SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.4 São Paulo oct./dic. 2003

     

     

     

    ENTREVISTA

    Marcelo Damy de Souza Santos

     

    Marcelo Damy é um grande nome da física no Brasil. Ouvi-lo discorrer sobre sua vida de pesquisador acrescenta muito no conhecimento da história da ciência no Brasil. Ele nasceu em Campinas, no interior paulista, em 14 de julho de 1914. Tinha tudo para seguir a carreira de engenheiro, mas optou por ser físico, influenciado pelo professor Gleb Wataghin – de quem se lembra com enorme admiração e respeito. Sua vida é pontuada por realizações de diferentes matizes: influenciou para que o primeiro reator nuclear da América do Sul fosse produzido no Brasil; foi professor de alunos que se tornaram grandes cientistas; desenvolveu estudos que tiveram reconhecimento internacional. Além de tudo, orgulha-se, também, de ter consertado muitos aparelhos eletrônicos por prazer e "para ganhar uns cobrinhos", e de inventar um aparelho para afinar instrumentos musicais.

    Como surgiu seu interesse pela física?

    MARCELO DAMY Quando decidi ser físico, a física nem existia no Brasil. Quem ensinava a matéria eram médicos, engenheiros, farmacêuticos. Entrei em contato com a física no ginásio, em Campinas, com Aníbal de Freitas, um excelente professor que me incentivou muito. Em São Paulo, entrei na Escola Politécnica para fazer o curso de engenharia eletricista (como era chamada na época), onde tive como professor de física um engenheiro, também muito bom. Depois, ao ser criada a Faculdade de Filosofia, a área de matemática e física da Poli uniu-se a ela.

     

     

    Como conheceu o professor Gleb Wataghin?

    Wataghin era o professor no curso de física na Faculdade de Filosofia. Assisti a uma conferência dele no Instituto de Engenharia, com outros colegas como o Mário Schemberg, e foi surpreendente saber que havia uma física da qual nós nunca havíamos ouvido falar. Naquele momento, ficamos sabendo que os físicos continuavam a fazer descobertas em seus laboratórios. Decidi assistir as aulas do Wataghin como ouvinte.

    O que o fez mudar os rumos de sua carreira?

    Depois de freqüentar o primeiro semestre, fiquei amigo dos poucos alunos que haviam se matriculado na Faculdade de Filosofia para estudar física e fui assistir ao exame deles. Quando terminou, Wataghin virou-se para mim e disse assim "Venga!". Respondi: "Professor, não sou seu aluno, sou ouvinte. Sou da Escola Politécnica". Mas ele insistiu: "Não, você está sempre aqui e eu quero ver o que você aprendeu". Assim, de sopetão, eu fiz um exame oral (risos). E me saí muito bem, tão bem que ele me propôs mudar da engenharia para a física. Virei físico, graças a ele.

    Naquela época, o professor Wataghin já dava aulas sobre mecânica quântica?

    Sim! Ele era um dos maiores físicos da Itália, era amigo do Heisenberg... Quando a Faculdade de Filosofia foi criada, não tinha nem prédio, por isso funcionava na Politécnica. Wataghin tinha lá o seu escritório, e arrumou uma mesa para mim e outra para o Mário Schemberg. Era uma sala grande, com duas mesas, um quadro negro, depósito de livro, depósito de aparelho... lugar para aluno... era tudo junto. Mas quando ele começava a dar aula, todo mundo tinha que ficar quieto. E foi assim que começou.

    Qual a diferença do professor Wataghin em relação a outros professores da Poli?

    Ele era muitíssimo diferente. A grande diferença era, basicamente, a seguinte: Wataghin era um homem que já tinha trabalhado com física atômica e nuclear; ele acreditava no átomo, em partículas elementares, em reações, em fazer descobertas dentro da física; já, os outros professores da época, não. Eles repetiam as mesmas coisas que liam ao prepararem suas aulas, na véspera.

    Os acadêmicos brasileiros da época resistiram à vinda de Wataghin para o Brasil?

    Havia uma resistência infinita, que não existe mais. Por exemplo, falar em rádio naquele tempo, o pessoal achava coisa de loucos. Uma válvula de rádio? Todos davam risadas. Havia um grande atraso no tempo. Por exemplo, o livro de física oficial daquele tempo era de antes da Primeira Guerra Mundial. Quer dizer, átomo era uma abstração... E Wataghin falava em átomo – "particele elementare"– ... essas coisas todas.Grande parte dos professores combatia a Faculdade de Filosofia por ensinar abstrações. Eles tinham uma mentalidade de antes da Primeira Guerra Mundial.

    O senhor poderia mencionar alguma aula inesquecível?

    Acho que todas as aulas de Wataghin eram marcantes. Ele tinha um outro conceito de ensino. Ele contava o fenômeno que ele estudou, uma experiência que ele fez. Os nossos professores contavam uma experiência que alguém escreveu em um livro. Possivelmente, nunca nem tinham feito aquela experiência.

    Na sua opinião, o que é ser um pesquisador e ser um professor?

    Um bom professor é um pesquisador que gosta de contar as coisas que faz e que viu outros fazerem. Eu não conheço nenhum bom professor que não tenha sido, ou não seja ainda, um pesquisador.

    O senhor foi professor do Cesar Lattes. Ele era um aluno diferenciado?

    Com certeza! Ele é o maior cientista que o Brasil já produziu. A gente percebe pelas perguntas que o aluno faz em aula. Conforme a pergunta, a gente sabe o seu nível, e um bom professor indica sempre os livros mais modernos. Quando um aluno lê, ele quer mais informações, então, faz perguntas sobre aquele tipo de pesquisa. A gente nota logo o aluno que vai ser um pesquisador e aquele que não vai. Eu nunca tive dúvidas com relação ao Cesar. Ele é, indiscutivelmente, o melhor cientista que o Brasil já teve. Pelas descobertas que ele fez em física experimental, do Méson pi. Só isso já chega... (risos)

    O senhor foi professor de muitas mulheres que se dedicaram ao estudo da Física?

    Muitas mulheres, algumas excepcionais. As atuais professoras de física da PUC-SP, que fizeram doutoramento comigo, continuam fazendo pesquisas de primeira ordem, em um acordo com a Universidade de Coimbra e com um centro de pesquisas em Genebra - o maior centro de pesquisas do mundo, onde está a maior autoridade mundial em detectores de partículas e a aparelhagem mais perfeita que existe. Não há diferenças nas pesquisas feitas por homens ou mulheres.

    Como se criou o Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)?

    Eu já estava aposentado da USP e, no ano em que eu me aposentei, o professor Zeferino Vaz, um homem de grande visão, resolveu criar a Unicamp e me convidou para organizar o Instituto de Física. Assim eu fui para lá. Na ocasião, tínhamos físicos muito bons que estavam treinando nos EUA, começando pelo Rogério Cerqueira Leite, e vários outros.

    Quais linhas de pesquisas iniciaram-se nesse instituto?

    Decidi iniciar pela física no estado sólido porque era o ramo que estava mais em desenvolvimento e que dependia mais de uma série de teorias que tinham que ser verificadas. E também pela mecânica quântica, de partículas, que acabavam de surgir. Procurei trazer o melhor pessoal que já estava trabalhando nesses campos no exterior. Mas, quando o indivíduo vinha para cá tinha o compromisso de organizar o seu laboratório igual ao que ele trabalhava lá fora, de modo que toda a instrumentação que ele usava lá fora vinha para o Brasil.

    Onde está o aparelho que o senhor usou nas pesquisas sobre raios cósmicos e chuveiros penetrantes na Universidade de Cambridge e trouxe para o Brasil, no seu retorno ?

    Se eu contar, vocês não acreditam... foi para o lixo! Jogaram o aparelho no lixo. O que tem ainda, do meu tempo, é o betatron que eu montei, puxei quilômetros de fios ali... Agora, aqui em São Paulo, foi para o lixo o aparelho com o qual nós fizemos todas as pesquisas de raios cósmicos, e que eu trouxe da Inglaterra.

     

     

    Na sua opinião, qualquer pessoa pode ser um cientista?

    Não. Um cientista tem que ser, em primeiro lugar, inteligente e também ser criativo. Criatividade a gente desenvolve no aluno enquanto ele estuda, provocando. A gente descreve uma experiência no laboratório, faz o aluno pegar um aparelho, montar um aparelho, tentar descobrir como ele é feito, explicar porque aqui tem uma molinha, porque ali não tem...

    Quais são seus interesses além da física?

    Os físicos têm que se interessar por muitas coisas. Eu tenho vários hobbies. No tempo de estudante, o meu hobby foi mexer em aparelhos de rádio. Eu gostava de mexer com eletricidade, descobri que podia ganhar algum dinheiro e, com isso, custeei meus estudos. Depois de formado, meu interesse voltou-se para a música. Minha mãe era professora de piano, então eu gostava muito de piano, mas não tinha paciência de aprender, queria tocar logo de cara. Mas me casei com uma pianista, a Lúcia. Aí voltou não só o interesse pela música clássica, que eu sempre cultivei, mas voltou a parte experimental. Quero dizer, o piano encrencava e eu consertava (risos). Nós tínhamos aqui em casa, até pouco tempo atrás, um conjunto renascentista de flautas doce. Eu tenho todos esses instrumentos antigos aqui em casa, que nós compramos na Europa, inclusive um cravo.

    O senhor sabe tocar esse cravo?

    Quem toca é a Lúcia. A Lúcia dá concertos de piano com "c", e eu, conserto com "s". Fiz um aparelho para afinar instrumentos musicais que emite todas as notas de qualquer instrumento. A Lúcia, que é professora do Municipal, espalhou que eu tinha um aparelho que afinava qualquer outro, e minha casa virou um inferno. Chegava fim de semana e aparecia gente pedindo para eu afinar os aparelhos. Foi ótimo porque tínhamos música muita boa aqui nos fins de semana.

    Qual a graça de ser cientista?

    Eu me realizo, porque eu me sinto capaz de realizar as coisas que eu gosto. Se eu quiser fazer um piano, eu faço. Se eu quiser fazer um bandolim, eu sei como calcular e fazê-lo funcionar, verificar se ele é bom. Agora, ser físico, é uma coisa bonita... Dá uma sensação de poder sobre a natureza. Poder sobre certas coisas naturais, mas não sobre a vida. A física é bonita porque ela explica coisas que, para muitos, são misteriosas.

     

    Juliana Schober e Roberto Belisário