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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.4 São Paulo out./dez. 2003

     

    Biografia

    A HISTÓRIA ESCREVE-SE DO PRESENTE

     

    Oriundo de família judia, Eric Hobsbawn nasceu em 1917 no Egito, passou boa parte da sua infância entre a Áustria e Alemanha, de onde fugiu para a Inglaterra devido ao início da perseguição nazista. Reconhecido como um dos intelectuais mais influentes da segunda metade do século XX, Hobsbawn foi co-fundador da revista Past and Present e autor de uma vasta e abrangente produção acadêmica, escrevendo sobre variados temas, desde revoltas e rebeliões de camponeses e trabalhadores ingleses no século XVIII até uma obra sobre história social do jazz. Apesar da variedade de assuntos que tratou, o intelectual manteve-se coerente com uma linha de interpretação histórica marxista durante toda sua vida. Sua atuação também ultrapassou as fronteiras da academia, tendo sido militante do partido comunista inglês durante décadas e permanecido ligado à ele mesmo após a dissidência de uma série de historiadores ingleses em 1956, devido a discordâncias com a política stalinista.

    Durante os primeiros dias de agosto, Hobsbawn esteve no Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que reuniu vários escritores brasileiros e estrangeiros durante quatro dias de conferências e debates. O historiador inglês foi a grande estrela da festa, com a conferência mais concorrida.

    O conteúdo de sua conferência centrou-se, principalmente, em temas relacionados com seu último livro, a autobiografia intitulada Tempos interessantes, uma vida no século XX. A riqueza de sua fala e a acuidade de sua exposição permitem reflexões não apenas sobre os assuntos tratados nesse livro mas, também e principalmente, sobre a relação do historiador com seu trabalho.

     

     

    Este tema, já interessante por si só, torna-se ainda mais rico quando se trata de uma personalidade como Hobsbawn, que revelou em sua trajetória uma posição política bastante determinada e uma verdadeira passionalidade, não despida de profunda erudição e precisão metodológica, na construção de suas interpretações.

    De fato, talvez uma das principais preocupações do autor ao escrever sua autobiografia, e ao falar sobre ela, tenha sido explicitar a idéia de que o historiador constrói o passado a partir do presente. Sua concepção é que todo estudioso de história, qualquer que seja seu assunto, , ao mesmo tempo que investiga o passado, está "pensando e expressando opiniões a respeito do presente e suas questões e falando a respeito delas".(1)

    É bastante claro também que Hobsbawn concebe a possibilidade de diferentes interpretações históricas sobre o mesmo evento, originárias de diferentes opções políticas de seus autores, o que revela, de certa forma, como as condições presentes da produção do conhecimento histórico interferem em seu conteúdo. Mas, mais do que isto, considera legítimos todos esses embates ideológicos interpretativos e defende suas posições de maneira bastante convincente.

    Cabe aqui lembrar, a título de exemplo do comprometimento da obra de Hobsbawn com sua posição política, seu livro Ecos da Marselhesa, escrito a propósito da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa. No texto quase panfletário, o autor revela textualmente que sua principal motivação era, nada mais nada menos, a sua irritação com o revisionismo histórico que retirava grande parte do conteúdo social da revolução. Dialogando especificamente com o historiador francês François Furet e seu livro Pensando a Revolução Francesa (2), sugere que há duas correntes interpretativas da revolução, e que "as versões revisionistas não são os melhores guias para compreender o papel histórico da revolução e suas conseqüências. Somente alguns revisionistas acham que são".(3)

    Entre outras razões, é devido ao fato de que o historiador está intrinsecamente ligado ao presente, que a história não permite, ou não perdoa, posições monolíticas. Novas conjunturas presentes estão sempre propondo novas interpretações para eventos passados, o que torna ainda mais importante a autobiografia de um autor tão importante e longevo como Hobsbawn. Ele presenciou conjunturas políticas bastante diferentes ao longo de sua vida, tais como a ascensão do nazismo, a Segunda Guerra Mundial e a reorganização política mundial após seu término, bem como a destruição da polaridade estabelecida como seu resultado e finalmente a hegemonia militar norte-americana ainda presente.

    Durante a entrevista coletiva após sua conferência, Hobsbawn foi questionado se ainda achava o comunismo uma "boa idéia". Sua resposta procurou demonstrar a possibilidade prática de manter a coerência essencial de posições políticas ao longo do tempo, da mesma forma que é possível refletir criticamente sobre o passado e compreender transformações conjunturais. Em sua fala, confere grande importância a movimentos socialistas e comunistas dos séculos XIX e XX, "não apenas pelos seus ideais, mas também por sua capacidade de mobilizar os pobres para conquistar seus direitos e forçar concessões dos ricos". Nota, entretanto, que o comunismo da forma como foi implantado na antiga União Soviética e na China, o qual defendeu, como mostra sua permanência no partido comunista em 1956, falhou. Mas, segundo ele, a idéia de uma sociedade melhor permanece em seu trabalho e a crítica do capitalismo, que era o coração da análise de Karl Marx, é mais necessária do que nunca porque os problemas criados pela atual fase do capitalismo são muito sérios para o futuro da humanidade

    Cada uma das obras do historiador já se coloca como uma verdadeira aula de história, mas a conferência em Paraty e sua autobiografia permitem, para além disso, recuperar as experiências da construção desta grande personalidade do século XX e perceber na prática como a história escreve-se do presente.

    É certamente impossível resumir em poucas palavras as inúmeras lições presentes no último livro de Hobsbawn, um historiador que mantém, viva e sempre renovada, a tradição interpretativa marxista, mas talvez uma das mais importantes esteja contida justamente em uma passagem que o intelectual cita Marx, ainda no prefácio de sua autobiografia: "os homens fazem [suas vidas], mas não [as] fazem como desejam, não [as] fazem nas circunstâncias escolhidas por eles, e sim nas circunstâncias diretamente encontradas, proporcionadas e transmitidas pelo passado e pelo mundo à volta delas".

     

    Alexsander Gebara é historiador,
    doutorando em história social pela USP.

     

     

    OBRAS CITADAS

    1. Hobsbawn, E. Tempos interessantes, uma vida no século XX, São Paulo, Cia. das Letras, 2002. p. 311.

    2. Furet, F. Pensando a Revolução Francesa. Paz e Terra, São Paulo, 1989.

    3. Hobsbawn, E. Echoes of the Marseillaise. Verso, London, New York, 1990.