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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.3 São Paulo jul./sep. 2003

     

     

    NATUREZA MORTA
    RODRIGO PETRONIO

     

    As frutas estão podres
    sobre a mesa.
    Não é a ação do tempo,
    o curso irrefreável da natureza.
    Não é o desligamento
    maligno da matéria.
    São frutas sobre a mesa.

    As frutas estão podres.
    Não é o que consumiste
    nas tuas horas de insônia,
    a brasa do cigarro
    reverberando no vazio.
    Não é a pobreza,
    o subdesenvolvimento
    ou a ação do vento
    que encera os ossos.
    São frutas sobre a mesa.

    As frutas estão podres.
    A maçã e sua espada,
    a pêra, sua anatomia,
    o abacaxi refratário
    vestindo organdi.
    Não é a epifania,
    o signo que aspira a eterno,
    a luz táctil de Morandi.
    Não estão no lugar do Deus ausente.
    Não anunciam a morte da semente.
    São frutas sobre a mesa.
    As frutas estão podres.

    Não quero refrear a sua química.
    Não quero vasculhar o seu mistério.
    Não quero conceder beleza a elas.
    Não é o imperativo categórico.
    Não é o animal que em nós se aninha.
    Não é a dramatização de um conceito
    nem a contrafação do diamante
    ou aquilo que o amante faz no leito.
    São frutas sobre a mesa posta.
    Estão podres.
    Não em busca de resposta.

     

    DANÇA

     

    É inútil querer que a alma seja una.
    Simulacro que aos olhos se desata
    e na matéria cálida ressuma
    alheia à vida e, no que morre, intacta.

    Tela branca que o tempo mimetiza
    em sua fluência líquida e serena,
    inscrição frugal que a ave faz na brisa,
    signo ancestral que aos mortais acena

    do interior do âmbar resoluto,
    giro dos seres que o sensível esmalta
    à sombra do que fora Absoluto:

    irmã do Ser Imóvel do Eleata,
    dança a alma quando vive do que falta
    e morre em quanto aspira ser exata.

    * Poema do livro inédito Cinco Marias

     

    AVESSIA
    excertos

     

    Levamos frutas
    uma progênie
    cestas de uva
    esse espanto
    de sermos apenas
    um dos tantos instantes
    compostos no milagre
    de tudo o que há
    para os olhos e o tato
    e que está além deles.
    Fósseis animados
    música antiga
    esgrima de águas
    como porcelanas rompidas
    muitas vidas numa vida
    no corpo a corpo das vagas
    ameixas no convés
    o segredo inexplicável
    de descendermos dos mortos
    sem no entanto tocá-los.
    Sob a pele resumidos
    o poder de gerar
    e condensar a todos
    numa só vida
    como os tons reunidos
    no branco a espera
    de serem libertos
    os mortos que nos rondam
    que nos impregnam
    cada gesto e estão na composição
    do corpo a murmurar
    cada vida amigo
    cada vida que vem à luz
    é uma ressurreição.
    Não há nascimento
    só há renovação.

    E o remo sulca a superfície
    roxa do mar, e você escuta calada
    a memória de todos os projetos a voz de todos
    os mortos no eco de uma concha.

     

     

    Rodrigo Petronio é escritor e pesquisador. Cursa mestrado em Literatura Espanhola na USP e é autor do livro de poemas História natural (Editora Gargantua, 2000) e do livro de ensaios Transversal do tempo (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001).