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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2004

     

     

    TOXICIDADE MERCURIAL - AVALIAÇÃO DO SISTEMA VISUAL EM INDIVÍDUOS EXPOSTOS A NÍVEIS TÓXICOS DE MERCÚRIO

    Luiz Carlos L. Silveira, Dora Fix Ventura e Maria da Conceição N. Pinheiro

     

    A poluição ambiental pelo mercúrio, resultante da utilização desse metal na atividade garimpeira de ouro, é um exemplo importante de ameaça à saúde de populações da Amazônia decorrente da ocupação acelerada dessa região pelo homem nas últimas décadas. Os garimpeiros e outros profissionais ligados à chamada "queima do ouro", estão expostos a níveis extremamente tóxicos de vapor de mercúrio. A exposição ao vapor de mercúrio origina a "doença do chapeleiro maluco", personagem da Inglaterra vitoriana descrita no famoso livro de Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas. Na Inglaterra dessa época, os chapéus eram tratados no vapor de mercúrio metálico para atender aos requisitos de elegância. Com anos de exposição ao vapor, os chapeleiros desenvolviam uma forma clínica de mercurialismo caracterizada por exuberante sintomatologia neurológica. A exposição crônica ao vapor de mercúrio metálico compromete caracteristicamente o sistema nervoso, inicialmente com sintomatologia inespecífica e, posteriormente, com distúrbios característicos da motricidade - tremor de pequena amplitude, paresias, disreflexia e dificuldade de coordenação motora (1).

    A doença decorrente da exposição ao vapor do mercúrio metálico em garimpeiros da Amazônia tem sido documentada em diversos trabalhos recentes (2-7). Contudo, a preocupação maior do ponto de vista epidemiológico é a exposição das comunidades ribeirinhas a compostos organomercuriais, como o metilmercúrio. O metilmercúrio surge a partir da biotransformação do mercúrio metálico despejado na natureza por ocasião da garimpagem do ouro ou proveniente de outras fontes, sendo incorporado à cadeia alimentar, notavelmente nos peixes carnívoros, fonte de alimentação dos ribeirinhos. A expressão clínica da exposição humana ao metilmercúrio e outros organomercuriais é potencialmente grave, com repercussões neurológicas muitas vezes irreversíveis (8-10). Essa patologia foi descrita pela primeira vez no Japão, onde ocorreu a contaminação da baía de Minamata pelos dejetos de uma indústria química, seguindo-se a contaminação dos peixes consumidos em grande escala pela população local e ficou conhecida como síndrome de Hunter-Russell ou doença de Minamata (8,9,11,12). A exposição crônica aos compostos orgânicos do mercúrio acarreta grave comprometimento do sistema nervoso, com efeitos diversos em adultos e crianças que foram expostas nas fases precoces do desenvolvimento do sistema nervoso, tanto pré como pós-natal (13). As lesões no sistema nervoso central do adulto são focalizadas e atingem principalmente o cerebelo e o córtex visual. O sistema nervoso periférico é comprometido, especialmente em intoxicações mais graves. A sintomatologia indica comprometimento motor, somestésico, auditivo e visual.

    O metilmercúrio ocasiona um quadro muito mais grave em crianças do que em adultos, sendo as lesões do sistema nervoso central generalizadas, em contraste com o aspecto mais focalizado observado na intoxicação do adulto (13). Podem ocorrer abortos por lesões disseminadas do sistema nervoso central ou as crianças podem nascer com paralisia cerebral gravíssima (13). Nessas crianças ocorre comprometimento do desenvolvimento neural, com alteração da estrutura cerebral e diminuição do tamanho da massa encefálica. O quadro inclui tipicamente microencefalia, hiperreflexia, retardamento mental e motor grave, podendo ocorrer cegueira e surdez. Os estudos realizados em comunidades ribeirinhas da Amazônia têm revelado teores elevados de mercúrio na carne de peixes consumida por essas populações (14), e índices elevados de mercúrio total e metilmercúrio em amostras de cabelo, configurando a exposição permanente nessas comunidades (15,16). Particularmente na região do rio Tapajós, várias comunidades de pescadores e ribeirinhos têm exposição confirmada ao metilmercúrio, apresentando índices acima do limite de segurança estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (13), 10 µm / g de cabelo, sendo o pescado da região a fonte dessa exposição- tabela 1 (15,16).

     

     

    Existem vários relatos na literatura sobre os efeitos tóxicos da exposição mercurial nas funções visuais do homem e outros primatas. Nos estados tardios da intoxicação mercurial existe comprometimento severo do campo visual periférico (17). Além disso, existem relatos de disfunção da visão central, compreendendo perda da sensibilidade ao contraste acromático para modulações espaciais e temporais (18-24) e perda da discriminação de cores (25,26). Os grupos de pesquisa de Neurofisiologia e Doenças Tropicais, ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA) e de Psicologia Experimental, da Universidade de São Paulo (USP), associaram-se em projeto conjunto para avaliar desempenho visual de garimpeiros de ouro e outros habitantes de comunidades ribeirinhas da Amazônia, os quais estão expostos a altos níveis de mercúrio metálico e/ou compostos organomercuriais, em tarefas espaciais cromáticas e acromáticas. Em São Paulo, estudos semelhantes estão sendo feitos em outras populações, incluindo dentistas e trabalhadores industriais. Esses grupos de pesquisa estão trabalhando em estreita associação, tendo como objetivo sugerir protocolos específicos e sensíveis que possam ser usados para detectar os estágios precoces de disfunção visual devida à intoxicação mercurial (5-7, 27-31). Na Tabela 2 são apresentados os resultados obtidos num grupo de garimpeiros, ribeirinhos do Tapajós e técnicos de laboratório expostos a níveis elevados de mercúrio e cujo sistema visual foi testado com técnicas modernas de psicofísica computadorizada (5-7). Resultados semelhantes foram obtidos com testes manuais em ribeirinhos do Tapajós (23-24), assim como em trabalhadores de São Paulo utilizando psicofísica e eletrofisiologia computadorizada (27-30).

     

    Luiz Carlos L. Silveira é médico, diretor do Núcleo de Medicina Tropical, Universidade Federal do Pará (UFPA), professor-adjunto do Departamento de Fisiologia (UFPA) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC)
    Dora Fix Ventura é psicóloga, professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) e da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE).
    Maria da Conceição N. Pinheiro é médica, vice-diretora e professora adjunta do Núcleo de Medicina Tropical, Universidade Federal do Pará (UFPA)

     

     

    Referências bibliográficas

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    7. Silveira, L. C. L., Damin, E. T. B., Pinheiro, M. C. N., Rodrigues, A. R., Moura, A. L. A., Mello, G. A. "Visual dysfunction following mercury exposure by breathing mercury vapour or by eating mercury-contaminated food". In J. D. Mollon, J. Pokorny, K. Knoblauch (eds.). Normal and defective colour vision. Oxford: Oxford University Press, pp 407-417, 2003.

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    16. Pinheiro, M. C. N., Nakanishi, J., Oikawa, T., Guimarães, G. A., Quaresma, M., Cardoso, B. S., Amoras, W. W., Harada, M., Magno, C., Vieira, J. L. F. "Exposição humana ao metilmercúrio em comunidades ribeirinhas do Tapajós". Pará, Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 33, 265-269, 2000b.

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