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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.3 São Paulo jul./sep. 2003

     

     

    ETNOFARMACOLOGIA

    Elaine Elisabetsky

     

    "O mal dos que estudam as superstições é não
    acreditar nelas. Isso os torna tão suspeitos para tratar do assunto
    como um biologista que não acreditasse em micróbios."
    Mário Quintana

     

    A Etnofarmacologia não trata de superstições, e sim do conhecimento popular relacionado a sistemas tradicionais de medicina. Para apreciar o conhecimento popular é preciso admiti-lo como tal – um corpo de conhecimento, um produto do intelecto humano – e não se pode ser preconceituoso. A Etnofarmacologia é uma divisão da Etnobiologia, uma disciplina devotada ao estudo do complexo conjunto de relações de plantas e animais com sociedades humanas, presentes ou passadas (1). Defini-se Etnofarmacologia como "a exploração científica interdisciplinar dos agentes biologicamente ativos, tradicionalmente empregados ou observados pelo homem" (2).

    Como estratégia na investigação de plantas medicinais, a abordagem etnofarmacológica consiste em combinar informações adquiridas junto a usuários da flora medicinal (comunidades e especialistas tradicionais), com estudos químicos e farmacológicos. O método etnofarmacológico permite a formulação de hipóteses quanto à(s) atividade(s) farmacológica(s) e à(s) substância(s) ativa(s) responsáveis pelas ações terapêuticas relatadas (3,4,5). Assim, se Tia Pixica, Dona Lulu ou Seu Lauca dizem que as folhas de fulaninha (preparadas assim e usadas assado) curam aquele dado tipo de diarréia, o método etnofarmacológico permite a formulação de hipóteses como estas: H0= fulaninha não é útil na cura ou manejo daquele tipo de diarréia; H1= fulaninha interfere positivamente no curso natural daquele tipo de diarréia. Há na espécie algum composto com atividade antimicrobiana ou antiviral? Interfere no fluxo de água? Essas hipóteses podem ser testadas com todos os controles e rigores que qualquer ciência séria exige, levando em consideração toda a informação (incluindo modo de preparo e posologia) que traz o conhecimento tradicional.

     

     

    Argumenta-se que a cultura popular identifica sintomas, mas não caracteriza ou entende as doenças como nós; conclui-se, por isso, que tais informações não servem de base útil ao desenvolvimento de novos medicamentos. Trata-se afinal de cultura popular ou ciência? Folclore (do inglês folk lore = tribo saber) ou know-how ? O que torna o conhecimento tradicional de interesse para a ciência é que se trata de relatos verbais da observação sistemática de fenômenos biológicos, feitos por pessoas quiçá freqüentemente iletradas, mas algumas tão perspicazes como o são alguns cientistas. A ausência de educação e cultura formais não implica em ausência de saber. Tal como o gerado nas universidades, o conhecimento tradicional é científico porque suas conseqüências são refutáveis; nisso difere da simples tradição, crença ou religião, embora em sistemas de medicina essas dimensões tendem a se misturar (afinal, quando uma operação de safena ou transplante é bem sucedida, seja ela de que nível tecnológico for, a maioria de nós ainda exclama "Graças a Deus!", freqüentemente antes de agradecer a equipe médica...).

    A seleção etnofarmacológica de plantas para pesquisa e desenvolvimento (P&D), baseada na alegação feita por seres humanos de um dado efeito terapêutico em seres humanos, pode ser um valioso atalho para a descoberta de fármacos. Neste contexto, o uso tradicional pode ser encarado como uma pré-triagem quanto à propriedade terapêutica (isso não implica em admitir que plantas medicinais ou remédios caseiros sejam destituídos de toxicidade). O valor deste atalho deve ser apreciado no seguinte contexto: a indústria farmacêutica considera razoável a relação de 1:10.000 entre compostos comercializado/estudados; aquelas que contam com procedimentos de triagem associados a química combinatória, clonagem de receptores e automação/robotização (high trhough put screening) têm como razoável 1:250.000. Mesmo em casos em que se conhece o mecanismo de ação desejado e se tem o ensaio in vitro apropriado para detectá-lo, a maior parte dos compostos que eventualmente interagem com a enzima ou o receptor em questão não é, infelizmente, biodisponível; ou, quando o é, acaba por demonstrar toxidade inesperada em humanos. De cada dez compostos descobertos, quatro seguem para a fase de desenvolvimento, enquanto existe uma taxa de 50% de desistência devido a toxicidade/efeitos adversos, antes mesmo que uma fase clínica I completa seja deslanchada (6). Esses números indicam o valor de relatos de uso tradicional em relação a biodisponibilidade e segurança relativa.

    Cabe notar que a Etnofarmacologia, por se basear em alegações de utilidade terapêutica e não em determinado perfil químico das espécies (o que, em tese, indicaria a possibilidade de interação com um determinado alvo biológico), é particularmente útil no caso de categorias de doenças cuja patofisiologia não é bem conhecida (7). A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada com relação à descoberta de produtos protótipo (com mecanismos de ação inovadores): a abordagem mecanicista baseia-se na interação dos compostos com alvos farmacodinâmicos predeterminados, enquanto que a etnofarmacologia por partir de relatos de efeitos, pode levar à identificação de produtos com mecanismos de ação sequer conhecidos. Por isso modelos in vivo tem papel importante em estudos etnofarmacológicos.

    O uso da expressão sistema tradicional não implica admitir que se trata de um sistema estático ou uma forma de retardo cultural (8), que não responde ou contrasta com a racionalidade e a modernidade (9). A coexistência de vários sistemas de saúde usados no mundo todo e sua utilização por diversas classes sociais, são evidências consideráveis de que a interação é dinâmica, levando a alterações em todos os sistemas que coexistem. É absolutamente fundamental para a estratégia etnofarmacológica que se compreendam os conceitos do sistema do qual se obtêm as informações; observações não contextualizadas são cientificamente inúteis. Já que sistemas médicos são produtos de culturas específicas com enorme variação em termos de crenças e práticas médicas, uma detalhada base etnofarmacológica é necessária para selecionar espécies como fontes de drogas transculturalmente efetivas (3,7).

    Uma medida acurada do valor do conhecimento tradicional em P&D de novos fármacos só seria possível se pudéssemos comparar os resultados (em termos de custo/benefício) de uma amostra razoável de pesquisas feitas com base em coletas de plantas ao acaso ou por etnofarmacologia. Infelizmente, a maioria das indústrias (e mesmo a academia) não publica resultados negativos (mesmo resultados positivos em termos estritamente farmacológicos que por quaisquer outras razões não são aproveitados). No entanto, os dados mostrados na Tabela 1 são indicativos do valor do conhecimento tradicional. A vantagem parece óbvia. Analisando compostos com potencial anticancerígeno (10), verificou-se que a porcentagem de gêneros/ espécies vegetais ativas citadas em compêndios de plantas medicinais, é consistentemente próxima ao dobro das de triagem ao acaso. Quanto a antivirais, a seleção de plantas com uso tradicional mostrou uma porcentagem 5 vezes maior de substâncias ativas (11). Os dados da Shaman Pharmaceuticals, que usa Etnofarmacologia como eixo central de seu programa de P&D, corroboram a tendência encontrada com dados acadêmicos no contexto industrial (12,13).

     

     

    Embora em P&D o interesse praticamente resuma-se a plantas como fonte de compostos químicos, o fato de que sistemas médicos tradicionais são organizados como sistemas culturais permite profundas diferenças nos significados de saúde, doença e etiologias (14). Tais diferenças resultam em uma variedade de práticas terapêuticas que não são facilmente acomodadas ou compreendidas no paradigma bio-mecânico da medicina ocidental contemporânea. Conceitos como dieta, medidas preventivas, manutenção ativa do bem estar, posologias de longo prazo/baixa dosagem, misturas complexas e/ou mecanismos de ação multifacetados, freqüentemente centrais em sistemas médicos tradicionais, apenas recentemente começam a ser devidamente apreciados no ocidente. A compreensão de tais peculiaridades em termos farmacodinâmicos pode ser útil no desenvolvimento de novos paradigmas de uso de drogas. De fato, constantemente se identificam novos alvos de ação de drogas e remédios tradicionais, que podem atuar como modificadores do curso natural de patologias por mecanismos fisiológicos que ainda sequer conhecemos (7).

    A maior parte da flora ainda desconhecida químico/farmacologicamente, e o saber tradicional associado existem predominantemente em países em desenvolvimento. A perda da biodiversidade e o acelerado processo de mudança cultural acrescentam um senso de urgência no registro desse saber. A criação de instrumentos legais de direitos de propriedade intelectual para conhecimentos tradicionais é de fundamental importância (15,16). O Brasil não é apenas rico em diversidade de recursos genéticos; é um país rico em culturas, em gentes diferentes que tiveram e têm que tirar a vida com a mão. Ao fazer isso, manejam seu meio ambiente, conhecendo-o em detalhes e no todo de suas conexões e inter-relações. O respeito ao meio ambiente e ao modus vivendi de comunidades tradicionais, é essencial ao desenvolvimento sustentável e à manutenção da sociobiodiversidade (17). Como dizia Confúcio: "Conhecer a ignorância é força; ignorar o conhecimento é doença."

     

    Elaine Elisabetsky é farmacóloga, coordenadora do Laboratório de Etnofarmacologia e professora do Departamento de Farmacologia(UFRGS). Atualmente preside a Sociedade Internacional de Etnofarmacologia.

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Berlin, B. On the making of a comparative ethnobiology. In: Ethnobiological Classification: principles of categorization of plants and animals in traditional societies, Princeton, Princeton University 1992.

    2. Bruhn, J. G. e Holmstedt, B. "Ethnopharmacology, objectives, principles and perspectives". In: Natural products as medicinal agents. Stuttgart: Hippokrates, 1982.

    3. Elisabetsky, E. e Setzer, R. "Caboclo concepts of disease, diagnosis and therapy: implications for Ethnopharmacology and health systems in Amazonia". In: The amazon caboclo: historical and contemporary perspectives. Williamsburgh: Studies On Third World Societies Publication Series, 32, 243, 1985.

    4. Elisabetsky, E. J. Ethnobiol., 6, 121, 1986.

    5. Nunes, D.S. "Chemical approaches to the study of Ethnomedicina"l. In: Medicinal resources of the tropical forest: biodiversity and its importance to human health. New York: Columbia Univ.Press, 1996.

    6. Harvey, A.L. "Natural products for high-throughput screening". In: Ethnomedicine and drug development, Advances Phytomedicine , vol 1, 2002.

    7. Elisabetsky,E. "Traditional medicines and the new paradigm of psychotropic drug ation". In: Ethnomedicine and drug development, advances phytomedicine, vol 1, 2002.

    8. Alvarado, L. "Medical anthropology and the health professions: selected literature review". In: Bauwens, E.E. (Ed.). The anthropology of health. S.Louis: C.V.Mosby, 1978.

    9. Roger, S. French trajectories: shaping modern times in rural aveyron. Princeton: Princeton Univ., 1990.

    10. Spujt, R. W. e Perdue Jr., R. E. Cancer treat. Rep., 60, 979, 1976.

    11. Vlietinck, A. J. e Van Den Berghe, D. A.J. Ethnopharmacol., 32, 141, 1991.

    12. Carlson, T. J, Cooper, R., King, S.R., Rozhon, E.J. Royal Soc. Chem., 200, 84, 1997.

    13. Oubré, A.Y., Carlson, T.J., King, S.R., Reaven, G.M. Diabetol., 40, 614, 1997.

    14. Worseley, P. Non-western medical systems. Ann. Review Anthropol. 11, 315, 1982.

    15. Elisabetsky, E. J. Ethnopharmacol., 32, 235, 1990.

    16. Cunningham, A.B. "Ethics, etnobiological research, and biodiversity". In: WWF international publications, Gland, Switzerland, 1993.

    17. Posey, D.A. Ciência e Cultura, 35, 877, 1983.