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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.2 São Paulo abr./jun. 2004

     

    APRESENTAÇÃO

    CIDADE BRASILEIRA: UMA OU MUITAS?

    Raquel Rolnik

     

     

    O campo de pesquisa e reflexão sobre as cidades brasileiras é hoje vasto e multidisciplinar. Geógrafos, demógrafos, urbanistas, economistas, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, administradores e historiadores sediados em centros de pesquisa de vários pontos do país "pensam" a cidade, a partir dos recortes definidos por suas disciplinas e vivências nas cidades brasileiras, numa produção que tem crescido com a velocidade e intensidade de nosso processo de urbanização.

    O Brasil urbano do início do terceiro milênio é marcado por uma enorme diversidade de situações e dinâmicas urbanas. Metrópoles e centros regionais parecem continuar sendo o destino inevitável da população jovem – homens e mulheres – de pequenas cidades do interior. Assim, em distintas partes do país, cidades crescem a taxas superiores a 10% ao ano enquanto outras são povoados por velhos e seus netos.

    Nas áreas dinâmicas do país – ligadas ao agronegócio, pólos industriais, de turismo e de logística, – cidades surgem do nada ou se expandem rapidamente reproduzindo o modelo de exclusão territorial que tem orientado o desenvolvimento urbano do país. Dessa forma, favelas, periferias e loteamentos irregulares deixam de ser marca de metrópoles e capitais para definir um modelo de expansão urbana nos poucos pontos/pólos que a concentram. De outro lado, o esvaziamento demográfico de zonas rurais e pequenas cidades persiste, constituindo juntamente com os assentamentos precários nas cidades em expansão, o lócus da pobreza e precariedade urbanística.

    De alguma forma, esses temas estiveram presentes na produção acadêmica sobre as cidades desde o final dos anos 1970 e permanecem, agora com muito mais diversidade de olhares e profundidade empírica. Nesse ponto, talvez a grande contribuição tenha sido a diversificação do lócus de pesquisa, incluindo cidades pequenas e médias do interior, capitais e centros regionais nas distintas regiões do país. Esse movimento, fundamental para aguçar a análise das dinâmicas urbanas em sua diversidade, foi fruto também da multiplicação de programas de pós-graduação e núcleos de pesquisa no país: de pouco mais de 20, concentrados apenas no Rio de Janeiro, Campinas, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, em 1983, quando foi fundada a Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur), expandiu-se para mais de 300 em 2003, sediados em cidades de diferentes tamanhos em todas as regiões do país. Destaca-se também aqui a melhoria e disponibilidade de fontes estáveis e permanentes de pesquisa – sobretudo demográficas e sócio econômicas, que marcou a década de 1990. Ainda nesse campo, cumpre destacar o avanço das pesquisas na compreensão do processo de produção econômica das cidades, constituição de seus mercados imobiliários e fundiários e suas relações com as políticas públicas.

    Entretanto, os anos 1990 marcaram a entrada em cena de novos temas na agenda de pesquisa urbana. Em primeiro lugar, um dos campos que se expandiu enormemente foi o da história urbana e do urbanismo, ampliando horizontes empíricos e teóricos até então restritos ao mito da inexistência de cidades planejadas e pré-desenhadas no país. Ainda nesse campo, novas pesquisas de história das cidades nos ajudam a compreender as complexas relações entre urbanismo, economia e política. Destaca-se, também, a reflexão sobre novas formas de organização do espaço urbano, com o triunfo do shopping center, do condomínio fechado e outras formas de privatização e fragmentação do espaço sobre as formas de sociabilidade e estruturas urbanas tradicionais.

    A expansão e consolidação da democracia no país turbinaram a agenda de pesquisa urbana, incluindo o campo das políticas públicas e processos decisórios como tema. A questão da cidadania, em um primeiro momento restrita ao estudo dos movimentos sociais urbanos, expandiu-se na direção dos processos políticos envolvidos na gestão das cidades, incluindo a reflexão sobre os atores ou agentes envolvidos nestes processos. Da mesma forma, toda uma área de avaliação de impacto de implementação de políticas – notadamente habitacional – contribuiu para um grande avanço na reflexão crítica sobre as políticas de desenvolvimento urbano praticadas por diferentes níveis de governo.

    A intensidade, velocidade e modelo excludente da urbanização brasileira trouxeram à tona todo um campo de pesquisa ligada aos impactos ambientais e, mais particularmente, ao aspecto social da urbanização, juntamente com o tema da violência urbana e da expressão conflituosa de um território construído por desterritorializados e excluídos. Neste campo, sociólogos, antropólogos e urbanistas têm procurado apontar para as raízes da violência, uma das marcas contemporâneas de um novo etos urbano, fragmentado e totalmente fora do controle das políticas governamentais.

    Os artigos presentes neste Núcleo Temático estão longe de constituir uma amostra de todo esse universo. A exigüidade do espaço nos obrigou a limitar o número de artigos assim como as temáticas por eles cobertas. Desta forma, temos apenas uma pequena parte de um painel mais amplo do que se pensa e se produz sobre as cidades brasileiras hoje. Procuramos incluir olhares de diferentes disciplinas e de grupos situados em distintas partes do país. A geografia, história, demografia, sociologia e o urbanismo estão presentes nesta coletânea. A antropologia e economia urbanas, além da ciência política, são os grandes ausentes. Esperamos que o leitor, muito provavelmente ele mesmo um morador de cidade, possa, com este micropanorama, parcial, aguçar seu próprio olhar sobre esta para engajar-se, como são engajados os textos aqui presentes, na luta por cidades mais equilibradas e justas no nosso país.

     

    Raquel Rolnik é professora titular da pós-graduação da PUC de Campinas e Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades.