SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.3 São Paulo jul./set. 2003

     

     

    MEMÓRIA NATURALIS: CIDADANIA, CIÊNCIA E CULTURA

    Leandro O. Salles
    Peter Mann de Toledo
    Marcos Tavares

     

    A transição deste milênio é marcada pela nova ótica ditada por um planeta globalizado, onde os limites sócio-econômicos e ambientais dos países são progressivamente atenuados, enquanto na proporção inversa a interconectividade e as interdependências sistêmicas são valorizadas. Desse modo, cenários mais abrangentes são revelados e valorizados, detalhando a complexidade dos sistemas socioambientais, cuja compreensão requer uma contínua sofisticação nos meios de articulação da informação. É neste contexto que emergem as redes informatizadas como as principais plataformas de compartilhamento de informação do novo milênio, passando a assumir papel crucial no planejamento estratégico das nações.

    O Brasil se destaca no cenário internacional pela condição de país de dimensões continentais, megadiverso – líder mundial da biodiversidade, e com uma riqueza sociocultural ímpar. Essa condição deveria estar vinculada a equacionamentos político-financeiros, que efetivamente fomentassem não somente a vocação natural do país para inspirar debates sobre a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais, mas, sobretudo, os meios técnico-políticos, que potencializassem as possibilidades do país vir a liderar fóruns internacionais referentes a essas questões. O caráter emergencial na tomada imediata de decisões que promovam tais equacionamentos é agravado pela alta pressão antrópica desordenada que sofre o país.

    COLEÇÕES CIENTÍFICAS: FONTES PRIMÁRIAS DO SABER SOCIOAMBIENTAL Apesar de freqüentemente desvalorizadas como instrumento essencial ao planejamento estratégico dos recursos naturais, a informação acumulada em coleções científicas deve ser encarada como base para a construção de uma parcela expressiva do conhecimento acerca da diversidade socioambiental do planeta. A acessibilidade às perspectivas históricas, ou ao delineamento de escalas espaço temporais – referentes aos padrões e processos de diversificação socioambiental – é uma diferencial exclusiva do uso das coleções científicas.

    Essas coleções podem, por exemplo, ser representadas por: bancos de tecidos para fins de extração de material molecular (DNA) de espécies ameaçadas de extinção; coletâneas de espécimes vegetais e animais endêmicos das florestas tropicais sul-americanas, ou ainda amostras geológicas armazenadas com potencial para análise paleoclimática, críticos para compreensão dos processos de diversificação do Homo sapiens nos últimos cem mil anos. De fato, a partir de evidências cosmo-geo-bio-antropológicas, congregadas em museus de história natural e instituições afins, é possível enumerar infinitas combinações de importância científica e cultural. Entretanto, cabe sublinhar, que essas coleções passam a ganhar importância científica-cultural, apenas após a condução de estudos que propiciem às mesmas acesso de valor. Isto significa dizer que por maior valor intrínseco que possuam, os objetos de uma coleção só passam a adquirir status de expressão de herança natural ou cultural depois de estudados e tornados acessíveis à coletividade.

    Em outras palavras, o enorme potencial da informação (1) contida nas coleções apoia-se num tripé: manutenção, pesquisa e ergonometria. Cada um desses três vetores tem requisitos próprios. Em linhas gerais, a manutenção adequada das coleções responde pela vida útil e pela qualidade dos dados que encerram, enquanto que a pesquisa revela a expressão do objeto no seu contexto. Finalmente, a ergonometria ou acessibilidade da coleção pode ser tratada em dois níveis: acesso físico aos objetos e acesso aos dados (informação e análise).

    Sublinha-se, portanto, que a condicionante infra-estrutural de curadoria e de informatização das coleções científicas deve receber status prioritário no desafio de propiciar novas abordagens e leituras que possam, continuamente, ser desenvolvidas a partir dessas evidências colecionadas. Garante-se, assim, às gerações de hoje e de amanhã um amplo acesso à diversidade acumulada e revelada acerca da história da natureza e da sociedade no planeta Terra.

    A fim de suscitar o potencial para o uso aplicado das coleções socioambientais, exemplifica-se com a seguinte problemática: se o plano estratégico para desenvolvimento de fármacos oriundos da Amazônia brasileira seja meta a ser cumprida pelo governo federal e caso, ao mesmo tempo, minimizar o impacto ambiental também, parece óbvio a importância da qualidade da informação que irá permitir o reconhecimento e o acesso sustentável à biodiversidade da Amazônia. Sendo assim, tecnicamente necessita-se de cartas geo-referenciadas das unidades biológicas (vegetais) da Amazônia que gozem de suporte empírico com base em registros armazenados em coleções. Isto significa dizer, que é imperativo reunir informações detalhadas acerca da taxonomia e da distribuição das espécies amazônicas, a fim de iniciar estudos analíticos que venham subsidiar o delineamento de áreas que possam ser indicadas para tais atividades extrativistas ou mesmo agrícolas, obedecendo assim o critério de minimização de impacto (2).

     

     

    Infelizmente, a maior parte das instituições brasileiras detentoras de coleções científicas (museus de história natural, universidades, jardins botânicos, zoológicos, etc.) ainda não se encontram suficientemente articulada ou dotada de capacitação técnica infra-estrutural para enfrentar, nem mesmo, o desafio primário de salvaguardar adequadamente os múltiplos testemunhos do presente e passado da natureza e da sociedade brasileira. Cabe ressaltar, contudo, que essas coleções são fonte inesgotável do saber socioambiental, absolutamente essencial para o desenvolvimento estratégico e para a gestão da informação pertinente aos sistemas geo-bio-antropológicos. Vale externar ainda, que apesar de as coleções científicas brasileiras estarem aquém do esperado para possibilitar a realização de desenhos detalhados das múltiplas realidades socioambientais brasileiras, elas compreendem parte expressiva do que a humanidade foi capaz de acumular sobre essas realidades no país. Ressalta-se, entretanto, que o imenso esforço devotado à reunião de acervos no Brasil (vide artigos nesta edição), não encontrou ainda paralelo na automação das coleções científicas (3). Isso apesar de a tecnologia necessária à automação das coleções científicas encontrar-se disponível há anos e a criação de bancos de dados sobre a biodiversidade como ferramenta de gestão ter sido reconhecida por diversos países onde os bancos de dado sobre a biodiversidade local já é uma realidade (4, 5, 6 e 7).

    REDE MEMÓRIA NATURALIS Os argumentos arrolados acima testemunham em favor da pertinência da criação de uma rede brasileira de museus de história natural e instituições afins, como meio de maximizar o compartilhamento potencial da informação de cunho científico, cultural e educativo. Essa rede deverá permitir às instituições que a compõem, incluindo o governo e agências de fomento em geral, permanentes atualizações de diagnósticos e dos meios de apreciação estratégica para o investimento justo e adequado em abrangência nacional. O compartilhamento eficiente de informações irá permitir a redução de investimentos redundantes na área de ação técnico-acadêmica dessas instituições. Desse modo, a rede deve contribuir, de maneira direta e imediata, para o avanço da capacitação das atividades técnico-acadêmicas e infra-estruturais de toda a instituição credenciada.

    Em dezembro de 2002, baseado em convicções semelhantes às expostas, redigiu-se a Carta de Brasília, em reunião sediada no MCT. Essa reunião foi consolidada a partir de um conjunto de iniciativas que se desenrolaram durante o ano de 2002, destacando-se dois workshops que culminaram com a redação das seguintes moções: Carta de Rio de Grande e Carta de João Pessoa. Num momento histórico, essa reunião congregou várias lideranças no país sobre o tema (entre elas, responsáveis por instituições que detêm parcela expressiva do acervo socioambiental brasileiro): gestão estratégica da diversidade socioambiental. O conselho, formado nessa reunião, argumenta, nessa carta, em favor da criação da Rede Memória Naturalis (RMN). Ressalta-se, assim que essas três cartas constituem-se nos alicerces políticos fundamentais da proposta RMN. Sublinha-se ainda, que o atual projeto, patrocinado pelo CNPq, congregando cinco projetos de difusão de cunho educativo numa rede de museus de história natural, têm exercido papel de "semente" singular no encorajamento do desenvolvimento do projeto da RMN.

    Segue-se, portanto, que a RMN deverá, num primeiro momento, criar alternativas racionais de dinamização dos canais de informação organizada entre vários segmentos da comunidade científica brasileira (e internacional, sublinha-se a ibero-americana), possibilitando deste mesmo modo, a agilização e o pleno reconhecimento mútuo entre esta comunidade e dos líderes políticos e técnicos de órgãos governamentais, incluindo vários ministérios. Assim, a RMN deverá propor estratégias que maximizem a utilização do potencial da comunidade científica, que gera o conhecimento e, paralelamente, estreitar as relações entre essa comunidade e os tomadores de decisão do Estado (agentes executores e fiscalizadores de políticas públicas).

    Nesse sentido, a plataforma Naturalis deverá viabilizar, prioritariamente, a integração das coleções científicas brasileiras, potencializando o acesso à informação georeferenciada das variáveis socioambientais amostradas e catalogadas pelas instituições que compuserem a rede. O sucesso dessa integração virá necessariamente de uma capilaridade municipal, atingindo as regiões mais remotas do país que acumulem evidências socioambientais. Dessa forma, toda e qualquer iniciativa, por mais embrionária que seja, deverá ser valorizada como importante para o resgate e a conservação da memória nacional como um todo.

    Concluindo, a motivação dos membros do conselho do projeto da RMN passa pela avaliação de que esta iniciativa poderá resultar na fundamentação de planos para o crescimento e integração das referidas instituições detentoras de coleções científicas e nos planos de expansão agropecuária, conservação e educação ambiental, saúde pública, entre outros. Do mesmo modo, com isso poderão ser gerados programas específicos que venham, por exemplo, contribuir para reconstrução da história evolutiva da biota sul-americana, e de uma maneira mais ampla para a abertura de caminhos que possibilitem a construção de uma "cidadania planetária".

     

    Leandro O. Salles é palentólogo e pesquisador do Museu Nacional / UFRJ
    Marcos Tavares é biólogo e pesquisador do Museu de Zoologia da USP
    Peter Mann de Toledo é palentólogo e diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Lane, M. A. Roles of natural history collections. Annals of the Missouri Botanical Garden, 83: 536-545. 1996.

    2. Canhos, D. A. L., Canhos,V. P. "Disseminação de informação: o uso da internet." In: Garay, I., Dias, B. (Orgs), Conservação da biodiversidade em ecossistemas tropicais. Avanços conceituais e revisão de novas metodologias da avaliação e monitoramento. Editora Vozes, Petrópolis. p. 76-87. 2001.

    3. Magalhães, C., Santos, J. L. C., Salem, J. I. Automação de coleções biológicas e informações sobre a biodiversidade da Amazônia. Parcerias Estratégicas, 12(1): 294-312. 2001.

    4. Bisby, F. A. The quiet revolution: Biodiverity informatics and the Internet. Science, 289(5488): 2309-2312. 2000.

    5. Farr, D. F., Rossman, A. Y. Integration of data for biodiverity initiatives. In: Reaka-Kudla, M. L. D. E. Wilson, E. O. (eds), Biodioversity II: Understanding and protecting our biological resources. Joseph Henry Press, Washington, D.C. p. 475-490. 1997.

    6. Blackmore, S. Knowing the Earth's biodiversity: challenges for the infrastructure of Systematic Biology. Science, 274: 63-64. 1996.

    7. Frondorf, A. Waggoner,G. Systematics information as a central component in the national biological information structure. Annals of the Missouri Botanical Garden, 83: 546-550. 1996.