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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2003

     

     

    A SEDE ZERO

    Aldo C. Rebouças

     

    Mas, doutor, uma esmola
    A um homem que é são
    Ou lhe mata de vergonha
    Ou vicia o cidadão
    Luiz Gonzaga

     

    As fomes são guerras que ocorrem pelo direito da existência, desde os primórdios dos tempos primitivos da humanidade na Terra. Porém, sem água não há como fazer guerra nem produzir alimentos para combater a fome. A divisão da descarga média de longo período dos nossos rios, a maior do mundo -183.000 m3/s, ou 5.764 km3/ano - pela população nacional (segundo dados do IBGE de 2000), indica que o cidadão brasileiro, em geral, tem da ordem de 34.000 m3/ano per capita de água doce nos seus rios para usar (1). Isto nos coloca na classe dos povos ricos de água doce no mundo. Vale destacar, que a oferta de menos de 1.000 m3/ano per capita nas regiões áridas relativamente desenvolvidas do mundo representa o "stress hídrico" (2).

    O Brasil não é tão rico de água assim, dizem alguns, à medida que perto de 80% das descargas anuais dos nossos rios ocorrem nas regiões hidrográficas dos rios Amazonas e Tocantins, onde se tem a mais baixa densidade demográfica do país. Porém, fica difícil explicar ao mundo de água escassa que, até nas cidades mais importantes da região Amazônica, tais como Manaus e Belém, quase metade das populações que aí vivem esteja sujeita aos mesmos problemas de saneamento básico que ocorrem nas regiões metropolitanas de Fortaleza, Recife ou São Paulo, por exemplo.

    A ALTERNATIVA MAIS BARATA É SUA GESTÃO INTEGRADA A propósito, a Carta Magna Federal de 1988, vigente, estabelece como prioridades: o direito de todo cidadão à água limpa de beber, produção de alimentos e dessedentação de animais. Além da relativa abundância de água doce nos rios em todas as cinco regiões econômicas do Brasil, a extração de apenas 25% das recargas anuais das nossas águas subterrâneas, já representaria uma oferta de mais 4.000 m3/ano per capita (3,4,5). A propósito, no Vale Central do rio San Joaquim, Califórnia, USA - 52.000km2 e chuvas entre 130 e 660mm/ano – as taxas de recarga natural dos aqüíferos ou seu safe yield na fase de pré-desenvolvimento eram de 78 m3/s, porém os poços produzem, atualmente, 446m3/s (6).

    Por outro lado, o inventário dos poços já perfurados no Nordeste revela a existência da ordem de 30 mil que nunca receberam, sequer, equipamentos de extração da água para abastecimento público, principalmente (3, 7, 8, 9, 10). No estado do Piauí, por exemplo, recente inventário indica a existência de cerca de 3.220 poços nessas condições (11). Na Grande São Paulo, estima-se que cerca de 10 mil poços não controlados estão em operação para abastecer hotéis, hospitais, condomínios privados e indústrias, principalmente (12). Nas áreas metropolitanas mais importantes do Brasil, tais como Manaus, Belém, São Luis, Fortaleza, Natal ou Recife, por exemplo, o quadro é, praticamente, o mesmo (13).

    É evidente que a prioridade dada às questões da fome nas favelas das grandes cidades do Brasil e daquela que assola de forma tradicional a população dispersa no semi-árido do Nordeste, não deve ser entendida exclusivamente, nem essencialmente, como desencadeamento de ações emergenciais de enfrentamento da miséria e da pobreza, ainda que medidas compensatórias se imponham.

    Porém, o crescente número de exemplos positivos, oriundos dos países mais desenvolvidos, principalmente, mostra que a alternativa mais barata de solução da escassez local e ocasional da água é sua gestão integrada. Por sua vez, a história mostra que o desenvolvimento da humanidade ao longo dos tempos verificou-se nos contextos hidroclimáticos de abundância e de escassez d'água. Como resultado, torna-se necessário considerar distintas percepções, atitudes, instrumentos legais, institucionais e de gestão da gota d'água disponível. Além disso, as atividades humanas foram cada vez mais se diversificando ao longo dos tempos, associadas às inéditas transformações demográficas na história da humanidade. Isto significa que é necessário buscar soluções para as problemas locais e não tentar aplicar modelos bons para outras condições.

    Assim, a solução de questões da água no mundo exige atenção cada vez maior. Os instrumentos e os mecanismos a serem empregados são diversos e vários deles carecem de estudos e investigações que auxiliem a definição e produzam resultados sanitários, ambientais e econômicos satisfatórios. Portanto, torna-se evidente que a reversão dos cenários de escassez relativa, em termos de suprimento da água limpa de beber, para uso industrial ou irrigação, principalmente, não poderá ser obtida meramente pela atenuação de conflitos de uso, de estabelecimento de prioridades, ou de mecanismos de controle da oferta e dos usos, tais como os de outorga e cobrança.

    Pagar ou cobrar pelo direito de uso da água - seja para produção agrícola ou industrial, seja para transporte e diluição de efluentes, seja para produção de energia hidrelétrica - tem sido mais fácil do que reconhecer obrigações de uso e conservação da gota d'água disponível. Por sua vez, a opção de cobrar ou pagar pelo direito de uso da água traz dois benefícios muito valorizados no mercado mundial. O primeiro, diz respeito ao aumento da quantidade de água disponível. O segundo, diz respeito ao efeito de imagem no mercado, à medida que decidir cobrar ou pagar pelo direito de uso da água é visto pelo mercado global como uma atitude positiva.

     

     

    Entretanto, será imprescindível criar e/ou fortalecer uma ética da água que implicaria em produzir cada vez mais com cada vez menos água e, sempre que possível, proteger os ecossistemas aquáticos, mesmo com sacrifício de interesses financeiros.

    A orientação de como usar mais racionalmente as águas subterrâneas, reusar ou reciclar a água só poderá ser engendrada por políticas públicas (5). Assim, além dos instrumentos de outorga e cobrança pelo direito de uso das águas, outros mecanismos de gestão integrada deverão ser implantados nacionalmente, instrumentos que estimulem a utilização cada vez mais eficiente da água subterrânea, de captação de chuvas e de reuso da água, visando estabelecer o equilíbrio necessário entre ofertas e demandas.

    Assim, além de desenvolver uma cultura e uma política de uso e conservação da água que flui pelos rios – mediante o seu uso planejado nas indústrias, agricultura ou produção de energia hidrelétrica, principalmente – a sua gestão integrada constitui o mais moderno e eficaz instrumento, tanto nas regiões úmidas onde os rios nunca secam e a oferta de água é abundante, quanto nas regiões semi-áridas do Nordeste, onde os fluxos dos rios são temporários, ou nas grandes regiões metropolitanas do Brasil (5).

    A MILENAR "CRISE DA ÁGUA" Os registros disponíveis indicam que, durante a última Idade de Gelo - entre 100 mil e 10 mil anos a.C., principalmente - o crescimento progressivo das massas de gelo na Terra obrigou hordas de caçadores e coletores de alimentos a ocupar as suas regiões mais férteis, tais como os vales dos rios Amarelo na China, Indo na Índia e a Mesopotâmia dos rios Tigre e Eufrates, berço da nossa civilização ocidental.

    Desta forma, há 25 mil anos a.C., pelo menos, mostrou-se que o uso cada vez mais eficiente da gota d'água disponível era a alternativa mais barata de combate à fome. Parece, todavia, que esta lição não foi aprendida até agora, à medida que ainda se procura combater a fome com a distribuição de alimentos, como fez a coroa portuguesa nas suas tentativas iniciais de colonização do Brasil (14).

    Por sua vez, o rei Hamurabi que viveu, provavelmente, entre 1850 e 1750 a.C. e governou a Babilônia durante 43 anos, construía diques nos rios para reter suas enchentes, os quais eram cortados, estrategicamente, para afogar os povos sumérios que vivam a jusante. Assim, foi estabelecida a hegemonia da Babilônia sobre toda a Mesopotâmia, situação que durou milhares de anos. Organizou, ainda, o famoso Código de Hamurabi com base nas antigas leis acadianas e sumérias, principalmente. Este Código foi, certamente, uma das primeiras coleções de leis da história e primeiro documento a definir o direito de uso da água por todo e qualquer indivíduo, prescrevendo estímulos às práticas consideradas adequadas e castigos severos aos que infringissem essas condições (15).

    Portanto, o conceito de água abundante, inesgotável e gratuita, uma dávida de Deus ou de qualquer outra figura cósmica, da igreja ou dos políticos, dos coronéis ou do "homem", da natureza ou dos governos é, certamente, muito obsoleto.

    QUEM É O DONO DA ÁGUA? Salvo melhor juízo, quando a Constituição de 1988 estabeleceu que todos os corpos d'água no Brasil são de domínio público, tornou claro que o direito de uso estava acima do direito de propriedade. Assim, tem-se como premissa que, a partir de então, a gota d'água disponível não pode mais ser usada livremente por cada um.

    A questão acima pode parecer extravagante para quem vive numa região onde a água foi sempre abundante, como na Amazônia, por exemplo. Neste caso, os juristas hesitam, baseados no direito civil dos romanos, entre o direito de propriedade e o direito de uso da água (16). Mas, ela tem todo um outro significado onde se tem racionamento freqüente do seu fornecimento, operação rodízio e até apagão, seja porque as chuvas ocorrem na área de forma irregular, seja porque o fornecimento da água é pouco eficiente, seja porque os desperdícios são muito grandes, seja porque a degradação da qualidade da gota d'água disponível atinge níveis nunca imaginados (17, 5).

    Nas atividades agrícolas esses cenários são ainda mais vexatórios, à medida que 70% de toda a água consumida no mundo são utilizados pela agricultura. Por sua vez, a estimativa da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 2002, era de uma perda de 60% da água nos projetos de irrigação no nível mundial. No Brasil, o consumo d'água pela agricultura varia entre 60 e 70% do volume total. Entretanto, ainda se utilizam os métodos menos eficientes do mundo sobre cerca de 93% dos quase três milhões de hectares atualmente irrigados, sendo 56% por espalhamento superficial, 19% pivô central e 18% aspersão convencional (18).

    Por sua vez, segundo a legislação em vigor (Lei Federal, 9.433/97, principalmente), os comitês de bacia hidrográfica constituem o princípio da gestão descentralizada e participativa da água. Neste caso, são os comitês que decidem se vão, e por quanto vão, comprar ou vender água. Entretanto, tendo em vista o grande potencial de evaporação da água na bacia do rio São Francisco – 1000 e mais de 3000mm/ano - seria mais viável, certamente, transportar os excedentes de energia hidrelétrica que são gerados na bacia hidrográfica do Tocantins para a bacia do rio São Francisco, por exemplo, e desenvolver as alternativas locais de produção de energia elétrica onde a água não é fator competitivo, tais como o uso mais racional do gás natural, dos ventos e do sol.

    Por sua vez, os estudos desenvolvidos para orientação da agricultura irrigada no Nordeste, mostram que irrigar na região pelo método de espalhamento superficial, por exemplo, não é somente um crime ambiental, mas também, uma burrice econômica. Com efeito, a eficiência econômica é de apenas US$0,01 por m3 utilizado de água no cultivo do arroz, contra US$ 4-10/m3, no caso da cultura de flores ou de frutíferas, por exemplo, (19).

    CONCLUSÕES Enquanto perdurar a idéia de que a água é uma dádiva de Deus, ou que sua oferta deverá ser garantida por investimentos públicos. Enquanto o racionamento ou rodízio no fornecimento da água nas cidades, principalmente, continuar tão freqüente e considerado como uma alternativa viável. Enquanto ninguém se preocupar em dar um uso cada vez mais eficiente à gota d'água disponível - tanto nas cidades quanto na agricultura, principalmente – não será possível considerar a água como uma mercadoria.

    Certamente, tendo em vista a baixa eficiência das nossas empresas públicas de água, as manipulações burocráticas, administrativas e políticas características nos países em desenvolvimento, em geral, e no Brasil, em particular, a "parceria" poderia ser a solução. Assim, o serviço público de saneamento básico seria confiado a um operador privado, em cujo contrato se estabelece, até o final, o compromisso com o uso e conservação da gota d'água disponível, e com a manutenção e melhoramento da infra-estrutura correspondente.

     

    Aldo da Cunha Rebouças é geólogo e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo ( IEA-USP). Foi diretor da Bacia Escola de Hidrogeologia da Sudene.

     

     

    Referências bibliográficas

    1. Agência Nacional de Águas (ANA) "A evolução da gestão dos recursos hídricos no Brasil" Ed. comemorativa do Dia Mundial da Água. 64 p. Brasília, 2002.

    2. Falkenmark, M. Macro-scale water supply/deman comparison on the global scene, p 15-40. Stockholm, 1986.

    3. Rebouças, A. C. "A inserção da água subterrânea no sistema nacional de gerenciamento", RBRH. V. 7, No 4, p, 39-50, Porto Alegre, 2002.

    4. Rebouças, A. C. "Águas subterrâneas", cap. 4. p. 119-151, in Rebouças, A. C., Braga, B. & Tundisi, J.G. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, 703 p. 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, 2002b.

    5. Rebouças, A. C. "Aspectos relevantes do problema da água", cap. 22, p. 687-703, in Rebouças, A.C.; Braga, B. & Tundisi, J. G. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, 703 p. 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, 2002c.

    6. Jonhston, R. H. "Sources of water supplying pumpage from regional aquifer systems of United States", Hydrogeolgogy Jour. Vol 5 Nº 2. pp 54-63, Germany, 1997.

    7. Rebouças, A. C. "Le problème de l'eau dans la zone semi-aride du Brésil: Evaluation des reserves, orientation pour la mise en valeur".Thèse d'Éat, Université Louis Pasteur, Strasbourg 285 p., France, 1973.

    8. Rebouças, A. C. "O Piauí na problemática da seca", Anais 1ºCiclo Conf. Os aspectos da problemática piauiense e as perspectivas de solução. p. 7-37. FUFPI-Centro de Tecnologia, Rio, 1981.

    9. Rebouças, A. C. "Água na região Nordeste: desperdício e escassez". Revista do Instituto Estudos Avançados - USP. 11(29), p. 127-154, São Paulo, 1997.

    10. Rebouças, A.C. "Potencialidades dos aqüíferos do Nordeste do Brasil", Anais XII Enc. Nac. Perf. Poços/IV Simp. Hidrogeologia Nordeste, p. 53-66, Recife, 2001.

    11. Cia. de Pesquisa de Recursos Minerais/Serviço Geológico do Brasil (CPRM) CD/Inventário de poços no estado do Piauí, Fortaleza, 2002.

    12. Rebouças, A. C.; Riccomini, C.; Ellert, N.; Duarte, U.; Mellito, K.M.; Senf, L. A. & Souza, J. C. S. Diagnóstico hidrogeológico da Região Metropolitana de São Paulo – RMSP: uso e proteção, Anais 8º Cong. ABAS, p. 93-102, Recife, 1994.

    13. Costa, W. D. Legislação de águas subterrâneas e gerenciamento de aqüíferos, Anais XI Enc. Nac. Perf. Poços, IV Simp. Hidrogeologia Nordeste, p. 77-88, Recife, 2001.

    14. Rebouças, A. C. Marinho, E. Hidrologia das secas: contribuição ao I Seminário. Internacional. Unesco/Lima-Peru-Sudene Ser. Hidrogeol. No 40, 130 p., Recife, 1970.

    15. Rebouças, A.C. "Água doce no mundo e no Brasil", cap. 1. p. 1-37, in Rebouças, A.C.; Braga, B. & Tundisi, J.G. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, 703 p. 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, 2002a.

    16. Pompeu, C.T. "Águas doces no Direito Brasileiro", cap. 18, pp. 599-633, in Rebouças, A.C.; Braga, B. & Tundisi, J.G. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, 703 p. 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, 2002.

    17. Rebouças, A.C. "Estratégias para se beber água limpa", p, 199-215, in O município no séc. XXI: Cenários e perspectivas, Cepam, São Paulo, 1999.

    18. Telles, D. d'A. "Água na agricultura e pecuária", cap. 9. p. 305-337, in Rebouças, A.C.; Braga, B. & Tundisi, J.G. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, 703 p. 2ªedição revisada e ampliada, São Paulo, 2002

    19. Banco do Nordeste - BN, Orientação da agricultura irrigada no Nordeste, Frutex, Fortaleza, 1999.