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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003

     

     

    BIODIVERSIDADE: DO PLANEJAMENTO À AÇÃO

    Miguel Trefaut Rodrigues

     

    Há aproximadamente duas décadas Edward O. Wilson criava a palavra biodiversidade. Desde então, seu uso se difundiu e ela tem sido utilizada para se referir à diversidade biótica, do nível ecossistêmico ao molecular. Pouco antes, o aumento progressivo da taxa de destruição dos habitats naturais, a ameaça de extinção da biota e a necessidade de assegurar a qualidade de vida futura no planeta, conferiam vitalidade e perspectiva às plataformas conservacionistas. Hoje, e cada vez mais, o futuro das nações depende da solução de uma equação onde a saúde e a riqueza dos ecossistemas são variáveis que assumem importância crescente. A participação cada vez maior dos produtos diretos e indiretos da diversidade biológica na economia mundial obriga-nos também a considerar estes recursos do ponto de vista do planejamento estratégico. O Brasil, por abrigar a maior diversidade biológica do planeta, deve ter papel decisivo e de vanguarda na geração do conhecimento nesta área.

    Atendendo ao clamor conservacionista mundial e para nos precavermos das alterações provocadas pelo avanço assustador do desenvolvimento, temos procurado delimitar áreas de preservação permanente para proteger parcela significativa de nossa biota. Ainda que as áreas protegidas possam não ser as ideais (1), que o retorno dessas reservas para o país não seja imediato e que seu potencial não venha sendo suficientemente explorado, elas asseguram a preservação de parcela importante da nossa diversidade para a pesquisa e o ensino futuros (2). A decisão de preservar por preservar contempla o desejo da comunidade internacional e do povo brasileiro, mas não atende ao que, nos dias de hoje, se poderia esperar do país que detém a liderança mundial em biodiversidade. Falta-nos iniciativa, treinamento, consciência social e teoria para explorar de modo sustentado a riqueza biológica do país. Realizamos muito, mas o caminho a percorrer é longo.

    Os séculos transcorridos desde o descobrimento ajudaram a sedimentar atitudes e valores a respeito de nossa diversidade biológica, que nos conduzem para longe da importância que lhe deveríamos atribuir para explorá-la de modo adequado. Para fazê-lo, teremos que nos debruçar seriamente sobre o problema, reunindo os melhores recursos intelectuais do país, articulando-os em busca de alternativas. Nesse processo é preciso ter consciência que as normas que devem reger a pesquisa, a utilização sustentada e a conservação da nossa biodiversidade precisam ser geradas aqui, em projetos integrativos multidisciplinares em que o tema em foco seja parte integrante, dependente e interativa com o resto da realidade social do país. Não podemos adotar, sem crítica, modelos importados, prontos, traçados para atender a interesses de países que vivem num estágio de evolução social e cultural muito diferente daquele trilhado pela imensa maioria do povo brasileiro. Soluções importadas desse tipo, apesar de apresentarem coerência científica e um arcabouço bem estruturado, têm falhado por terem ignorado a realidade social do país.

    Um exemplo ajuda compreender as armadilhas desse processo. Foi muito comentado o fato de o país pretender abrir suas florestas nacionais à exploração sustentada. Modelos similares de desenvolvimento sustentado, funcionam muito bem nos países desenvolvidos. Canadá, Estados Unidos, França, Inglaterra e vários outros países europeus têm projetos parecidos muito bem conduzidos e altamente lucrativos. Contudo, a realidade social e o nível cultural médio dessas nações difere muito da nossa. A consciência conservacionista e o nível socioeconômico e cultural médio de um europeu confere-lhe um nível de responsabilidade social que permeia todas suas atitudes nesse processo. Elas compreendem e orientam comportamentos que vão desde o modo como o operário de uma madeireira entra e anda na mata, como escolhe a árvore que será abatida, como faz o planejamento, a derrubada e a retirada da tora; tudo isto de modo a minimizar o dano ambiental. Séculos de evolução social e de educação continuada ao longo de gerações foram necessários para aprender como levar a cabo a exploração sustentada em regiões onde, há muito, os recursos se tornaram escassos.

    Não é preciso muito conhecimento para perceber que uma aplicação generalizada de um modelo desse tipo ao Brasil seria desastroso. De modo geral, as pessoas envolvidas aqui no processo – os madeireiros - expõem sua vida e sua saúde a elevados riscos, ganham pouco, têm baixo nível de instrução e, entre muitos outros aspectos, por falta de educação ambiental, não terão os cuidados mínimos necessários às várias fases do processo de exploração, respeitados quase que religiosamente por seus colegas de ofício do primeiro mundo. Consequentemente, a aplicação ao nosso país de um modelo já demonstrado como altamente eficiente em outras áreas trará sérias consequências, fazendo com que nossas matas se tornem devastadas e muito mais vulneráveis a incêndios. Pior, a situação ameaçará também a fauna pois o homem envolvido na derrubada, em função de sua história, tem ainda impregnado no sangue e na alma o gosto pela caça. Aprendeu a fazê-lo de menino, para viver. Para muitos índios e caboclos, caçar ainda é uma forma de lazer, do mesmo modo que é para nós ir a um cinema ou a um teatro, pois nos acostumamos a prescindir dos recursos de um mundo alterado por nós. Não é possível ensinar a um caboclo, com sua história anterior e vivendo num mundo que para ele ainda é de abundância de recursos, a rapidamente alterar seus condicionamentos e passar a proceder como o faz seu colega de primeiro mundo. É uma tarefa hercúlea, de longo prazo, com resultados visíveis apenas ao longo de gerações, e impossível de se realizar sem o auxílio de amplos programas educativos.

    Não quero com este discurso defender a eliminação completa no país de projetos desse tipo, mas sugerir que eles só sejam realizados a partir de programas piloto em uma ou poucas áreas. Nesse caso, devem estar sujeitos a monitoramento intenso e estar acompanhados de projetos educativos audaciosos que ofereçam alternativas para substituir comportamentos ou atitudes que, embora quase que inatos, são hoje considerados nocivos ao meio ambiente. A solução desse problema complexo exige uma visão integrativa, macroespacial e um profundo conhecimento da realidade do campo; ela só é possível se lançarmos mão dos nossos melhores recursos humanos.

    Projetos desse tipo, por não envolverem lucro imediato, mas representarem um investimento prospectivo de risco associado a alternativas visando o planejamento estratégico do país a longo prazo, devem ser tarefa do Estado. Ainda na área de produção madereira, o Estado deveria assumir papel mais ativo na concepção de projetos visando o cultivo de madeiras de crescimento lento e de alto valor no mercado internacional. Situações similares com retorno comercial muito lento, obviamente não atraem o empresariado mas podem ser assumidas por Estados que pensam estrategicamente seu desenvolvimento futuro.

    Investimentos de outra ordem precisam também ser pensados, planejados e executados com apoio estatal para melhor aproveitarmos o potencial de nossa biodiversidade. Se quisermos escapar do destino imposto pela moda e pelos interesses comerciais dos países desenvolvidos, precisamos romper com a tradição de seguir sempre caminhos já trilhados na nossa trajetória para o desenvolvimento. Precisamos explorar melhor o que é nosso, diversificar nossos investimentos em setores estratégicos. A exploração sustentada da diversidade biológica é uma das nossas melhores alternativas. Nenhum outro país reúne a riqueza biológica, a excepcional diversidade climática e o pessoal qualificado, com a experiência que as regionalidades do país impõem, para traçar projetos desse tipo. Embora defenda que a maior parte da pesquisa científica do país deva continuar sendo livre, parte daquela voltada à exploração sustentada da biodiversidade, por ser estratégica e de risco, pode e deve ser induzida. Sob a supervisão e financiamento do Estado deveríamos reunir nossos melhores recursos humanos para pensar projetos multidisciplinares de interesse estratégico nessa área. Não os projetos usuais, delineados para atender ao interesse ou à curiosidade científica de grupos de pesquisadores que também, sem dúvida, no futuro virão a mostrar aplicações práticas. Refiro-me a projetos com um norte bem definido. Por exemplo: um projeto pirarucu. Reunindo o melhor da inteligência que o país dispõe na área, estudar-se-ia de modo integrado sua biologia e fisiologia reprodutiva, a diferenciação geográfica e a variação genética para melhor conhecer sua evolução, a inseminação artificial, a manutenção e o crescimento da espécie em cativeiro, as patologias, assim como projetos piloto visando sua criação por comunidades locais e sua comercialização. Se um projeto induzido deste tipo fosse concebido e, admitamos que 10 ou 15 anos após seu início, iniciássemos a exportação de um peixe fino, com mais de 100 quilos, digamos que para o mercado chinês, o país não seria mais o mesmo. Não custa estender o sonho! Em caso de sucesso, contaríamos com os recursos da exportação de um produto de nossa fauna, elevaríamos o nível sócio-econômico de nossa população e contaríamos com uma alternativa saudável ao consumo de carne bovina, envolvendo as comunidades locais com o que sempre gostaram de fazer - lidar com nossa diversidade biológica.

    Não me parece muito ambicioso que, sob a supervisão e patrocínio do Estado se estudasse a concepção de um projeto de risco deste tipo para cada um dos ecossistemas brasileiros. Temos tudo; recursos biológicos, água e uma fantástica diversidade climática. Dói pensar na imensa quantidade de água que se perde no Cariri cearense ou no sul do Piauí, quando esta poderia, entre múltiplos outros usos, ser aproveitada em projetos de piscicultura que beneficiariam as comunidades locais e o país. Conceber e executar esses projetos depende da vontade do governo e da consciência de compromisso social com o país que todo cientista deve ter. Projetos desse tipo talvez permitissem recuperar um pouco o sentimento de patriotismo praticamente esquecido pelo arrastão de atividades de rotina que passamos a exercer no dia a dia deste mundo globalizado.

    Projetos com estrutura semelhante na área de biodiversidade não representam uma concepção inovadora. Na verdade, aproveitam a velha experiência dos institutos de pesquisa criados, geralmente em momentos de crise, na primeira metade do século passado para solucionar problemas que afetavam seriamente o país. A pesquisa aplicada, motivo de criação daqueles institutos, acabou trazendo a pesquisa básica para auxiliá-la, permitindo descobertas que trouxeram posteriormente retorno econômico para o país. Atualmente, a experiência mostra que talvez não haja necessidade de criar novos institutos com estrutura física. Parece mais aconselhável reunir pesquisadores em grupos multidisciplinares de pesquisa, com objetivos específicos, que podem extinguir-se quando o objetivo principal foi atingido. Este tipo de estrutura, muito mais moderna, adapta-se muito melhor à dinâmica das necessidades que um país como o nosso exige de sua comunidade científica e impede desvios de rumo. Os exemplos dos projetos dirigidos e muito bem sucedidos realizados pela Fapesp estão aí para nos mostrar o caminho.

    Precisamos, também, aumentar, em todos os níveis, a articulação interdisciplinar para explorar o potencial oferecido por nossa riqueza biológica. Esta tarefa não deve ser só estimulada pelo governo, a iniciativa deve partir e estar presente na comunidade científica. Conhecemos muito pouco de nossa diversidade biológica e o tamanho dessa lacuna está em relação direta com o potencial para utilização desses recursos. Devemos aproveitar melhor as oportunidades de pesquisa articulada que se nos oferecem para melhor conhecer e pensar o país. Um dos exemplos mais elucidativos que me ocorrem é o dos levantamentos da biota que se fazem por ocasião da construção de empreendimentos hidroelétricos. À parte de um exército de zoólogos e botânicos sistematas, poucos demonstram interesse em aproveitar essa oportunidade única para ampliar o conhecimento sobre nossa diversidade biológica. Conhecer melhor as doenças de nossos animais e plantas nativos certamente tem importância estratégica para um país que vem substancialmente alterando seus habitats naturais. Estudar a curto, médio e longo prazo os efeitos dos represamentos causados por esses empreendimentos sobre as comunidades animais e vegetais são outras oportunidades oferecidas pelo cenário experimental provocado por obras deste tipo. Finalmente, poderíamos aproveitar a fauna e flora desalojada para, pelo menos, fazê-la conhecida da maioria do povo, contribuindo por pouco que fosse para elevar o nível de conhecimento, de educação ambiental e de consciência social das gerações futuras. Temos um longo caminho a percorrer.

     

    Miguel Trefaut Rodrigues é professor titular do Instituto de Biociências da USP, presidente do Conselho Orientador da Fundação Parque Zoológico de São Paulo e foi diretor do Museu de Zoologia da USP (1997-2001).

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Mittermeier, R. A., Mittermeier, C. G., Pilgrin, J. Fonseca, G., Konstant ,W. & Brooks, T. Wilderness: earth's last wild places. Cemex. Agrupación Sierra Madre, Mexico, pp. 574. 2003.

    2. Moritz, C. Strategies to protect biological diversity and the evolutionary processes that sustain it. Syst. Biol. 51(2): 238-254. 2002.