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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2003

     

     

    O PAPEL DO CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS – CNRH

    Cid Tomanik Pompeu

     

    Ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH)), colegiado intergovernamental, além de outras competências, cabe promover a articulação do planejamento de recursos hídricos com os planejamentos nacional, regional, estadual e dos setores usuários; acompanhar a execução e aprovar o Plano Nacional de Recursos Hídricos; determinar as providências necessárias ao cumprimento de suas metas, assim como estabelecer critérios gerais para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Entre suas funções, a da articulação dos planejamentos de recursos hídricos com os demais é de grande relevância, em especial por se tratar de organismo que deve contar com a participação dos mais variados setores públicos e privados ligados às águas. Em seu Relatório de Atividades 1998 – 2002, de dezembro de 2002, divulgado pela internet (consultado em 30/01/2003), inexiste referência ao efetivo exercício daquelas articulações. Como atenuante, pode-se observar que, no campo das águas, tais planejamentos não vieram à luz, em termos representativos, em nível nacional, regional, estadual e de bacia hidrográfica.

    Para discorrer sobre o relevante papel do CNRH na gestão das águas, convém que antes se faça breve apanhado do sistema federativo brasileiro, que baliza suas ações.

     

     

    O SISTEMA FEDERATIVO BRASILEIRO

    1. As cláusulas pétreas da Constituição Federal
    Certas disposições constitucionais, por não poderem ser modificadas nem por emendas, estão incluídas na categoria que se pode chamar das cláusulas pétreas, como a referente à forma federativa de Estado (art. 60, § 4º, I), sobre a qual nem proposta de emenda pode ser objeto de deliberação.

    2. A repartição de competências
    Pela Constituição, a competência privativa da União e dos municípios é expressa (arts. 21, 22 e 30 e respectivos incisos), cabendo aos estados as não vedadas pela Constituição, denominadas residuais (art. 25, § 1º).

    3. A competência legislativa
    A competência legislativa privativa dos entes que compõem a Federação acompanha a competência geral que lhes é atribuída. O que cabe à União está previsto no art. 22 e incisos e aos municípios no art. 30, em especial no inciso I.
    Há também uma competência concorrente entre União, estados e Distrito Federal (art. 24 e incisos). Neste âmbito, a União limita-se ao estabelecimento de normas gerais, sem excluir a suplementação pelos estados e Distrito Federal (art. 24, §§ 1º e 2º). Inexistindo lei federal sobre normas gerais, estes exercem competência plena, para atender a suas peculiaridades (art. 24, § 3º). A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual ou distrital, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º).

    4. O domínio das águas
    É peculiaridade das constituições brasileiras, a partir de 1934, definir o domínio hídrico da União e dos estados. A de 1988 declara bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham (art. 20, III). Entre os bens dos estados, estão as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União. Enquanto não editada a lei, as águas em depósito decorrentes de obras da União permanecerão sem domínio definido, pois, se não são estaduais, também não são da União. A Carta não define o domínio das águas situadas no Distrito Federal, o que somente pode ser feito pelo emprego de analogia com as águas estaduais, e é o que tem ocorrido.(1)

    AS BACIAS HIDROGRÁFICAS A expressão bacia hidrográfica significa território, área e não água. Trata-se da área de drenagem de um curso de água ou lago e não destes.(2) São áreas geográficas dotadas de determinada inclinação, em virtude da qual todas as águas se dirigem, direta ou indiretamente, a um corpo de água central. A bacia hidrográfica pode ser marítima, fluvial ou lacustre, segundo a classificação do corpo de água para o qual convirjam as águas.(3) A bacia marítima é formada pelas terras cujas vertentes ou rios deságuam em mar interior. Não se confunde com bacia de um porto, que é sinônimo de ancoradouro, ou seja, lugar em que as embarcações podem ser acolhidas sem os riscos que o alto-mar ou mar grosso oferece. A bacia fluvial é constituída por vales sulcados por um rio principal e respectivos afluentes, que, muitas vezes, formam outras bacias ou sub-bacias. As bacias hidrográficas são separadas entre si por montanhas ou colinas, cuja linha mais alta é denominada divisor de águas e a mais baixa talvegue. Bacia lacustre é aquela em que as águas, devido à inclinação dos terrenos adjacentes, afluem para um lago, coletor principal da área.

    Por tal razão, ao definir o domínio hídrico nacional, a Constituição não poderia fazê-lo por bacias hidrográficas, para colocá-las entre os bens da União ou dos estados, pois estaria repartindo territórios estaduais ou distritais e não apenas as águas. Sendo assim, não se deve utilizar a expressão bacias hidrográficas federais, uma vez que bacia é área, é território estadual ou distrital e não somente água.

    Após a Constituição, normas estaduais, distritais e da União passaram a adotar a gestão das águas, no seu aspecto de recurso hídrico, por bacias hidrográficas.

    OS ORGANISMOS INTERGOVERNAMENTAIS No campo hídrico, devido às peculiaridades do domínio das águas previstas na Constituição Federal, tudo conduz à implantação de organismos intergovernamentais para sua gestão, os quais podem ser colegiados ou não. Aos entes que se costuma chamar de gestores, geralmente encarregados das outorgas, voltados para as águas do domínio de sua esfera de governo, tem sido adotada a forma de instituição (autarquias, fundações, etc.) como a Agência Nacional de Águas - ANA, em âmbito federal, e os estaduais (DAEE/SP, SRH/BA, Fema/MT, etc.). Há perspectivas de que nas futuras Agências de Água ou de Bacia Hidrográfica, embora instituições, haja participação intergovernamental em sua direção, como previsto na Lei nº 10.020, de 1998, de São Paulo.

    Os órgãos colegiados Comitês de Bacia Hidrográfica, Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH são praticamente, em sua totalidade, plurigovernamentais, com participação das várias esferas de governo e da sociedade civil. São raros, entretanto, os casos, como o de São Paulo, em que o titular do domínio das águas participa com apenas um terço da composição dos colegiados, e de outros, como o Maranhão, em que há paridade entre o segmento público formado pelo estado e municípios, e paridade entre este e o dos usuários e das comunidades.

     

    O PAPEL DO CNRH

    Dentro de enfoque intergovernamental, a Lei nº 9.433, de 1997, institui que o CNRH é composto por representantes: (i) dos ministérios e das secretarias da presidência da República, com atuação no gerenciamento ou uso de recursos hídricos; (ii) indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos; (iii) dos usuários; e (iv) das organizações civis de recursos hídricos (art. 34, I a IV).

    Pela lei, cada Conselho Estadual deve indicar um representante, seu membro ou não. O decreto nº 2.612, de 1998, com alterações posteriores, em vez de adotar a redação da lei, ou seja, referir-se a representantes indicados pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, modificou o sentido daquela e estabeleceu que haverá no Conselho representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. Em desacordo com a lei, limitou o número dos representantes estaduais a cinco, escolhidos em cada região administrativa federal, pelos conselhos estaduais ali existentes, sendo os suplentes obrigatoriamente de outro estado, da mesma região (art. 2º, IV, § 2º). Com isto, a maioria dos estados e até o Distrito Federal deixaram de integrar o conselho, participando, quando é o caso, de Câmaras Técnicas, o que não é a mesma coisa e nem o previsto na Lei nº 9.433, de 1997.

    O parágrafo único do art. 34 declara que o número de representantes do poder executivo federal não pode exceder à metade mais um do total dos membros do CNRH. A União, em vez de aplicar tal critério como o limite máximo permitido, adotou-o como o número a ser por ela preenchido. Com isto, tem maioria no CNRH, o que o transforma, verdadeiramente, num colegiado federal e não nacional.

    OS PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS A adoção de planos para a gestão dos recursos hídricos teve início no estado de São Paulo, com a aprovação, por decreto do poder executivo, do 1º Plano Estadual de Recursos Hídricos – PERH - 1990-1991 (Dec. nº 32.954, de 1991). O Plano já havia sido previsto pela Lei nº 6.958, de 1990, sobre Diretrizes Orçamentárias. Posteriormente, a Lei paulista nº 7.663, de 1991, que serviu de modelo para as demais leis estaduais e para a federal de 1997, determinou a instituição do Plano Estadual de Recursos Hídricos por lei, com atualizações periódicas, tomando por base os planos de bacias hidrográficas (art. 16).

    Adotados pela lei federal, tais planos destinam-se a fundamentar e orientar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento daqueles recursos (art. 6º). São planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos. Devem ter como conteúdo mínimo: (a) diagnóstico da situação atual dos recursos hídricos; (b) análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo; (c) balanço hídrico entre disponibilidades futuras dos recursos hídricos, em quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais; (d) metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis; (e) as medidas, os programas e projetos para o atendimento das metas previstas; (f) prioridades para a outorga de direito de uso das águas; (g) diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso da água; e (h) propostas para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção daqueles recursos (art. 7º, I a V e VIII a X).

    Em termos de Plano Nacional, ao CNRH compete: (a) promover a articulação do planejamento de recursos hídricos com os planejamentos nacional, regional e dos setores usuários; e (b) acompanhar sua execução, aprová-lo e determinar as providências necessárias ao cumprimento de suas metas (art. 35, I e IX, este com a redação dada pela Lei nº 9.984, de 2000).

    A Resolução CNRH nº 17, de 2000, estabelece diretrizes complementares para a elaboração dos Planos de Recursos Hídricos das Bacias Hidrográficas.

    A COBRANÇA PELO DIREITO DE USO DAS ÁGUAS Pela Lei nº 9.433, de 1997, um dos objetivos da cobrança pelo direito de uso das águas é obter recursos financeiros para financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos (art. 19, III). Estão sujeitos à cobrança os usos dependentes de outorga (art. 12), excetuados: (a) o uso da água para satisfazer necessidades de pequenos núcleos populacionais no meio rural; (b) as derivações, captações e lançamentos e as acumulações de água considerados insignificantes (art. 12, § 1º, I a III).

    No âmbito federal, os valores arrecadados com a cobrança devem ser aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados, para serem utilizados: (i) no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos planos de recursos hídricos; (ii) no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com limite de 7,5% do total arrecadado (art. 22, I a II e § 1º).

     

    CONCLUSÃO

    Pelo exposto, pode-se concluir que:

    1. Os planos de recursos hídricos são indispensáveis para o sistema de gestão implantado pela lei federal, sem os quais a fixação de disponibilidade das águas e a cobrança estarão em débito para com a legislação;

    2. no âmbito das bacias hidrográficas, aos comitês, igualmente intergovernamentais, cabe aprovar o respectivo plano, elaborado segundo critérios gerais estabelecidos pelo CNRH e com o conteúdo mínimo previsto na Lei nº 9.433, de 1997, no qual estão o balanço entre as disponibilidades e demandas futuras e as prioridades para outorga de direitos de uso, na bacia;

    3. enquanto o CNRH não estabelecer os critérios gerais para cobrança, não apenas para determinada bacia, será discutível a sua instituição pelos CBHs, o mesmo ocorrendo em relação às disponibilidades, dependentes dos Planos da Bacia, pois, enquanto estes não forem elaborados, será questionável saber quais são elas; e

    4. para o efetivo gerenciamento das águas, será indispensável que o CNRH, que já detém apreciável lista de boas realizações, reestruturado de modo a permitir que os estados e o Distrito Federal estejam devidamente representados, dirija seus melhores esforços no sentido de estabelecer os critérios gerais previstos em lei, assim como no de articular os planejamentos dos recursos hídricos com os planejamentos nacionais, regionais, estaduais e dos setores usuários, base de todo o sistema.

     

    Cid Tomanik Pompeu é advogado e especialista pela Faculdade de Direito da USP. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp)

     

     

    Referências bibliográficas:

    1. Pompeu, C.T. Águas doces no direito brasileiro. Águas Doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. Organização e coordenação científica de Aldo da C. Rebouças et ali. Instituto de Estudos Avançados da USP e Academia Brasileira de Ciências, São Paulo, Escrituras, p. 621. 1999.

    2. Brasil. Comissão Brasileira para o Decênio Hidrológico Internacional e Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica. Glossário de Termos Hidrológicos. sub voce basin, bassin, cuenca e bacia (hidrográfica).Brasília, 1976,

    3. Pompeu, C.T. Enciclopédia Saraiva do Direito, Ed. Saraiva, SP, sub voce bacia hidrográfica. 1977.