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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2004

     

    História

    OUTRO PIONEIRO DO BRASIL NA NAVEGAÇÃO AÉREA

     

    O crédito das grandes contribuições brasileiras para a navegação aérea sempre recai em Santos Dumont, o brasileiro que deu certo e honrou o nome do país lá fora. Mas a história nem sempre é democrática para abrigar todos aqueles que contribuíram para escrevê-la. É o caso do paraense Julio Cezar Ribeiro de Souza, filho de lavradores e sem formação científica, que resolveu o problema de vôo do dirigível quinze anos antes de Dumont e alguns anos antes dos franceses Charles Renard e Arthur Krebs concluírem o primeiro circuito fechado a bordo de um dirigível, em 1884. O livro Memórias sobre a navegação aérea, organizado por Luís Carlos Bassalo Crispino, físico da Universidade Federal do Pará, busca eliminar este lapso. Além dos escritos originais de autoria de Julio Cezar, a obra conta com textos de Crispino e do médico Fernando Medina do Amaral, que dedicou 25 anos para recuperar a memória do inventor paraense.

    Todos os quatro inventores pioneiros do ar tiveram em comum o fato de terem trabalhado seus projetos na oficina de Hilaire Lachambre, na época a melhor opção para a construção de balões da França. Confiante em sua teoria, construída a partir da observação do vôo de aves planadoras como o urubu e na forma do corpo de animais aquáticos, Julio Cezar patenteou sua invenção em onze países, incluindo Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França. Em sua concepção, o balão deveria assemelhar-se ao corpo dissimétrico dos pássaros, mais amplo na porção dianteira com planos laterais para auxiliar sua direção.

    A primeira audiência com o governo de sua província natal para apresentar sua teoria não teve sucesso, e o inventor paraense parte para o Rio de Janeiro, em busca de um parecer técnico favorável do Instituto Politécnico Brasileiro, a maior instituição científica da América Latina da época, o que consegue. Esse voto de credibilidade garante a liberação de 20 contos de réis por parte do governo paraense, permitindo iniciar a construção de seu balão na França. Para se ter uma idéia do montante, 4 contos de réis eram necessários para uma viagem de ida e volta ao velho continente.

    Após obter a patente do invento na França, e expor sua teoria para a Sociedade Francesa de Navegação Aérea, Julio Cezar constrói o balão Victoria, um protótipo de dez por dois metros, que resulta em experiências bem sucedidas. Na ocasião, o comandante francês Renard, ao presenciar as experiências de ascensão do balão, declara: "como eu lamento que o inventor não seja um francês!". É o que registra uma carta de Julio Cezar enviada ao Barão de Teffé.

     

     

    Sem mais recursos, Julio Cezar é obrigado a retornar ao Brasil em 1881, e faz novos ensaios com o Victoria em Belém e no Rio de Janeiro. Naquela época, o protótipo era controlado por uma corda que o mantinha dentro de certos limites. Uma vez mais, o Instituto Politécnico ratifica seu apoio a Julio Cezar, garantindo novo investimento, desta vez de 36 contos de réis, doados pelo governo paraense, para construir um balão de 52 metros de comprimento – até então o maior balão do mundo – batizado de Santa Maria de Belém.

    De volta à oficina de Lachambre, o grande balão começa a sair do papel em janeiro de 1883, mas sem o acompanhamento próximo de seu idealizador que, por contenção de custos, aguardava a conclusão do balão no Brasil, acaba precisando de ajustes. O pouco dinheiro restante teve de ser usado para refazer algumas partes, e os três mil metros cúbicos de hidrogênio necessários para inflar o balão ficaram comprometidos. Os reparos são realizados, e o balão segue para Belém, onde Julio Cezar tem dificuldades em arrecadar fundos para fabricar o hidrogênio, para inflar seu balão. Uma das saídas é cobrar ingresso para ver o pequeno protótipo, exposto na catedral de Belém, e também para ouvir suas palestras, à noite, no Teatro da Paz. Finalmente, cerca de um ano após ter chegado da França, em 12 de julho de 1884, com auxílio da província do Amazonas, Julio Cezar organiza um mutirão de colegas, trabalhadores e amigos em um esforço de encher o balão, utilizando 70 barris para a produção de hidrogênio. O trabalho, iniciado à meia-noite, segue madrugada adentro. A inexperiência na manipulação do material acaba danificando o experimento, obrigando Julio Cezar a encerrá-lo, sem sucesso, às onze horas da manhã.

     

     

    ULTRAPASSAGEM FRANCESA Quase um mês depois desse golpe sofrido por Julio Cezar, os franceses Renard e Krebs realizam, em 9 de agosto de 1884, o primeiro circuito fechado a bordo de um balão dirigível, de proporções semelhantes às idealizadas pelo brasileiro - 52,4m por 8,4. Inconformado, Julio Cezar redige um protesto – que está reproduzido no livro – publicado em jornais paraenses e franceses, explicando sua teoria, falando de suas patentes, experimentos e do plágio ocorrido na construção do primeiro balão dirigível pelos franceses.

    "Os Srs. Renard e Krebs não dizem uma única palavra sobre o meu sistema, do qual afetam não ter tido o menor conhecimento, - eles que nunca escreveram antes de mim, nada de semelhante às minhas teorias (...)".
    "Minha patente francesa está anulada, como quase todas as outras; meu sistema pode hoje ser ensaiado e explorado por quem o queira (...) Eu me sentiria felicíssimo em ver minha invenção tornar-se útil à humanidade, com a condição, contudo, que se reconheça que o inventor sou eu".

    Embora divulgado em vários países, seu protesto é ignorado na França e Julio Cezar recorre ao Instituto Politécnico para que se manifeste a seu favor, o que só ocorre um ano mais tarde, dois anos antes de sua morte, aos 44 anos, depois de contrair beribéri, doença causada pela carência de vitamina B1.

    RESGATE HISTÓRICO O trabalho de Julio Cezar não consta da história da navegação aérea. "Mesmo os principais estudiosos brasileiros do assunto pouco conhecem sobre suas realizações", lamenta Crispino.

    O livro, concluído depois de dois anos de pesquisas, foi a primeira parte dos planos de Crispino em recuperar a história de Julio Cezar. Na realidade, Fernando Medina do Amaral, co-autor da obra, faleceu em 2001, antes do projeto do livro deslanchar. Falta, ainda, a execução de um busto em bronze, a construção de uma reprodução do Victoria e ainda a localização de importantes documentos que possam contribuir para o registro dos feitos do paraense. Entre eles, estão as notícias publicadas na França e eventuais fotografias da ascensão bem-sucedida do balão de 52 metros de comprimento, construído por Lachambre, por encomenda de Julio Cezar, para testar o dirigível, além de informações sobre o Cruzeiro, balão de testes construído durante a última viagem de Julio Cezar a Paris, em 1886. Em outubro passado, Crispino surpreendeu-se ao receber do Musée de l’Air et de l'Espace, na França, uma cópia do que seria o primeiro registro fotográfico de um experimento de Julio Cezar. "Trata-se da fotografia mais antiga de um experimento com balão em solo brasileiro de que se tem notícia", afirma o pesquisador.

     

    Germana Barata