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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.55 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2003
Uma das questões centrais do Núcleo Temático deste número da Ciência e Cultura dedicado à Gestão das Águas pode ser formulada sob a forma de um paradoxo: Por que, no Brasil, havendo abundância de águas, há escassez?
As respostas a esta pergunta constituem um dos fios condutores dos artigos sobre o tema e apontam para os diversos aspectos que envolvem o ser água em estado natural e os de sua transformação cultural em recurso hídrico.
O planeta Terra, que já foi chamado planeta Água pela liqüidez de sua consistência, tem na geografia brasileira uma concentração de águas doces equivalentes a 12% do total existente no mundo.
Vários fatores interferem para motivar os riscos da escassez da água enquanto valor econômico, entre eles, o desperdício, a poluição, a contaminação industrial, a desproporção entre demografia e disponibilidade natural, a ocupação desordenada do solo rural e urbano, as disputas políticas pelo seu controle, a falta de políticas públicas educacionais que levem a uma cultura de preservação, a cultura predatória de nossa longa tradição de ocupação e abandono da terra, e a ausência do sentido de cidadania capaz de encurtar, na população, a distância entre o público e o privado, o particular e o coletivo, o individual e o social.
É interessante notar que a formulação do paradoxo contido em nossa pergunta só foi possível graças à concepção da Terra como um sistema. Graças, portanto, a uma mudança do paradigma teórico que, deixando de ser cartesiano, permite ver, com clareza, a sistematicidade das relações entre as partes vivas do planeta plantas, microorganismos e animais e as suas partes não vivas - rochas, oceanos, rios e atmosfera.
Mudar, nessa área do conhecimento, da idéia de que o entendimento das partes leva à compreensão do todo, para a idéia de que o todo é maior do que a soma das partes, e que é a sua visão de conjunto que permite a compreensão das partes, significou, pois, uma revolução teórica para os estudos e pesquisas científicas.
Mais interessante, ainda, é dar-se conta de que essa percepção sistêmica da Terra e de seus contrários só se explicita, na forma que a conhecemos hoje, a partir dos anos 1960, quando todos pudemos vê-la, pelas fotos do Sputinik, envolta num manto azul e branco de águas e transpirações.
O poeta francês Paul Eluard registrou num poema epigramático, curto e leve, como convém ao gênero, denso e etéreo, como cabe ao tema, a geometria da forma e a plasticidade suculenta desse fruto cósmico:
LA TERRE EST | A TERRA É |
BLEU | AZUL |
COMME UNE ORANGE | COMO UMA LARANJA |
Não podemos, contudo, deixá-lo ser sugado pela voracidade da ignorância e pela esperteza sabida dos oportunistas. Para que a beleza cósmica e fluida do planeta não se decepcione nos detalhes de sua convivência com as sociedades humanas é preciso que os povos e as nações constituam com firmeza a cultura da preservação e da gestão competente de nossas águas.
Notícias, informações, literatura e reportagens, completam a cartografia da navegação deste número de nossa revista Ciência e Cultura.
CARLOS VOGT
Editor Chefe, outubro de 2003