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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.4 São Paulo out./dez. 2003

     

    APRESENTAÇÃO

    Carlos José Saldanha Machado

     

     

    Nesses tempos de mudanças políticas, induzidas pela vontade de construção de uma sociedade menos injusta, desigual e mais fraterna, a gestão democrática de um bem de uso comum do povo, a água, está no centro de nossas inquietações e perplexidades diante dos rumos da modernização brasileira no cenário de um mundo globalizado.

    Recurso natural indispensável à vida dos homens, a água transformou-se num bem absolutamente necessário e essencial para a sobrevivência de agrupamentos humanos, comunidades, coletividades, cidades e nações que dela dependem tanto para existir simplesmente quanto para satisfazer as suas necessidades sociais e econômicas. Decorrentes das transformações do mundo moderno, esta ou aquela necessidade tem, entretanto, como principal justificativa àquilo que se impõe aos homens e à sociedade como indispensável à sua própria qualidade de vida. Ora, a necessidade de água, em particular de água potável, não foge a construções discursivas que têm colocado o problema da ausência ou carência de água como vital para a humanidade. Com efeito, a idéia de que a água é essencial à vida, assim como o próprio ar que se respira, não é mais um simples enunciado que se refere ao conjunto de propriedades e qualidades que mantêm a vida no nosso planeta. Nos dias de hoje, a água é indubitavelmente um dos bens mais preciosos e importantes que se conhece e que de algum modo se considera imprescindível para as populações.

    Contudo, nem sempre aquele entendimento regeu o modo de relação dos seres humanos com os recursos hídricos. Ao longo do último século, no Brasil, as grandes massas de água foram consideradas como dádivas da natureza, reservatórios inesgotáveis, capazes de fornecer água pura eternamente e de receber e absorver quantidades ilimitadas de rejeitos provenientes das atividades humanas. Mas, com o crescimento acelerado da população, a urbanização das cidades, o desenvolvimento industrial e tecnológico e a expansão das áreas agrícolas, as poucas fontes disponíveis de água estão comprometidas ou correndo risco.

    Além disso, os problemas do país também estão relacionados à distribuição irregular dos recursos hídricos e ao desperdício presente em todos os níveis da sociedade. Setenta por cento da água brasileira está na região Norte, onde vivem apenas 7% da população; a região Sudeste, que tem a maior concentração populacional (42,63%), dispõe de apenas 6% dos recursos hídricos, e a região Nordeste que abriga 28,91% da população dispõe apenas de 3,3%. Entre 40% e 60% da água tratada pela maioria dos serviços estaduais de abastecimento de água, em média, é perdida no percurso entre a captação e os domicílios, em função de tubulações antigas, vazamentos, desvios clandestinos e tecnologias obsoletas.

    Como se não bastasse esse desequilíbrio geográfico, a água no Brasil está também ameaçada pela poluição, pela erosão, pela desertificação e pela contaminação do lençol freático. Rios, riachos, canais e lagoas foram assoreados, aterrados e desviados abusivamente, e mesmo canalizados; suas margens foram ocupadas, as matas ciliares e áreas de acumulação suprimidas. Regiões no passado alagadiças, com pântanos, mangues, brejos e várzeas foram, primeiro, aterradas e, depois, impermeabilizadas e edificadas. Imensas quantidades de lixo ou resíduos sólidos acumulam-se dentro e/ou nas margens de rios, riachos, lagos e baias. Com isso, a drenagem urbana no Brasil se tem tornado catastrófica: a cada verão, a chuva paralisa as grandes cidades nos dias de maior intensidade de precipitação trazendo, em seu rastro, as epidemias de leptospirose. Quando não é enchente, são desmoronamentos de encostas. Para complementar esse quadro dantesco, a falta de saneamento leva o Brasil a conviver ainda, em vastas regiões, com epidemias e endemias provocadas por agentes patológicos transmitidos pela água, como a dengue, a esquistossomose e a malária.

    Essa realidade, num país de dimensões continentais, faz com que a recuperação de rios, lagoas, açudes, baias e praias contaminadas seja um campo de atuação vastíssimo, implicando na elaboração de programas e projetos que, freqüentemente, extrapolam as fronteiras político-administrativas. Por exemplo, o Brasil possui 22% da sua população concentrada em 398 municípios costeiros. Inúmeros municípios ao longo de rios, que abastecem a todos, precisam buscar uma ação coordenada de despoluição hídrica, como tratamento de efluentes domésticos e industriais, reflorestamento das matas ciliares e proteção de mananciais.

    Mas, em nível da administração pública, durante seis décadas os recursos hídricos no Brasil foram geridos por seus usuários. Cada um visualizando uma única função e um único uso para a água, de acordo com seus interesses e necessidades (irrigação, abastecimento domiciliar, abastecimento industrial, saneamento, geração de energia elétrica e outros). O resultado foi sempre uma diversidade de intervenções desordenadas nos corpos de água num país que foi se transformando de rural para urbano ao longo dos últimos 50 anos. Segundo dados recentes da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 19% da população vive no campo, enquanto 81% vivem em centros urbanos, sendo a zona costeira habitada por 22% da população que se concentra em 7% dos municípios brasileiros.

    Como resultado de uma urbanização intensa e concentrada no tempo e no espaço, mas também profundamente desordenada, sem disciplina efetiva de uso e ocupação do solo, e das desigualdades sociais e regionais, a necessidade de água para o abastecimento das aglomerações urbanas tornou-se um problema tão importante quanto o fenômeno econômico responsável pela concentração cada vez mais densa de populações nas cidades: a industrialização.

    Como se não bastassem todos os impactos da vida urbana sobre as águas, na área rural, os agricultores e pecuaristas utilizam cada vez mais agrotóxicos e adubos inorgânicos, que são levados pela chuva para os rios ou se infiltram no solo, contaminando as águas; as faixas de terra que deveriam estar ocupadas por matas ciliares são utilizadas ilegalmente, quase sempre, por excluídos do campo e produtores rurais, alterando o regime dos rios e a prática cada vez mais disseminada da agricultura irrigada acrescentou um novo elemento na disputa pelo uso da água em algumas regiões.

    Tudo isso contribuiu para que se desse início a uma profunda revisão da legislação brasileira sobre uso da água, através da Lei Federal nº 9.433 de 08 de janeiro de 1997, em que a supremacia de mais de 60 anos do setor elétrico cedeu lugar à convicção da necessidade de se gerenciar os recursos hídricos a partir de uma visão de usos múltiplos.

    Portanto, há seis anos, a gestão dos recursos hídricos no Brasil vem passando por uma transição institucional. A Lei no 9.433/97, conhecida como Lei das Águas, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos definindo, para tanto, um conjunto de instrumentos institucionais voltados para o gerenciamento dos recursos hídricos do país. A Lei das Águas almeja disciplinar o uso das águas, incorporando em seu texto algumas importantes inovações conceituais, jurídicas e institucionais que vinham sendo propostas e debatidas nacional e internacionalmente pelos diversos setores envolvidos com a administração e o uso dos recursos hídricos, assim como com a questão ambiental, particularmente desde a década de 1980 no país e no exterior. Nesse sentido, com o início do gerenciamento por meio de Comitês e Agências de bacias, a atualização e/ou aprovação e regulamentação das legislações estaduais de recursos hídricos, a privatização de alguns serviços públicos de água potável e saneamento de águas servidas e a criação da Agência Nacional de Águas (Lei no 9.984/00) o quadro sociopolítico dessa transição tende a transformar-se de modo decisivo. Como veremos ao longo desse Núcleo Temático, embora essas transformações reflitam preocupações globais com forte penetração nas sociedades locais, os processos de mudanças induzidos pela nova política de recursos hídricos ocorrem de forma extremamente variada, num país de dimensões continentais, sendo localmente apropriados e recriados com nuances infindáveis.

    Trata-se de uma transição institucional que tem motivado, no campo das ciências e das engenharias, o crescimento e formação de novos grupos e linhas de pesquisas, debates e publicações sobre temas os mais diversos, indo da recarga de aqüíferos até a defesa da integração de dispositivos jurídicos sobre a gestão das águas interiores com águas subterrâneas e gestão das zonas costeiras, passando pela calibração de técnicas de medição de vazão, de reuso de água, de modelos de drenagem urbana, além das novas formas de financiamento de pesquisas técnico-científicas sobre recursos hídricos, da articulação entre recursos hídricos e saneamento ambiental, indo até a defesa de um federalismo cooperativo na gestão por bacias hidrográficas, entre tantos outros temas.

    Para contribuir também com este debate, que já acumula um volume considerável de material impresso e digital, os nove artigos reunidos neste número de Ciência & Cultura visam, tão somente, apresentar e discutir alguns dos problemas associados ao tema da gestão das águas no Brasil através do ponto de vista de profissionais de formações e vinculações institucionais as mais variadas, a fim de que o cientista-cidadão, alunos de graduação e pós-graduação, funcionários públicos, políticos profissionais e o cidadão comum possam dispor de uma visão substantiva dos problemas em foco.

    Nos quatro primeiros artigos, a idéia de integração é enfatizada como forma de resolver questões específicas relacionadas à gestão e planejamento sustentável do uso das águas. Inicialmente, após uma breve contextualização histórica sobre a necessidade de se tratar os usos humanos dos recursos naturais por meio de sua gestão, um antropólogo apresenta argumentos em prol da gestão integrada na elaboração e execução dos Planos de Recursos Hídricos por meio da adoção de um estilo de ação orientado para a negociação entre o corpo social e o corpo técnico-científico, sem julgamentos a priori, ou seja, orientado por uma nova lógica, a lógica "socio-técnica". Em seguida, devido à sua importância estratégica para o Estado brasileiro, um geógrafo-oceanógrafo e sua aluna de graduação, preocupados com os inúmeros problemas existentes na zona costeira brasileira, propõem tornar compatível as diferentes formas de pensar o processo de desenvolvimento do gerenciamento costeiro de forma integrada. No terceiro artigo, um limnologista apresenta e discute a importância de se estabelecer a interação entre os conceitos de "ciclo hidrológico" e "ciclo hidrossocial" para uma efetiva gestão integrada. No quarto artigo, um hidrogeólogo retoma a idéia de gestão integrada como a solução menos dispendiosa em termos econômicos, sociais e de conservação dos recursos hídricos para a questão da escassez nas regiões brasileiras.

    No quinto artigo, a relação entre ciclo hidrológico e áreas urbanas é analisada por um hidrólogo através do problema específico da drenagem urbana. Nesse texto é feita uma revisão de alguns conceitos e são propostas algumas soluções em termos micro e macroestruturais. Da área urbana, mudamos de escala e coordenadas geográficas para observar uma região brasileira onde, historicamente, a escassez de água doce tem assumido feições dramáticas: o Nordeste semi-árido. Nesse artigo, uma socióloga se debruça sobre os desafios da implementação das inovações conceituais trazidas com o novo arcabouço jurídico e institucional dos recursos hídricos brasileiros para focar sua atenção sobre os aspectos sociais e políticos da gestão participativa. Em seguida, uma antropóloga discute os desafios enfrentados pelos Comitês de Bacias Hidrográficas destacando como questões particularmente complexas o fato da bacia hidrográfica ser a unidade de gestão, o modelo de descentralização adotado, e os problemas relacionados com a participação. No penúltimo artigo, a problemática da relação entre o que determina a Lei e a forma como ela é praticada pelos atores é desenvolvida por um jurista que analisa a questão do sistema federativo na gestão das águas através da discussão do papel que deve desempenhar o Conselho Nacional de Recursos Hídricos no respeito do pacto federativo estabelecido na Constituição Federal de 1988. Finalmente, este Núcleo Temático de Gestão das Águas se encerra com o artigo de um engenheiro civil e de um hidrólogo sobre a nova modalidade de financiamento e gestão da pesquisa técnico-científica no Brasil: os Fundos Setoriais, que surgem no âmbito do processo de privatização e desregulamentação das atividades de infra-estrutura no país dos anos 1990. O autor faz um balanço e apresenta os resultados alcançados com o Fundo Setorial de Recursos Hídricos.

     

    Carlos José Saldanha Machado é antropólogo, professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Ambiental da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Peamb/Uerj. É representante do Fórum de Reitores das Universidades do Estado do Rio de Janeiro e presidente da Câmara Técnica de Sistema de Gestão no Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro.