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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2004

     

     

    O USO DE CÉLULAS-MÃE PARA REPARAÇÃO TISSULAR NO SISTEMA NERVOSO

    Rosália Mendez-Otero e Luiz Eugênio A. M. Mello

     

    A era dos transplantes de órgãos trouxe consigo novas perspectivas e abriu um novo horizonte no tratamento de in·meras doenças. Neste sentido, hoje os transplantes cardíacos, renais, hepáticos, ósseos, de medula óssea e de praticamente quaisquer outras partes e órgãos do corpo humano, permitem prolongar a vida de pessoas que tiveram ou têm, enfarte, diabetes, cirrose hepática, leucemia, fraturas ósseas e uma infinidade de outras enfermidades. A mais notável exceção diz respeito ao sistema nervoso. Não há transplante de partes de tecido nervoso. No caso do sistema nervoso periférico, freqüentemente uma lesão é seguida de recuperação sem a necessidade de um transplante. Nos casos onde essa regeneração não acontece, em muitas vezes, há aspectos bioquímicos inerentes à doença e que inviabilizam a eficácia de um transplante. No caso do sistema nervoso central, por definição não pode haver doador.

    No aspecto jurídico, a legislação estabelece que a doação de órgãos só pode ser feita quando ocorre morte encefálica. Assim, o tecido nervoso já está morto, e, portanto inviável, quando podem ser iniciados os procedimentos de transplante. De outro lado, enquanto é possível uma pessoa saudável doar um de seus rins para transplante em um receptor compatível, o mesmo não se aplica para o sistema nervoso, uma vez que ele, ao contrário do rim, é um órgão único. Finalmente, caso fosse possível imaginar, em um exercício futurista, a doação total de sistema nervoso, uma espécie de invasão de corpos, o principal beneficiário seria o doador e não o receptor como nos demais transplantes. Nesse sentido, a possibilidade da cultura de neurônios a partir de células primordiais, denominadas de células-mãe ou células-tronco (do inglês stem cells) abre a perspectiva de estarmos na emergência de uma nova era onde o "transplante" e a substituição de partes do sistema nervoso se torne realidade.

    Terminada a diferenciação do ser humano e constituídos todos os seus tecidos, permanece ainda presente a possibilidade germinativa em vários órgãos. A medula óssea constantemente produz o sangue, o fígado gera novos hepatócitos e as células da pele descamam e são substituídas por novas células apenas para citar alguns exemplos. Em contrapartida, no sistema nervoso durante muito tempo se acreditou que essa capacidade mitótica, de proliferação celular, cessaria logo após o nascimento do indivíduo. Nessa óptica, nasceríamos com um dado número de neurônios, que ao longo da vida iria sendo reduzido em decorrência da morte dessas células. Pior ainda: essa morte, por não ser acompanhada de regeneração, levaria a várias das conseqüências naturais da velhice e contribuiria para o aparecimento das doenças neurodegenerativas. Esse dogma - de que novos neurônios não são criados no indivíduo adulto - começou a ser mudado na década de 1960 com observações em animais de laboratório e precisou de cerca de 30 anos adicionais até que fosse ampliado para o ser humano. Esse amplo conjunto de trabalhos realizados ao longo de mais de 40 anos estabelece hoje com clareza que duas áreas do sistema nervoso - a região adjacente ao ventrículo lateral e o giro denteado do complexo hipocampal - retêm o potencial proliferativo e a possibilidade de gerar novos neurônios mesmo no ser humano adulto. Além disto, estudos em diversos laboratórios mostraram que essas células – denominadas células-tronco neurais - quando retiradas do sistema nervoso e mantidas em condições adequadas, podem dar origem a células de outros tecidos, sugerindo que as células-tronco neurais são pluripotentes e podem originar células de tecidos com diferentes origens embrionárias. No entanto, as células-tronco neurais ainda não podem ser consideradas como uma alternativa viável para terapias celulares uma vez que só poderiam ser obtidas de cadáveres, são muito raras, e ainda não sabemos como isolá-las e purificá-las em quantidades adequadas para um transplante.

    Em uma outra série de estudos, diversos pesquisadores mostraram que o mesmo fenômeno de pluripotencialidade está presente em células-tronco isoladas de outros tecidos, como por exemplo, a medula óssea. Células-tronco obtidas de medula óssea têm sido usadas na prática médica como fonte de células hematopoiéticas e os transplantes de medula fazem parte do tratamento de doenças hematológicas há várias décadas. Mais recentemente observou-se que na medula óssea há um outro tipo de células-tronco – denominada célula tronco mesenquimal - que, em determinadas condições, poderia dar origem a células de diversos tecidos incluindo miocárdio e sistema nervoso. A grande vantagem da utilização dessas células para terapias celulares é que as mesmas podem ser obtidas por aspiração de medula óssea do próprio paciente, eliminando os problemas de busca de doadores e de imuno-rejeição. No momento, um estudo clínico bem sucedido foi concluído em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva que receberam injeções de células de medula óssea (transplantes autólogos) no coração. Estes pacientes apresentaram melhora nos seus sintomas, sugerindo que as células injetadas possam estar substituindo as células do coração doente.

    Sob um ponto de vista pessimista, as expectativas que hoje se levantam sobre o uso de células-mãe como uma verdadeira fonte da juventude ou da vida eterna são análogas àquelas que surgiram com o advento da terapia gênica. Quando proposta originalmente há cerca de 20 anos, a terapia gênica prometia perspectivas fascinantes para tratar várias das mesmas condições que hoje se imagina passíveis de tratamento com células-tronco: diabetes, deficiências enzimáticas congênitas e deficiências imunológicas. Os insucessos e dificuldades técnicas, no entanto, fazem com que ainda hoje essas promessas estejam por se cumprir e sem prazo previsto. Por outro lado, os dados concretos já obtidos com pacientes cardíacos e células-mãe representam sucesso jamais alcançado na terapia gênica.Quais, então, as limitações do uso terapêutico de células-mãe?

    Um primeiro obstáculo diz respeito à alteração da capacidade proliferativa e das perturbações nesse sentido ocasionarem neoplasias em decorrência das células injetadas. Além disso, para que seja possível a obtenção de um número significativo de células, a partir de um conjunto restrito de precursores iniciais, teria de ser feita a cultura dessas células. Contaminantes dessa cultura, incluindo vírus, príons e toxinas teriam que ser exaustivamente filtrados e eliminados antes de um eventual implante dessas células. Finalmente, não há ainda hoje garantia que em diversas patologias as células-tronco não venham a apresentar o mesmo problema de as células originais sendo substituídas. Dizendo de outra forma, no caso de pessoas com o mal de Parkinson, não há como garantir que os novos neurônios implantados na substância negra para produzir dopamina não sejam igualmente vulneráveis às agressões ambientais e tenham apenas uma sobrevivência fugaz. Todas essas questões e dúvidas dependem de muita pesquisa tanto in vivo como in vitro em animais de laboratório e no ser humano.

    Paralelamente a esses avanços necessários para embasar novas aplicações terapêuticas, alguns protocolos em pacientes já começam a ser desenvolvidos. O tratamento de indivíduos com esclerose lateral amiotrófica, por exemplo, teve um protocolo iniciado na Itália há cerca de um ano, mas não existem, ainda, resultados conclusivos. Essa doença representa uma oportunidade única de estudo, visto não contar ainda hoje com tratamentos verdadeiramente eficazes, ter prognóstico fechado (cerca de três a quatro anos entre o diagnóstico e o óbito) e ser relativamente localizada em termos de população neuronal acometida (neurônios motores do corno ventral da medula ou do giro pré-central). De fato, em doenças onde há perda de múltiplas linhagens neuronais, o processo de recuperação talvez seja muito mais complexo visto que, ou as células progenitoras teriam que ter o potencial de se dividir em todas as linhagens perdidas, ou teríamos que injetar proporções adequadas de cada linhagem perdida. De outro lado, em doenças crônico-degenerativas talvez o processo de recuperação ou de estagnação da progressão da doença demore vários anos para ser aferido e assim avaliada a eficácia terapêutica.

    Há que se considerar, também, a questão de janelas de oportunidade. Em face de uma lesão medular, por exemplo, é possível que o implante de células-mãe até alguns meses após a lesão permita a recuperação funcional devido ao re-estabelecimento de circuitos neuronais entre neurônios sobreviventes. Passados alguns anos, no entanto, é possível que a cicatriz glial remanescente seja de tal extensão que mesmo células progenitoras não sejam capazes de transpassar esta cicatriz. Nesse sentido, um estudo de sucesso talvez conte inicialmente com a "sorte" de ter sido executado dentro da exata janela de oportunidade e na população mais indicada (jovens, digamos) para a demonstração de efeito.

    Todas as evidências disponíveis parecem ainda indicar que as células progenitoras dependem de influências químicas muito específicas para definir seus destinos e compromissos. A caracterização precisa dessas influências (fatores tróficos), em termos de sua distribuição temporal (que fatores, em que ordem) e de concentração, deve ser semelhante a uma poção de alquimista com minúcias e cuidados insuspeitados, mas que, se dominados, nos permitiram conquistas inimagináveis. Nunca é demais relembrar que, por vezes, esses fatores tróficos terão como propósito básico servir não apenas para a sobrevivência dos neurônios, mas também para o estabelecimento e manutenção de conexões sinápticas. Nesse sentido, o sistema nervoso estabelece uma dificuldade adicional às terapias com células-tronco, que é o fato de que, por vezes, as células no sistema nervoso humano podem ter mais de um metro de extensão. Assim, como fazer para que mediante a mera administração de fatores tróficos, conseguir que um neurônio motor do corno ventral da medula estabeleça adequadamente conexões "infinitamente" distantes, se consideradas sob a dimensão do corpo celular (cerca de 50 milionésimos de metro - micrômetro)?

    Em resumo, como tópicos principais na área a serem resolvidos antes que qualquer terapia tenha real chance de sucesso, têm que ser identificados: fonte confiável e renovável de células; formas de isolar subpopulações celulares desejadas; formas de obtenção do número necessário de células apropriadas; como as células respondem ao ambiente de lesão e ao ambiente normal; como as células migram e estabelecem as conexões (sinapses) apropriadas; como as células podem modular a resposta imune; como suprimir a possível formação de tumores pelas células implantadas. O desafio é grande, mas o futuro é promissor.

     

    Rosalia Mendez-Otero é professora titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ e pesquisadora do Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual
    Luiz Eugenio A. M. Mello é professor titular do Departamento de Fisiologia da Unifesp e pesquisador do Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual