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Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003
NATUREZA MORTA
RODRIGO PETRONIO
As frutas estão podres sobre a mesa. Não é a ação do tempo, o curso irrefreável da natureza. Não é o desligamento maligno da matéria. São frutas sobre a mesa. As frutas estão podres. Não é o que consumiste nas tuas horas de insônia, a brasa do cigarro reverberando no vazio. Não é a pobreza, o subdesenvolvimento ou a ação do vento que encera os ossos. São frutas sobre a mesa. As frutas estão podres. A maçã e sua espada, a pêra, sua anatomia, o abacaxi refratário vestindo organdi. Não é a epifania, o signo que aspira a eterno, a luz táctil de Morandi. Não estão no lugar do Deus ausente. Não anunciam a morte da semente. São frutas sobre a mesa. As frutas estão podres. Não quero refrear a sua química. Não quero vasculhar o seu mistério. Não quero conceder beleza a elas. Não é o imperativo categórico. Não é o animal que em nós se aninha. Não é a dramatização de um conceito nem a contrafação do diamante ou aquilo que o amante faz no leito. São frutas sobre a mesa posta. Estão podres. Não em busca de resposta. |
DANÇA
É inútil querer que a alma seja una. Simulacro que aos olhos se desata e na matéria cálida ressuma alheia à vida e, no que morre, intacta. Tela branca que o tempo mimetiza em sua fluência líquida e serena, inscrição frugal que a ave faz na brisa, signo ancestral que aos mortais acena do interior do âmbar resoluto, giro dos seres que o sensível esmalta à sombra do que fora Absoluto: irmã do Ser Imóvel do Eleata, dança a alma quando vive do que falta e morre em quanto aspira ser exata. |
* Poema do livro inédito Cinco Marias
AVESSIA
excertos
Levamos frutas uma progênie cestas de uva esse espanto de sermos apenas um dos tantos instantes compostos no milagre de tudo o que há para os olhos e o tato e que está além deles. Fósseis animados música antiga esgrima de águas como porcelanas rompidas muitas vidas numa vida no corpo a corpo das vagas ameixas no convés o segredo inexplicável de descendermos dos mortos sem no entanto tocá-los. Sob a pele resumidos o poder de gerar e condensar a todos numa só vida como os tons reunidos no branco a espera de serem libertos os mortos que nos rondam que nos impregnam cada gesto e estão na composição do corpo a murmurar cada vida amigo cada vida que vem à luz é uma ressurreição. Não há nascimento só há renovação. E o remo sulca a superfície roxa do mar, e você escuta calada a memória de todos os projetos a voz de todos os mortos no eco de uma concha. |
Rodrigo Petronio é escritor e pesquisador. Cursa mestrado em Literatura Espanhola na USP e é autor do livro de poemas História natural (Editora Gargantua, 2000) e do livro de ensaios Transversal do tempo (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001).