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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.1 São Paulo jan./mar. 2004

     

     

    EDMAR MONTEIRO FILHO

     

     

    BABEL

    Respeito. Meu avô era um homem muito sério. Meu pai era um homem muito sério, que se permitia jogar futebol uma ou duas vezes conosco – eu e meu irmão – enquanto minha mãe fritava o almoço. Um ou dois chutes de sapato desajeitado paletó, desafiando-me a defender a bola de meia que eu preferia porque não pulava tanto. Defendia como se soubesse que ele sabia que eu sabia que ele não facilitava as coisas. É que ele não sabia chutar. Era só isso e sentar-se, às vezes, no chão para observar um desenho que eu pintava. Jamais perto do meu avô.

    Meu avô vivia no topo de uma árvore, seu cabelo revolto pelo vento, o apoio da bengala para preservar a integridade, antes do equilíbrio. Lá do alto, enxergava tudo o que se passava; tinha os olhos próximos do céu e apanhava pássaros com as mãos. Abaixo disso, eram insetos nos galhos, bagunça de folhas, e, mais abaixo, a casca, parasitas, o chão. Meu pai, embrenhado na ramagem, tinha o céu por meta. Subia devagar, descia, perdia-se, não conseguia ascender. Às vezes, estendia-nos a mão que não conseguíamos alcançar – nossa culpa de braços curtos.

    Falar de meu avô era falar de alturas. Mas entre o topo e o enxame dos galhos, uns ruídos, a interferência. Meu avô não ouvia bem, mas era o vento. Meu pai não conseguia ouvir, mas eram as folhas, os galhos, a distância. Meu pai era de 27, meu avô de 1.900. Os tempos são vertigem, um aproximar-se mais e mais do centro do redemoinho que nos engole. Meu avô teve tempo e meios, mas, para nós tem que ser ligeiro, antes que estejamos velhos demais, ou antes que outros estejam ocupando a copa, nos dizendo como é, tomando um lugar que é nosso, enquanto a fotografia de meu avô nos recrimina da estante, entre as centenas de livros que ele leu e que tenho preguiça em abrir. Sou de 58.

    Meu pai era a humilhação que eu percebia. Meu avô, do alto da sua bengala. Eu conhecia as humilhações porque era uma criança magra e doente entre gigantes corados na escola. Bom aluno, mas nem tanto, quando era preferível ser bom com a bola. Notas sofríveis: os olhos de meu avô, a voz rude de meu pai para recriminar-me diante dele, para que soubesse que não era sua culpa, mas que eu era meio imprestável. Um fracasso dele: eu.

    Mas havia o que meu avô falava e fazia e que ninguém era capaz de compreender, ele do alto, nós entre as raízes. Meu pai sofria e eu o via entre os galhos, perdido. Entre eles, vinte e sete anos, uma bengala, algumas viagens, a ortografia em mutação, o mapa para galgar os galhos mais frágeis sem cair.

    A língua sofre suas mutações, um mar de ortografias e idéias expressas no idioma particular de cada um. No tempo de meu avô, no tempo de meu pai, no meu tempo. Quando meu pai olhava para cima e via por entre as folhas o vento que agitava os cabelos de meu avô, para este era um afago; para mim, um incompreensível mar verde. Vinte e sete anos e meu pai já não compreendia o idioma que meu avô empregava para relembrá-lo a todo instante a sua triste condição de mero ser esforçado, criatura de parcos recursos, um ninho plantado entre os galhos mais seguros, com a ânsia de asas. Meu pai me olhava com olhos do alto, e eu querendo que ele descesse vinte e nove anos.

    Cresci depressa, aqui no chão. Cortam mais e mais árvores para fazer papel. Escreve-se com pressa a língua que se talhava a pena, caneta tinteiro e, enfim, velhas e barulhentas Remingtons. Meu avô dizia com os olhos: Deos. Meu pai castigava-me com seu acento diferencial. Sou um neologismo. Anos atrás, mal compreendia dez anos a mais, como uma língua estranha na boca de estranhas criaturas que eu queria imitar sem sair do chão. Envelheço depressa. Não sei quem são essas pessoas dois ou três anos mais jovens que eu. Meu filho será um completo desconhecido. Aqueles companheiros de ontem mal me cumprimentam na rua e eu sinto que não são mais os mesmos, desde a última vez que nos vimos. Novas gírias, uma grande gíria coleante, lesma em páginas, línguas, vozes. Escrevo um texto que, em seguida, já não sou capaz de decifrar. Hoje, pela manhã, desconheço-me no espelho. Escrevo como um desabafo. Não sei quem disse isso. Estou falando sozinho.

     

     

    Edmar Monteiro Filho, vencedor do prêmio Guimarães Rosa, da Rádio França Internacional, em 1997; vencedor do Prêmio Cruz e Souza 1997, categoria contos; vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, edição 1999. Publicou: Este lado para cima, poesia, em 1993; Halma húmida, poesia, em junho de 1997; Às vésperas do incêndio, contos, em julho de 2000; e Aquários, contos, em outubro de 2001.