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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003
BIODIVERSIDADE COMO FONTE DE MEDICAMENTOS
João B. Calixto
O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo, estimada em cerca de 20% do número total de espécies do planeta. Esse imenso patrimônio genético, já escasso nos países desenvolvidos, tem na atualidade valor econômico-estratégico inestimável em várias atividades, mas é no campo do desenvolvimento de novos medicamentos onde reside sua maior potencialidade A razão dessa afirmação é facilmente comprovada quando se analisa o número de medicamentos obtidos direta ou indiretamente a partir de produtos naturais (1,2,3,4,5,6) (Tabela 1). Para ter uma noção do impacto desses medicamentos no mercado mundial, somente as estatinas foram responsáveis por um mercado de US$ 19 bilhões em 2002 (7). A terapêutica moderna, composta por medicamentos com ações específicas sobre receptores, enzimas e canais iônicos, não teria sido possível sem a contribuição dos produtos naturais, notadamente das plantas superiores, das toxinas animais e dos microrganismos.
O mercado mundial desse grupo de drogas atinge vários bilhões de dólares. Estima-se que 40% dos medicamentos disponíveis na terapêutica atual foram desenvolvidos de fontes naturais: 25% de plantas, 13% de microrganismos e 3% de animais. Somente no período entre 1983-1994, das 520 novas drogas aprovadas pela agência americana de controle de medicamentos e alimentos (FDA), 220 (39%) foram desenvolvidas a partir de produtos naturais (2,4). Além disso, um terço dos medicamentos mais prescritos e vendidos no mundo foram desenvolvidos a partir de produtos naturais. No caso das drogas anticancerígenas e dos antibióticos, por exemplo, esse percentual atinge cerca de 70% (2,8). Embora apenas cerca de 10% da biodiversidade mundial tenha sido estudada, 140 mil metabólitos intermediários, oriundos, sobretudo de plantas superiores e de microrganismos, foram isolados e caracterizados, mas ainda não foram avaliados biologicamente (3). O interesse pela biodiversidade para a produção de medicamentos aumentou sensivelmente com a conclusão do genoma humano, uma vez que o número de possíveis alvos terapêuticos aumentou de cerca de 500 para mais de 6 mil.
Graças aos produtos naturais, incluindo as toxinas extraídas de animais, de bactérias, de fungos ou de plantas, os cientistas puderam compreender fenômenos complexos relacionados à biologia celular e molecular e à eletrofisiologia, permitindo que enzimas, receptores, canais iônicos e outras estruturas biológicas fossem identificados, isolados e clonados. Isso possibilitou à indústria farmacêutica desenhar drogas dotadas de maior seletividade e também mais eficazes contra várias patologias de maior complexidade. Além disso, os produtos naturais são usados como matéria-prima na síntese de moléculas complexas de interesse farmacológico. Atualmente, as maiores indústrias farmacêuticas mundiais possuem programas de pesquisa na área de produtos naturais, pois oferecem, entre outras, as seguintes vantagens: grande quantidade de estruturas químicas, muitas delas, complexas; muitas classes de estruturas homólogas; estruturas químicas di e tridimensionais; possibilidade de utilização como banco de moléculas para ensaios de alta velocidade; economia de tempo e recursos; fonte de pequenas moléculas para alvos moleculares complexos e, mais importante, capazes de serem absorvidas e metabolizadas pelo organismo (4).
Existem, todavia, problemas que dificultam o aproveitamento da biodiversidade para o desenvolvimento de novos medicamentos. O que inclui: 1) falta de leis específicas para o acesso a biodiversidade; 2) grande complexidade das moléculas isoladas a partir de produtos naturais, que às vezes dificulta sua síntese; 3) o tempo necessário para o descobrimento de moléculas líderes às vezes é longo; 4) a descoberta pode ser dispendiosa; 5) poucas bibliotecas de compostos naturais estão disponíveis; 6) existem poucas informações com relação a estrutura-atividade desses compostos; 7) freqüentemente, moléculas já conhecidas com pouco interesse, são isoladas de produtos naturais; 8) os químicos sintéticos muitas vezes são relutantes em trabalhar com produtos naturais (9).
Em virtude da alta tecnologia, dos elevados custos e dos riscos inerentes para o desenvolvimento de um novo medicamento, alguns poucos países desenvolvidos, liderados pelos Estados Unidos e alguns países europeus, detêm as maiores indústrias farmacêuticas mundiais que dominam as modernas tecnologias na área farmacêutica. Somente para exemplificar esses investimentos e riscos, as estatísticas mostram que de cada 30 mil compostos sintetizados pelas indústrias, 20 mil (6,7%) entram nos estudos pré-clínicos; desses, 200 (0,67%) atingem a fase clínica I; 40 (0,13%) passam para a fase clínica II; e 12 (0,004%) chegam a fase clínica III. Apenas oito deles (0,027%) são aprovados e em geral um (0,003%) consegue obter mercado satisfatório.
Outro emprego importante da biodiversidade refere-se a produção dos fitomedicamentos, também conhecidos como fitoterápicos. Esses medicamentos constituem-se em preparações contendo extratos padronizadas de uma ou mais plantas, hoje amplamente comercializados em países pobres ou ricos. De acordo com a definição proposta pela OMS, os fitomedicamentos são substâncias ativas presentes na planta como um todo, ou em parte dela, na forma de extrato total ou processado. Os constituintes responsáveis pela atividade farmacológica são, em geral, pouco conhecidos e se acredita que a ação farmacológica desses produtos envolva a interação de inúmeras moléculas presentes no extrato (10).
Nas últimas décadas, houve um aumento expressivo no mercado mundial dos fitomedicamentos, especialmente nos países industrializados, cujo mercado mundial atinge mais de US$ 20 bilhões anuais. Os países europeus, especialmente a Alemanha, os países asiáticos e os Estados Unidos, possuem os principais mercados consumidores desses medicamentos (10, 11). O mercado brasileiro de fitomedicamentos atingiu, em 2001, cerca de US$ 270 milhões correspondendo a 5.9 % do mercado brasileiro de medicamentos, maior, portanto, que a comercialização dos medicamentos genéricos que foi de R$ 226 milhões (5% do mercado global brasileiro). Diversas empresas tais como Barrene, BYK, Canonne, Infabra, Fontovit, Hebron, Herbário, Knol, Laboratório Catarinense, Marjan, Milet-Roux - comercializam somas expressivas na área de fitomedicamentos. Mais recentemente, empresas farmacêuticas nacionais de maior porte - como Aché, Biossintética, Eurofarma, Flora Medicinal (Natura) etc - estão interessadas na comercialização dos fitomedicamentos. Em conseqüência do crescimento do mercado mundial dos fitomedicamentos, as maiores indústrias farmacêuticas multinacionais (muitas delas norte-americanas), passaram a se interessar por esse mercado, até então formado predominantemente por pequenas empresas européias e asiáticas. Tais fatos resultaram em mudanças no perfil do mercado dos fitomedicamentos, com a aquisição das pequenas indústrias pelas grandes empresas farmacêuticas, e também pela união de muitas companhias que atuavam no setor (11, 12).
Com a aprovação e a entrada em vigor da lei de propriedade industrial no Brasil no final da década de 90, várias indústrias farmacêuticas nacionais estabeleceram parcerias com o setor acadêmico, visando o desenvolvimento de fitomedicamentos, tendo por base a Resolução RDC número 17 de 24/02/2000 da Anvisa, que estabelece as normas para o registro e a comercialização desses medicamentos. No Brasil, o registro de um fitomedicamento necessita de estudos científicos para a comprovação da qualidade, da eficácia e da segurança de uso. Uma das poucas iniciativas por parte do governo federal, visando estimular o uso da biodiversidade brasileira para a produção de medicamentos, foi o programa de pesquisa em plantas medicinais idealizado e financiado pela Central de Medicamentos (Ceme), que teve seu início na década de 80. Contudo, com a extinção da Ceme, ocorrida no final dos anos 90, praticamente pouco restou dessa iniciativa pioneira em nosso país que, sem dúvida, deveria ter continuado. Entretanto, o programa permitiu o surgimento de vários grupos de pesquisas, especialmente nas áreas de farmacologia pré-clínica, toxicologia e de farmacologia clínica, interessados no estudo das plantas brasileiras. Comparado ao desenvolvimento de um novo medicamento sintético, que envolve vultosas somas de recursos (cerca de US$ 350 milhões a US$ 800 milhões e cerca de 10 a 15 anos de pesquisa), o desenvolvimento de um fitomedicamento requer muito menos recursos, e também menor tempo de pesquisa. Com base no vasto conhecimento popular já existente para o uso de muitas plantas medicinais, estima-se que os custos para o desenvolvimento de um fitomedicamento não devem ultrapassar 2 a 3 % daquele previsto para o desenvolvimento de um novo medicamento sintético. Esses valores são compatíveis com o atual estágio de desenvolvimento das indústrias farmacêuticas nacionais.
O grande desafio para o aproveitamento racional da biodiversidade brasileira visando a produção de medicamentos é, sem dúvida, como transformar um imenso patrimônio genético natural em riquezas, criando indústrias de base tecnológica e gerando empregos qualificados. Em função dos estímulos havidos no Brasil para formar recursos humanos, através dos cursos de pós-graduação nas áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos, os cientistas brasileiros de muitas universidades e institutos de pesquisas adquiriram prestígio internacional, atestado pelo grande número de trabalhos publicados nas principais revistas científicas em todo mundo. Todavia, a formação de novos cientistas precisa ser estimulada, sobretudo em áreas ainda carentes, como é o caso da toxicologia, farmacologia clínica, tecnologia farmacêutica, propriedade intelectual, entre outras.
A questão da propriedade industrial deve merecer especial atenção tendo em vista a pouca experiência do Brasil na área. No entanto, uma busca junto ao Inpi revelou que nos últimos cinco anos os pesquisadores e as industrias farmacêuticas nacionais depositaram mais de 15 patentes na área de plantas medicinais e de fitomedicamentos. Embora nos últimos anos tenham surgido no Brasil indústrias farmacêuticas nacionais modernas, a maioria não possui experiência em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, mantendo-se ainda muito dependentes de tecnologias desenvolvidas em países industrializados. A situação tende a agravar-se e poderá levar a uma desnacionalização ainda maior do setor, pois os reflexos da lei de patente (que proibiu a cópia de similares desenvolvidos nos países avançados) e o processo de globalização vêm cada vez mais impedindo o crescimento das empresas farmacêuticas nacionais. Assim, é imperativo que o governo federal estabeleça um programa duradouro, com a participação dos ministérios da Saúde, Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente, em parceria com as fundações estaduais de Ciência e Tecnologia, comunidade científica e os laboratórios farmacêuticos estatais e privados, para permitir o aproveitamento racional da nossa biodiversidade visando a produção de medicamentos.
A ciência brasileira, quando convidada a participar do processo de desenvolvimento nacional, soube dar sua parcela de contribuição. Afinal, a contribuição dos cientistas brasileiros foi decisiva para o desenvolvimento de tecnologia de ponta para retirar petróleo de águas profundas, para transformar e multiplicar a produção agrícola com o emprego de técnicas modernas, e para o desenvolvimento de tecnologia de última geração na área espacial e de telecomunicações. Mais recentemente, pesquisadores brasileiros destacaram-se internacionalmente na biologia molecular na área de seqüenciamento genético. Parece não haver muitas dúvidas de que temos condições de desenvolver com sucesso um programa voltado para o desenvolvimento de medicamentos a partir da nossa biodiversidade, empregando tecnologia genuinamente nacional. Um programa dessa natureza tornaria o país menos dependente do mercado internacional, em uma área realmente estratégica, e por que não dizer de segurança nacional para o Brasil, e evitaria os constrangimentos de recorrer a tecnologias muitas vezes de baixa qualidade desenvolvidas em países com menos tradição científica e tecnológica que o Brasil, ou à aquisição de medicamentos de qualidade duvidosa no exterior. Assim, resta saber se o atual governo brasileiro está interessado em estabelecer um programa de longo prazo com recursos suficientes para estimular a interação universidade-indústria na área de desenvolvimento de medicamentos, a exemplo do que ocorreu em alguns países em desenvolvimento como a Índia, China e Coréia.
João B. Calixto é professor titular de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisador do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências
Referências bibliográficas
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