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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.2 São Paulo abr./jun. 2004

     

     

    Antonio Vírgula Candido
    Jean Pierre Chauvin

     

     

    Desprovida de prefácios ou congêneres, a primeira parte de Teresina etc é dedicada integralmente a uma biografia com foros de ensaio que traz uma faceta menos conhecida do crítico: lá Antonio é crítico, mas também cândido, porque lírico.

    Provavelmente uma das razões para a menor ressonância dessa notável biografia é que o pensador tornou-se mais conhecido por sua produção ensaística. A fama lograda pelo crítico sobrepujou sua escrita mais notoriamente subjetiva, numericamente mais modesta, ao longo de uma carreira maior de 60 anos.

    A ele se ajustam com perfeição as considerações que registrou em Esquema de Machado de Assis: "A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida" (Vários escritos, p. 27). A afirmação não vale apenas para seus escritos teóricos ou analíticos: engana-se o leitor que julgar Teresina e seus amigos como exemplar de mero lapso sentimentalista.

    O título da coletânea é sugestivo: coloca em relevo o texto que preenche a primeira parte do conjunto de ensaios e simultaneamente reserva aos tópicos restantes (daí o desconcertante etc) um par de funções: contextualizar a pseudo personagem Teresina no âmbito das idéias e atitudes brasileiras mal resolvidas; e, em uma leitura de trás para frente, dar corpo às teses expostas na segunda parte.

    Vista no conjunto da antologia a biografia é uma sorte de arroubo calculado. Arroubo porque constituído com base em material que escapa ao temário sabidamente mais próximo da teoria ou análise literária; calculado porque a estruturação com que se reveste o texto revela um rigoroso método que beira o gênero memorialista – inusitado, porque não se trata de um rol de hipóteses à espera de revisão ou aprimoramento.

    A biografia registra em estilo sóbrio, felizmente nem tanto, o perfil e as maneiras convictas de sua amiga discreta. Cálculo provido de lirismo, portanto, já que incorpora dados recorrentes na obra do crítico: os retratos sintéticos e o anseio de justiça. A exemplo do que se percebe em vários de seus ensaios, investido no papel de biógrafo, Candido situa logo no primeiro parágrafo os critérios que norteiam o registro dos traços da saudosa militante italiana:

    "Quando se pensa no ambiente carola e conformista em que Teresina nasceu e foi criada, só mesmo lembrando a sua personalidade vulcânica é possível entender como pôde mudar tão essencialmente as idéias na quadra dos trinta anos" (Teresina etc., p. 13).

    Situada a figura, registra pormenores relativos às suas origens, para então comentar os contrastes entre ela e seu marido, o músico Rocchi, em subcapítulo chamado "O casal mal afinado":

    "Marido e mulher tinham gênio forte e, apesar dos pontos de afinidade, muita diferença difícil de compensar. Ela estava sempre lendo e escrevendo, procurando conferências, se interessando pelo movimento das idéias; e afinal adotou as convicções socialistas com uma paixão que o marido não entendia. Ele não lia nada nem se interessava por política, o que a fazia comentar: 'Rocchi é uma celebridade; mas tem a cabeça cheia de serragem com umas notas de música pelo meio'." (Idem, p. 18)

    Contrastes não resgatados arbitrariamente: o casamento, realizado à antiga, revela severas contraposições entre a mulher insatisfeita em recolher-se à afasia doméstica e o marido que trabalha fora: talentoso músico, mas praticamente não identificado com o socialismo – movimento que embarcava em maior ou menor grau juntamente com os estrangeiros que para cá vieram.

    Referidas as origens aristocráticas e os espaços (da Itália para o Brasil) o segundo e mais denso capítulo traz os aspectos físicos de uma mulher de verdade, com ares de personagem: descrição em tom máximo de lirismo.

    Ironizando o extravasamento, mas consciente do seu poder de síntese, ao traçar os contornos da figura, Candido interpõe um subtítulo em forma de pseudo alerta, Retrato falado, a reproduzir o vocabulário dos desenhistas especializados em recuperar rostos e expressões com base em um par de detalhes:

    "Era magra, de estatura média, com um cabelo alourado que custou a embranquecer. Tinha olhos azuis abertos e redondos, exprimindo de maneira incrível os matizes de um espírito trepidante. Na Itália e aqui pensavam freqüentemente que fosse inglesa, talvez também por causa da originalidade da sua moda, tudo dentro de um bom gosto modesto e pessoal (...)" (p. 21).

    O fato de elencar determinados seres radicais auxilia a compreender a estrita definição com que Antonio se serve da palavra radical: indivíduo oriundo da classe média com preocupações mais teóricas do que práticas, voltado à mudança do estado de coisas no meio em que participa. Teresina quase escorrega ao caráter estrito da definição:

    "personalidade extraordinária, cheia de inquietude, ardor e bravura, fremindo de inteligência e generosidade. Era igualitária por natureza e dizia que foi socialista mesmo antes de ter a noção da realidade política, porque desde pequena teve a maior repugnância pelas injustiças da sociedade. (...) Nela o sentimento da igualdade era visceral e provavelmente nunca sentiu entre os indivíduos as diferenças de classe que reconhecia e combatia" (p. 23).

    Certos traços da italiana poderiam ser vislumbrados nas ligeiras apreciações que o biógrafo teceu a respeito de diversos intelectuais que conheceu. Veja-se como se refere a Sérgio Milliet:

    "homem discretamente notável que foi Sérgio Milliet (...) Relida hoje a sua obra impressiona pela capacidade de dizer o essencial de forma simples; de exprimir um eu extremamente inquieto, que todavia pensa a cada instante no outro; de unir a reflexão íntima ao interesse pelos problemas do tempo" (A educação pela noite & outros ensaio, p. 122).

    Convictos e solidários ao modo de Teresina foram Apolônio de Carvalho

    "A solidariedade humana animou toda a vida de Apolônio de Carvalho, levando-o a compreender a situação dos que são manipulados e impedidos de assumir o seu papel histórico de agentes no processo social; e também a sentir, dentro dos movimentos e partidos de esquerda, o arbítrio de cúpulas nem sempre afinadas com a conjuntura." ("Prefácio" In: Carvalho, A. Vale a pena sonhar)

    e Paulo Emílio:

    "em toda a vida Paulo Emílio só pertenceu a grupos políticos, legais ou ilegais, durante uns três ou quatro anos (...) Mas a sua natureza participante abrangia muito mais coisa do que a definição partidária; e ele nunca deixou de manifestála como uma espécie de livre militante, não apenas nos escritos, mas enfrentando a conjuntura e inspirando os outros por meio de atitudes individuais" (Vários escritos, p. 352).

    Tempestuoso e amável foi Mário de Andrade:

    "Ao lado da solidariedade, da simpatia humana, distinguia-se nele a humildade. Longe estava de ser um espírito angélico. Era homem de gênio forte e freqüentemente tempestuoso, abandonando-se com intensidade às birras e paixões. Por outro lado, tinha bastante consciência da sua importância e valor, apesar dum persistente sentimento de inferioridade que o perseguiu a vida toda" (O observador literário, p. 211).

    A mania de Teresina em passar seus livros devidamente anotados adiante dignifica a observação que Antonio Candido fez a respeito de nosso escol intelectual:

    "Elite literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras" (Literatura e sociedade, p. 77).

    Os dados selecionados e tratados pela mão firme do crítico revelam não só a apaixonada personalidade de Teresina e os demais amigos de Antonio Candido, mas desnudam características do próprio retratista.

    Quem se debruça sobre a obra do crítico tende a seguir duas direções: ou discutir aspectos teóricos polêmicos ou incorrer num acúmulo de paráfrases - talvez porque sabedores, em ambos os casos, de que não lograrão suprir a desproporção de seus ensaios, diante do brilho dos escritos do primeiro.

    É que em suas mãos praticamente toda apreciação de cunho literário, histórico e cultural converte-se em mural com vários recados favoráveis à premente necessidade de se reformular atos ou pensamentos vigentes. A seu modo, Candido desempenha em nossa crítica o que Machado de Assis representa para a literatura: a atividade visa questionar a si mesma. A autocrítica, aliás, é traço que revela não só a coragem de lidar com os limites da modéstia, mas concede pistas valiosas aos escritores e pesquisadores em formação.

    No Brasil, sempre houve maneiras e respectivas escusas para oscilarmos de um a outro lado, conforme as circunstâncias. Também por essa razão, Teresina se destaca dentre a lista de ilustres figuras retratadas pelo crítico.

    Na pele de biógrafo, Candido resgatou os comportamentos extremos da amiga (do altruísmo à grosseria; da compostura à energia): reveladores da espontaneidade, fruto de personalidade que não admitia as muitas faces e modos do meio termo, tão arraigado entre nós.

     

    Jean Pierre Chauvin é professor de literatura e língua portuguesa. É mestre e doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP).

     

     

    Referências bibliográficas:

    Candido,A."Lembrança de Mário de Andrade" In: O observador literário. Conselho Estadual de Cultura, São Paulo. 1959.

    ____. "O escritor e o público" In: Literatura e sociedade. T.A. Queiroz/Plubifolha, 8ª edição, São Paulo. 2000.

    ____. Vários escritos. Duas Cidades, 3ª edição, São Paulo. 1995.

    ____.Teresina etc. Paz e Terra, 2ª edição, Rio de Janeiro. 1992.

    ____. "O ato crítico" In: A educação pela noite & outros ensaios. Ática, 3ª edição, São Paulo. 2000.

    ____. "Prefácio" In: Carvalho, A. de Vale a pena sonhar. Rocco, Rio de Janeiro. 1997.