SOBRE A BIODIVERSIDADE

    José Luiz Catão-Dias

     

    Os mico-leões pretos (Leontopithecus chrysopygus) são primatas neotropicais originalmente encontrados na mata atlântica dos estados de São Paulo e Paraná. Devido à constante destruição de seu habitat, esses delicados animais são considerados uma das espécies de primatas mais ameaçadas de extinção em todo o mundo (apêndice I – Cites), sendo que levantamentos faunísticos recentes apontavam a existência de aproximadamente apenas 900 indivíduos em vida livre (1).

    Em dezembro de 1997, uma fêmea jovem de mico-leão-preto foi capturada por um fazendeiro nos arredores da cidade de Buri, SP, e encaminhada a um zoológico da região, onde permaneceu dividindo o recinto com outros calitriquídeos. Poucos meses após, durante uma visita técnica ocasional, alguns biólogos e veterinários identificaram o indivíduo como sendo um raro exemplar de mico-leão-preto. De posse desta informação, os orgãos competentes pelo manejo dos Leontopithecus spp determinaram, em agosto de 1998, a transferência do animal para um outro zoológico do interior de SP. Aproximadamente 20 dias após a transferência, o mico-leão-preto apresentou-se subitamente anoréxico, prostrado, hipotérmico e dispnêico. Apesar da intervenção clínica imediata, o animal morreu em poucas horas. Exames necroscópicos, histopatológicos e imunoistoquímicos estabeleceram a causa de morte como sendo toxoplasmose, uma zoonose causada por um protozoário intracelular obrigatório, o Toxoplasma gondii. A toxoplasmose é uma enfermidade transmitida, principalmente, através da ingestão de oocistos esporulados presentes nas fezes de gatos domésticos e algumas espécies de felídeos selvagens, os únicos hospedeiros definitivos conhecidos. Há décadas sabe-se que os primatas neotropicais em geral, e os Leontopithecus spp em especial, são particularmente suscetíveis à toxoplasmose, com taxas de letalidade próximas a 100%. Por outro lado, também há décadas, sabe-se que a prevenção é a melhor ferramenta para o controle da toxoplasmose entre platirrinos.

    Em resumo, os esforços na conservação de uma espécie criticamente ameaçada, renovados pela descoberta de um indivíduo jovem, possivelmente oriundo de um grupo não consangüíneo aos já conhecidos, foram subitamente abalados por conta de uma doença conhecida e possível de ser prevenida.

    O relato acima (2) evidencia uma situação que a cada dia recebe mais atenção por parte dos técnicos e pesquisadores envolvidos na questão conservacionista: o impacto das doenças, em especial as infecto-parasitárias, sobre a preservação da biodiversidade. O presente texto visa brevemente historiar e abordar alguns aspectos deste processo, e sinalizar perspectivas futuras.

    ENFERMIDADES E SEU IMPACTO SOBRE A MANUTENÇÃO DE ANIMAIS EM VIDA LIVRE E EM CATIVEIRO Há muito sabe-se que as enfermidades, em especial as infecto-parasitárias introduzidas em um novo habitat, exercem marcante impacto sobre a manutenção da biodiversidade. Por outro lado, é relativamente comum pesquisadores conservacionistas manifestarem ignorância sobre o efeito catastrófico de certas epizootias, tanto que já em 1933 Leopold afirmou que "o papel das doenças na conservação da vida selvagem tem sido radicalmente subestimado" (3).

    Muitos são os relatos disponíveis descrevendo os efeitos das doenças sobre populações de animais em vida livre, valendo a pena destacar algumas situações de significado histórico emblemático.

    Durante as expedições do início do século passado para a conquista do pólo sul, acredita-se que os cães utilizados para o transporte de trenós tenham transmitido o vírus da cinomose canina às focas caranguejeiras habitantes das costas da Antártica, levando à ocorrência de extensa mortalidade nestes animais (4). O mesmo vírus, dessa vez disseminado por cães domésticos pertencentes a moradores do entorno da região do Chobe National Park, Botswana, foi incriminado pela extinção do cachorro do mato africano (Lycaon pictus) naquela região, em 1991. (5). Por sua vez, a peste bovina, introduzida na África setentrional em 1888, disseminou-se rapidamente pela região sub-saárica, atingindo a África do Sul em 1896. Em seu caminho, a peste bovina causou a devastação de grandes populações de herbívoros silvestres, incluindo búfalos (Syncerus caffer), elands (Taurotragus oryx), kudus (Tragelaphus strepsiceros) e gnus (Connochaetes taurinus). Mesmo depois de mais de um século, os efeitos sócio-econômicos deste processo são sentidos na África meridional (6). Recentemente, uma grande epizootia causada por um flavivírus (West Nile virus), além de ocasionar o óbito de mais de uma dezena de pessoas, causou a morte de milhares de aves selvagens, de múltiplas espécies, em diversos estados da costa leste e centro-oeste dos Estados Unidos. O significado dessa mortalidade sobre a avifauna norte-americana ainda está para ser descoberta.

    Por outro lado, sabe-se que a ocorrência de doenças exerce uma marcante influência sobre o sucesso ou o fracasso de programas de manutenção de espécies selvagens em cativeiro. Muitos são os exemplos que sustentam esta afirmação. Dentre 48 mortes de gorilas investigadas em diversos zoológicos, a maioria sucumbiu devido à enterocolite infecto-parasitária, sendo as bactérias Shigella sp. e Salmonella sp., e os parasitas Balantidium sp. e Strongyloides sp., os mais importantes agentes identificados (7). O Toxoplasma gondii tem sido incriminado como um dos mais importantes e devastadores patógenos de primatas neotropicais mantidos em cativeiro (2,8). Sá e colaboradores descreveram um surto de leptospirose em cebídeos recém-capturados da natureza durante enchente de hidroelétrica e transferidos para um zoológico do interior do estado de São Paulo (9). O programa de propagação em cativeiro do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) sofreu sério abalo quando vários indivíduos morreram por conta da hepatite dos calitriquídeos, uma virose emergente causada por um arenavírus de roedor (10). Em levantamento retrospectivo de 20 anos, as principais causas de morte de 69 guepardos (Acinonyx jubatus) mantidos em cativeiro na África do Sul foram revistas, demonstrando-se que a mais relevante foi a gastrite associada com organismos assemelhados à Helicobacter (11).

     

     

    DOENÇAS E SEU IMPACTO SOBRE OS PROGRAMAS DE REINTRODUÇÃO E TRANSLOCAÇÃO Para muitas espécies de animais criticamente ameaçadas de extinção, uma das poucas alternativas de sobrevivência existente é a adoção de práticas intensivas de manejo e movimentação de indivíduos, seja através de translocações, seja por meio de propagação em cativeiro e subseqüente reintrodução

    Porém, "...a soltura de animais, seja através da translocação de espécimes de uma população natural para outra, da introdução de animais nascidos em cativeiro em uma população natural ou do retorno de animais reabilitados à natureza após algum tempo em cativeiro, implica em algum nível de risco de transmissão de doenças" (12).

    Exemplos desse risco estão amplamente descritos na literatura especializada. Castle & Christensen relataram a existência de hematozoários em perus selvagens translocados no meio-oeste norte-americano, e alertaram para a possibilidade da introdução de Plasmodium kempi em populações originalmente isentas (13). Um surto de psitacose, originário de aves ornamentais importadas dos EUA, colocou em risco 132 psitacídeos de um programa de propagação em cativeiro para posterior reintrodução nas florestas da Costa Rica (14). Metzer historiou o impacto de algumas doenças sobre as populações nativas e em programas conservacionistas na África meridional (6).

    Existem quatro cenários principais de transmissão de doenças, associados com programas de reintrodução e translocação: 1) introdução de uma doença nova em um ambiente através de um animal selvagem translocado/reintroduzido; 2) transmissão de uma doença localmente existente na população selvagem para animais translocados/reintroduzidos; 3) transmissão de uma doença de um animal selvagem translocado/reintroduzido para animais domésticos existentes na área de soltura; 4) transmissão de doenças de animais domésticos existentes na área de soltura para uma espécie selvagem translocada/reintroduzida (15).

    Apesar do conhecimento desses cenários e dos riscos implícitos, muito pouco se sabe sobre as especificidades de cada situação, sendo consensual entre os pesquisadores da área que as informações existentes sobre incidência e distribuição de doenças nas populações cativas e, em especial em vida livre, são insuficientes (12). Além disso, a freqüência com que o monitoramento médico-veterinário é efetuado durante translocação/reintrodução de animais selvagens é muito pequena, permanecendo abaixo dos índices de 60%, 50% e 40% para répteis, aves e mamíferos, respectivamente (16).

    Nesse sentido, diversos pesquisadores têm proposto procedimentos gerais, com vistas a qualificar e quantificar o estado sanitário, tanto dos animais a serem translocados/reintroduzidos, como das populações nativas no local de soltura. Dessa forma, trabalhos com tal abordagem foram realizados com pandas gigantes (Haleropoda melanoleuca) na China (17), com lêmures (Varecia variegata) em Madagascar (18), com diversas espécies nativas da Nova Zelândia (19), e com micos-leões dourados (Leontopithecus rosalia) (20).

    Finalmente, em 2000, a Oficina Internacional de Epizootias (OIE) apresentou detalhados protocolos de quarentena e vigilância sanitária para peixes, anfíbios, répteis, aves e diversas famílias de mamíferos, a serem adotados previamente à soltura/liberação de animais na natureza (21).

    VIGILÂNCIA E MONITORAMENTO DE PATÓGENOS INFECIOSOS EM ANIMAIS SELVAGENS: POR QUE FAZER? A determinação da incidência e da distribuição dos patógenos, especialmente os infeciosos, nas populações selvagens cativas e de vida livre é tarefa urgente e prioritária (14). Isto se deve, principalmente, ao fato de que a qualificação/quantificação do risco da ocorrência de uma determinada enfermidade, e conseqüentemente de seu impacto sobre a biodiversidade, é dependente e subordinado ao conhecimento das informações epidemiológicas dos agentes mórbidos e de suas relações com os hospedeiros potenciais (22).

    No Brasil, em virtude de sua magnífica biodiversidade, e do estado delicado em que muitas espécies animais se encontram, é urgente a implementação de pesquisas, além do apoio as já existentes, que investiguem a ocorrência natural de patógenos e suas correspondentes enfermidades. Sem esse conhecimento, trabalhos conservacionistas importantes correm o grave risco de estarem destinados ao fracasso, seja pela morte de animais translocados e/ou reintroduzidos, seja pela possibilidade de induzirem desastres ecológicos, por meio da introdução de doenças em habitats originalmente isentos.

    Em suma, nos nossos dias, com a constante ação antrópica sobre o meio ambiente e a conseqüente degradação da natureza, a compreensão dos processos naturais das doenças nos animais, suas dinâmicas e impactos nas populações selvagens, é uma ferramenta valiosa em prol da conservação de nossa riquíssima biodiversidade.

     

    José Luiz Catão-Dias é médico veterinário, professor associado de patologia comparada da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, diretor técnico-científico da Fundação Parque Zoológico de São Paulo e diretor científico da Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens.

     

     

    Referências Bibliográficas

    1. Valladares-Pádua, C.; Martins, C.S.; Ballou, J.D. Populações núcleo e cativeiro na conservação de espécies ameaçadas de extinção: o caso dos micos-leões-pretos. Anais do XXIV Congresso da Sociedade de Zoológicos do Brasil e V Encontro Internacional de Zoológicos, Belo Horizonte, MG, p. 29. 2000.

    2. Epiphanio, S; Sá, L.R.M.; Teixeira, R.H.F.; Catão-Dias, J.L. Toxoplasmosis in a wild caught black lion tamarin (Leontopithecus chrysopygus). Veterinary Record, 149: 627-628. 2001.

    3. Spalding, M.G; Forrester, D. Disease monitoring of free-ranging and released wildlife. Journal of Zoo and Wildlife Medicine, 24: 2271-280, 1993.

    4. Harvell, C.D.; Kim, K; Burkholder, J.M.; Colwell, R.R.; Epstein, P.R.; Grimes, D.J.; Hofmann, E.E.; Lipp, E.K.; Osterhaus, A.D.M.; Overstreet, R.M.; Porter, J.W.; Smith, G.W.; Vasta, G.R. Emerging marine diseases – climate links and anthropogenic factors. Science, 285: 1505-1510, 1999.

    5. Alexander, K.A.; Kat, P.W.; Munson, L.A.; Kalake, A; Appel, M.J.G. Canine distemper-related mortality among wild dogs (Lycaon pictus) in Chobe National Park, Botswana. Journal of Zoo and Wildlife Medicine, 27: 426-427, 1996.

    6. Metlzer, D.G.A. Historical survey of disease problems in wildlife population: southern Africa mammals. Journal of Zoo and Wildlife Medicine, 24: 2237-2244. 1993.

    7. Benirschke, K; Adams, F.D. Gorilla diseases and causes of death. Journal of Reproduction and Fertility (Suppl), 28: 139-148, 1980.

    8. Catão-Dias, J.L. "Order Primates (Primates): Medicine". In: Biology, Medicine and Surgery of South American Wild Animals. M. Fowler & Z. Cubas, Eds. Iowa State University Press, Ames. Pp. 267-272, 2001

    9. Sá, L.R.M.; Teixeira, R.H.; DiLoreto, C; Catão-Dias, J.L. Leptospirosis in neotropical primates. Resumos do III Congresso da Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens, p. 7. 1999.

    10. Montali, R.J.; Bush, M. "Diseases of the Callithrichidae". In: Zoo and Wildlife Medicine. Current Theraphy 4. (M.E. Fowler and E. Miller, eds.). Philadelphia, W.B. Saunders, pp. 369-376. 1999.

    11. Munson, L; Nesbit, J; Meltzer, D; Colly, L; Bolton, L; Kriek, N. Diseases of captive cheetahs in South Africa: a 20 year retrospective survey. Journal of Zoo and Wildlife Medicine, 30: 342-347, 1999.

    12. Seal, U.S; Armstrong, D. Comments on the Executive Summary and recommendations. Report of the Disease Risk Workshop – Omaha, Nebraska, USA. Edited by International Union for Conservation of Nature/Conservation Breeding Specialist Group. Pp. 9-11, 2000.

    13. Castle, M; Christensen, B. Hematozoa of wild turkeys from the mid western United States: translocation of wild turkeys and its potential role in introduction of Plasmodium kempi. Journal of Wildlife Diseases, 20: 180-185, 1990.

    14. Otto, A.A. Psittacosis outbreak in Costa Rica associated with pet birds imported from the United States. Proceedings of the Joint Meeting of the American Association of Zoo Veterinarians and American Association of Wildlife Veterinarians, 258-260, 1998.

    15. Daszak, P; Cunningham, A.A; Hyatt, AD. Emerging infectious diseases of wildlife – threats to biodiversity and human health. Science, 287: 443-449, 2000.

    16. Ballou, J.D. Infectious disease risk assessment in captive propagation, reintroduction and wildlife conservation. Proceedings of the 7th World Conference on Breeding Endangered Species, 63-76, 1999.

    17. Mainka, S; Xianmeng, Q. Preparing for reintroduction of giant pandas. Proceedings of the Joint Meeting of the American Association of Zoo Veterinarians and American Association of Wildlife Veterinarians, 65-68, 1992.

    18. Junge, R. E; Garell, D. Medical assessment of ruffed lemurs for restocking programs in Madagascar. Proceedings of the American Association of Zoo Veterinarians Annual Meeting, 286-290, 1997.

    19. Jakob-Hoff, R.A. Workbook for developing quarantine and health screening protocols for native animals intended for translocation. Aukland Zoological Park Monographs, 36p, 1999.

    20. Kleiman, D.G; Beck, B.B; Baker, AJ; Ballou, JD; Dietz, LA; Dietz, JM. The conservation program for the golden lion tamarin. Endangered Species Update, 8: 82-85, 1990.

    21. Woodford, M.H. Quarantine and health screening protocols for wildlife prior to translocations and release into the wild. IUCN Species Survival Commission's Veterinary Specialist Group, Gland, Suiça e Office International des Epizooties (OIE), França. 70Pp, 2000.

    22. Ballou, J.D; Lowenstine, L.J; Catão-Dias, J.L; Ziccardi, M; Cook, R; Curro, M; Dein, J; Woodford, M; Kennedy-Stoskopf, S; Wild, D. Report on modeling information. Proceedings of the Disease Risk Workshop – Omaha, Nebraska, USA. Edited by International Union for Conservation of Nature/Conservation Breeding Specialist Group. Pp. 81-88, 2000.