SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.56 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.2 São Paulo Apr./June 2004

     

     

    NEM TUDO É URBANO

    José Eli da Veiga

     

    Será apropriado afirmar que "tudo é urbano"? Foi o que se ouviu em diversas sessões do último encontro anual da Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional (Anpur), realizado em Belo Horizonte em maio de 2003. As mudanças semânticas do debate público sempre revelam um sentimento coletivo de que noções utilizadas até determinado momento não mais dão conta da percepção que se tem dos problemas enfrentados, nem exprimem direito o que se gostaria ou pretenderia fazer em seguida. Ou seja, são mudanças que refletem as hesitações intrínsecas ao enunciado de novos projetos sociais, e, por isso mesmo, as novas noções em torno das quais se organiza o debate público costumam ser sempre muito imprecisas, fluidas e ambíguas. Há quem acredite que o processo de urbanização seja tão poderoso que a histórica contradição urbano-rural esteja fadada a desaparecer. E a peculiaridade da definição brasileira de cidade só ajuda a reforçar essa suposição. Por isso, este artigo tem duas partes desiguais. Na maior, a questão é abordada no âmbito global. Depois, são apresentadas algumas considerações mais sintéticas sobre o caso brasileiro.

    OS GRAUS DE URBANIZAÇÃO NO CAPITALISMO AVANÇADO Há três tipos de países desenvolvidos sob o prisma da diferenciação espacial entre áreas urbanas e rurais. Primeiro, um pequeno grupo fortemente urbanizado, que reúne Holanda, Bélgica, Reino Unido e Alemanha, no qual as regiões essencialmente urbanas ocupam mais de 30% do território e as regiões essencialmente rurais menos de 20%, sendo que as intermediárias variam entre 30% e 50%.(1) No extremo oposto há um grupo maior, formado por quatro países do "Novo Mundo" - Austrália, Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia - mas do qual também fazem parte três nações muito antigas: Irlanda, Suécia e Noruega. Nesse grupo as regiões essencialmente rurais cobrem mais de 70% do território e as relativamente rurais têm porções inferiores a 20%. Finalmente, no caminho do meio encontram-se França, Japão, Áustria e Suíça, países nos quais entre 50% e 70% do território pertence a regiões essencialmente rurais e cerca de 30% a regiões relativamente rurais.

    Qualquer esforço para interpretar os fundamentos desses três padrões de diferenciação espacial do mundo desenvolvido será forçosamente levado a considerar fatores naturais objetivos, como o relevo, clima e hidrologia. Rejeitar explicações baseadas no determinismo natural não significa que se possa admitir o simples "possibilismo", isto é, a desconsideração de limites físicos e biológicos à ação humana na formação dos espaços rurais e urbanos, eludindo, assim, toda a problemática do relacionamento entre as sociedades humanas e os meios ditos naturais.(2) Além disso, foi justamente o avanço das pesquisas científicas em urbanismo que fez emergir o conceito de "ecossistema territorial", entendido como o espaço sem o qual um ecossistema urbano não pode exercer o conjunto de suas próprias funções vitais. Se o ecossistema territorial é composto tanto de elementos do ambiente físico-biológico, quanto do ambiente construído e do ambiente antrópico, torna-se impossível, então, recusar todo e qualquer tipo de determinismo geográfico para explicar a localização das atividades e das populações, como pretendiam os primeiros teóricos da economia espacial.(3)

    Nada disso impede, entretanto, que seja muito atraente a crença de que o destino do espaço rural será seu desaparecimento por força de avassaladora urbanização. Para seus adeptos, a oposição urbano-rural já seria, inclusive, uma questão inteiramente superada, uma vez que a ruralidade não passaria de mero sucedâneo de uma formação social anterior, condenada pura e simplesmente a sumir, a exemplo do que já teria ocorrido na Holanda, essa vasta metrópole urbana apenas recortada por corredores verdes onde se misturam espaços recreativos e terrenos de uso agrícola.

    Acontece, contudo, que essa visão de convergência para um suposto padrão holandês, de grande metrópole esverdeada, não resiste a qualquer tentativa de se encontrar homogeneidade espacial entre os países mais desenvolvidos, mesmo que se admita o reducionismo de considerar apenas os aspectos demográficos da questão. Um dos países desenvolvidos mais densamente povoados – a Suíça – tem 13% de sua população em regiões essencialmente rurais, 25% em regiões relativamente rurais e 62% em regiões essencialmente urbanizadas. Estendendo-se por largas partes do Jura, da Plaine e dos Alpes, as zonas rurais contribuem de maneira significativa à economia nacional, para não falar da imagem do país no exterior. E suas funções de residência, de trabalho, e de lazer, são consideradas fundamentais por suas elites.

    É verdade que só uma ínfima parte dos habitantes de meia dúzia de países do oeste europeu reside em regiões essencialmente rurais. Mas o peso das populações em regiões relativamente rurais dessa meia dúzia de países varia de 15% na Holanda a 44% na Itália. Nesta última, como no Japão, não chegam a 50% os habitantes de regiões essencialmente urbanas, mesmo que 70% residam em localidades urbanas. Em países maiores, como a França e o Canadá, apenas 29% e 44% dos habitantes estão em regiões essencialmente urbanas, mesmo que 60% residam em localidades urbanas. De resto, a diferenciação rural/urbana pode ser muito parecida em territórios tão diferentes quanto o da França e o dos Estados Unidos.

    São bem diversas as combinações entre os vários tipos de atividade econômica que permitem elevar os níveis de renda, educação e saúde de muitas populações que continuam rurais. As novas fontes de crescimento das áreas rurais estão principalmente ligadas a peculiaridades dos patrimônios natural e cultural, o que só reafirma o contraste entre os contextos ambientais dos espaços urbanos e rurais. Enfim, a visão de uma inelutável marcha para a urbanização como única via de desenvolvimento só pode ser considerada plausível por quem desconhece a imensa diversidade que caracteriza as relações entre espaços rurais e urbanos dos países que mais se desenvolveram. Não faz sentido, portanto, amalgamar desenvolvimento e urbanização.

    Estão justamente entre as menos urbanizadas as microrregiões rurais dos Estados Unidos que hoje desfrutam das melhores perspectivas de desenvolvimento. São principalmente as do sul e do oeste que dispõem de clima agradável, montanhas, lagos, praias, podendo atrair muitos aposentados, turistas, excursionistas, esportistas, etc. Além desses condados já escolhidos por migrantes de alta renda, há muitos outros, principalmente no oeste, nos quais a forte incidência de terras federais faz com que seu futuro esteja estreitamente vinculado à evolução das políticas governamentais relativas ao meio ambiente, ao turismo e outros ramos recreativos. De resto, elevadas rendas per capita ocorrem nos condados rurais das Grandes Planícies, porque ali os serviços vinculados a atividades agroindustriais engendraram baixíssimos níveis de densidade demográfica. E há muita incerteza sobre as perspectivas socioeconômicas de condados rurais da metade oriental do país, principalmente no sudoeste, onde os serviços se combinaram a outros tipos de atividades industriais.(4)

    Na prática, as desigualdades internas às regiões rurais de um mesmo país podem ser muito mais significativas que as referentes ao contraste rural/urbano. Em mais de um terço dos condados rurais dos Estados Unidos (795/2288), pelo menos 20% da população encontrava-se abaixo do nível de pobreza em 1990; um problema de difícil solução em 535 deles, quase todos concentrados no sudeste e no sudoeste, mas também presentes nos Appalaches e em algumas reservas indígenas do norte e do oeste. Todavia, mais de 80% da população rural americana reside em condados que conseguiram desenvolver sistemas produtivos cada vez mais baseados em vários tipos de combinações de atividades terciárias com as duas outras categorias setoriais. Para o conjunto dos espaços rurais dos Estados Unidos, as novas fontes de crescimento e emprego estão nas atividades de serviços ligadas ao lazer, à aposentadoria e ao meio natural, mesmo que continuem muito importantes outros tipos de serviços, como os financeiros, de seguros, imobiliários, de comércio varejista, de restauração, de lavagem a seco, etc.

    Enfim, as áreas rurais dos países avançados que permanecem subdesenvolvidas são aquelas que não lograram explorar qualquer vocação que as conecte às dinâmicas econômicas de outros espaços - sejam eles urbanos ou rurais – e não aquelas que teriam sido incapazes ou impossibilitadas de se urbanizar. E como as novas fontes de crescimento econômico das áreas rurais estão principalmente ligadas a peculiaridades dos patrimônios natural e cultural, intensifica-se o contraste urbano-rural. O que interessa são os vínculos urbano-rurais.

    Tudo isso quer dizer, então, que a desacreditada abordagem "dicotômica" deveria ser reabilitada? Estaria sendo contrariada a abordagem inversa, de "continuum" ? Depende muito, na verdade, do significado que se atribua a esses vocábulos.(5) De qualquer forma, o que não parece existir é qualquer evidência de que esteja desaparecendo a histórica contradição urbano-rural, inclusive no caso holandês, onde os espaços rurais tendem a ser caracterizados como meros corredores nos quais convivem atividades agrícolas e recreativas. Em outras palavras, há uma falsa alternativa sendo proposta nesse duelo entre dicotomia e "continuum". Mas para disso se dar conta, é absolutamente necessário sair do isolamento demográfico (ou no máximo sociológico) em que foi metido esse debate, como se seus fundamentos ecológicos e econômicos tivessem menor importância.

    O desafio é, portanto, entender as várias dinâmicas socioeconômicas, das mais efêmeras às mais duráveis, distinguindo bem as reversíveis das irreversíveis, pois algumas podem ser duráveis sem que sejam necessariamente irreversíveis. Ninguém ignora que a proporção das atividades primárias nas economias mais desenvolvidas caiu, no século XX, de metade para um vigésimo. Enquanto isso, as terciárias subiram de um quarto para mais de três quintos, e as secundárias deslizaram de pouco mais a pouco menos de um terço. Só que os resultados dessas grandes tendências foram bem heterogêneos. Entre os países do primeiro mundo, a parte dos serviços varia de 50% a 70%, a das industriais de 40% a 25%, e a das primárias de 10% a 3% dos ocupados.

    Ainda mais heterogêneas foram as repercussões espaciais dessa enorme mudança estrutural. O fato de atividades primárias estarem forçosamente muito mais presentes no espaço rural não significa que os outros dois tipos sejam necessariamente muito mais recorrentes em espaços urbanos. O emprego industrial é mais significativo nas regiões relativamente rurais que nas essencialmente urbanas, chegando mesmo a ser muito mais rural que urbano em países nórdicos, como a Noruega e a Suécia. E os serviços têm quase o mesmo peso em regiões essencialmente urbanas e relativamente rurais, sendo extraordinariamente importantes nas regiões essencialmente rurais da Bélgica.

    Não é, portanto, a composição setorial das economias desenvolvidas que pode explicar o surgimento, no final do século XX, de indícios opostos à chamada "desertificação rural" que estariam anunciando um certo "renascimento rural". Essa hipótese foi contrariada pelos estudos da OCDE que compararam as regiões rurais mais dinâmicas às mais letárgicas ou decadentes. Os resultados mostram que o melhor desenvolvimento de determinadas zonas rurais tem causas ainda desconhecidas, mas que, com certeza, não estariam relacionadas a diferenças em suas respectivas estruturas setoriais. O serviço de desenvolvimento territorial da OCDE só foi criado por seu Conselho no início de 1994, quase um ano depois da apresentação formal do projeto pelo secretário geral. Com o firme apoio da representação austríaca, ele propôs o agrupamento de quatro unidades até ali dispersas em outras divisões: os grupos especializados em questões urbanas, desenvolvimento rural e desenvolvimento regional, mais o programa de ação e cooperação sobre iniciativas locais de criação de emprego.(6) Baseou tal proposta em duas justificativas, uma de ordem política e outra de ordem operacional:

    "I) As zonas urbanas, suburbanas e rurais são cada vez mais interdependentes e os problemas de uma delas também interferem nas outras. Por exemplo, os fenômenos de aglomeração e de congestão urbana são inseparáveis da debilitação de certas regiões e do êxodo rural. Além disso, os efeitos de proximidade tornam ainda mais manifesta a necessidade de uma abordagem política coordenada, que possa integrar o conjunto dos aspectos do desenvolvimento. Assim, na escala local, os problemas de emprego, de harmonia social, de qualidade da vida – para tomar apenas alguns exemplos – são indissociáveis. (...)"

    "II) O desenvolvimento harmônico do tecido econômico está no centro dos trabalhos dos grupos que tratam de assuntos urbanos, locais, rurais e regionais. Isso se traduz por ações que visam encontrar, para uma determinada zona, um equilíbrio entre o fortalecimento de sua capacidade concorrencial e a melhoria da qualidade de vida de seus habitantes. Atingir esse objetivo exige a criação de novas formas de parcerias entre os atores envolvidos, quer eles sejam públicos, privados, nacionais, regionais ou locais. Estímulo a projetos, iniciativa rural, ação urbana, tudo isso decorre da mesma idéia, segundo a qual as contribuições locais permitem operar mudanças significativas na paisagem socioeconômica territorial."(7)

    Durante o primeiro debate dessa proposta, três outras delegações – Austrália, Canadá e Noruega - juntaram-se à da Áustria para considerar o novo serviço como "primeira etapa lógica" de um processo que deveria permitir à OCDE uma abordagem analítica mais horizontal das questões relativas ao desenvolvimento econômico, social e ecológico de seus países membros. Em seguida, as delegações da Holanda e da Suíça foram ainda mais longe, chegando a propor, inclusive, a "completa fusão dos órgãos subsidiários dos quatro grupos". Mas tanto entusiasmo esbarrou na resistência das delegações do Japão, da Bélgica e do Reino Unido, e numa certa hesitação por parte dos representantes da Irlanda e da Espanha. Muitas dessas reticências eram de ordem orçamentária, mas também foi mencionado o temor de que o novo serviço viesse a reforçar a concentração da OCDE em "questões de desenvolvimento econômico e industrial em detrimento dos problemas ambientais, do turismo e da cultura".(8)

    Um dos fatores que fez brotar no interior da OCDE a idéia de juntar sob o lema do "desenvolvimento territorial" seus núcleos voltados aos problemas urbanos, rurais e regionais foi, com certeza, mais de um decênio de experiência com o programa dedicado à geração de empregos mediante estímulos ao "desenvolvimento local". Esse programa de ação e cooperação sobre iniciativas locais de criação de emprego – que hoje se chama "LEED – Local Economic and Employment Development" – foi criado em 1982, e deu origem a uma vasta rede de intercâmbio que divulga análises e relatos de experiências concretas por meio de notebooks e de uma newsletter intitulada Innovation & Employment, que chegou a ser editada em parceria com a União Européia.

    Outro fator que certamente contribuiu para que a OCDE decidisse criar um serviço de desenvolvimento territorial foi quase um decênio de experiência com o programa de desenvolvimento rural, particularmente o Projeto sobre Indicadores de Emprego Rural ("Remi Project"). Foi ele que deixou claro o quanto podem ser enganosas as comparações cronológicas de indicadores de emprego para uma mesma área, e o quanto podem ser instrutivas as comparações espaciais em um mesmo momento. Apesar da base estatística da OCDE ser uma das que melhor permite comparações entre países – i.é, territórios – até o início dos anos 1990 essa organização só dava atenção às séries temporais de cada país membro. No entanto, as diferenças cronológicas das taxas de desemprego, por exemplo, são muito menos significativas que as disparidades entre os países membros. Em 1995, essas taxas variavam de menos de 3% no Japão a mais de 23% na Espanha. E as disparidades regionais dentro de cada país eram ainda mais importantes.

    Também se deve ao Remi a demonstração de que o sucesso e o insucesso em criar novas oportunidades regionais de emprego não estão estritamente correlacionados aos graus de urbanidade ou de ruralidade. A ruralidade não é deficiência, e também não é sinônimo de declínio; tanto quanto urbanidade e aglomeração não garantem automaticamente um próspero desenvolvimento. Em vez de comparar apenas as diferenças entre áreas rurais e urbanas, tornando implicitamente o urbano como modelo para o rural, o Remi preferiu se dedicar a comparações entre regiões mais e menos dinâmicas. Principalmente porque as regiões rurais mais dinâmicas podem ser melhor referência para similares mais atrasadas do que o seriam as urbanas. E foi a partir desse tipo de comparações realizadas pelo Remi que o programa de desenvolvimento rural da OCDE passou a ganhar consistência.

    A PECULIARIDADE BRASILEIRA(9) Não existe país que conte mais cidades do que o Brasil. Eram 5.507 há quase três anos, quando houve o último Censo Demográfico. A menor, União da Serra, no nordeste gaúcho, tinha exatos 18 habitantes. E não é excrescência. Eram 90 as "cidades" com menos de 500 habitantes, por exemplo: 49 no Rio Grande do Sul; em Santa Catarina 21; nove no Piauí; na Paraíba quatro; três no Paraná; duas em Tocantins; uma em Minas; e outra em São Paulo.

    Seria mesmo uma cidade, lugar com tão poucos moradores? No resto do mundo, não. Mas no Brasil – além de jabuticaba – também dá cidade que mais parece com presépio, ou com aquele grupo de edifícios rústicos chamado Le Hameau, que tanto divertia Maria Antonieta em seus passeios pelos jardins do castelo de Versailles. E o motivo é simples, mesmo que continue misteriosa a atitude geral de manter essa questão esquecida. A definição brasileira de cidade é estritamente administrativa. Toda sede de município é cidade, e pronto. Mesmo que só tenha 4 casas, nas quais residem 3 famílias de agricultores e uma de madeireiro (caso de União da Serra). Se for sede de município, é cidade e estamos conversados. Disparate que surgiu em 1938, ápice do Estado Novo, com o Decreto-Lei 311. E que continua em vigor, pois nenhum outro diploma o revogou.

     

     

    Não vale a pena especular aqui sobre as razões que devem ter levado bons geógrafos e bons estatísticos a fazer proposta tão singela ao ditador Getúlio Vargas. O principal é lembrar que na ocasião o critério até podia ter algum sentido, já que era pequeno o número de municípios. Mesmo que suas sedes ainda não fossem verdadeiras cidades, era razoável supor que se tornariam vértices da futura rede urbana. Só que agora, com mais de 5.561 municípios, isso se tornou ridículo. Faz-se de conta que o Brasil é mesmo o campeão mundial em número de cidades.

    Fora daqui não se usa critério administrativo para definir cidade. O mais comum é uma combinação de critérios estruturais e funcionais. Critérios estruturais são, por exemplo, a localização, o número de habitantes, de eleitores, de moradias, ou, sobretudo, a densidade demográfica. Critério funcional é a existência de serviços indispensáveis à urbe. Exemplo ilustrativo é Portugal, onde a lei determina que uma vila só será elevada à categoria de cidade se, além de contar com um mínimo de 8 mil eleitores, também oferecer pelo menos metade dos seguintes dez equipamentos: a) hospital com permanência; b) farmácias; c) corporação de bombeiros; d) casa de espetáculos e centro cultural; e) museu e biblioteca; f) instalações de hotelaria; g) estabelecimentos de ensino preparatório e secundário; h) estabelecimentos de ensino pré-primário e creches; i) transportes públicos, urbanos e suburbanos; j) parques e jardins públicos.

    Com base nesses critérios lusitanos – muitíssimo mais inteligentes que o estadonovista – encontrar-se-á no Brasil, na melhor das hipóteses, umas 600 cidades, número das sedes de município onde há livraria. Usando-se critérios exclusivamente estruturais, é razoável supor que aqui existam umas quatro categorias de cidade: a) as sedes dos 200 municípios que fazem parte das 12 aglomerações metropolitanas; b) as sedes dos 178 municípios que fazem parte das demais 38 aglomerações urbanas; c) as sedes dos 77 municípios que são inequívocos centros urbanos, mesmo que não tenham gerado aglomerações; d) parte das sedes dos 567 municípios de natureza ambivalente, que freqüentemente adquirem feições de pequenas cidades, apesar de continuarem focos de economias tipicamente rurais. De qualquer forma, só existem 715 sedes de município com mais de 25 mil habitantes, e parte delas não tem os equipamentos exigíveis para que uma vila se torne cidade. É impróprio chamar de cidades as sedes dos mais de 4,5 mil municípios rurais. Ou, no limite, dos 4,3 mil municípios rurais cujas sedes têm menos de 20 mil habitantes.

    Enfim, é necessário enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei que defina o que é cidade, revogando o Decreto-Lei 311, de 2 de março de 1938. Para que esse projeto seja elaborado, será aconselhável que se consulte legislações de outros países. E aí se perceberá que os critérios nunca são puramente administrativos, como ocorre aqui. Sempre foram principalmente funcionais as condições sine-qua-non da promoção de um povoado à categoria de cidade. Os próprios etruscos só consideravam como cidade um lugar que tivesse saídas para pelo menos três estradas, além de três templos: a Júpiter, Juno e Minerva. Dois milênios depois, o Brasil se distingue mundialmente por considerar como cidades até vilarejos onde não há sequer três escolas. Onde nem existe cinema, teatro, centro cultural, ou transporte coletivo. Onde a urbe é reles ficção.

    CONCLUSÕES Parece errado abordar os vínculos urbano-rurais nos termos em que se desenrola o debate estritamente sociológico, i.é, de "dicotomia x continuum". O aumento da densidade demográfica nas zonas "cinzentas" – que deixaram de ser propriamente rurais e que não chegam a ser propriamente urbanas – não significa que esteja desaparecendo a contradição material e histórica entre o fenômeno urbano e o fenômeno rural. Em termos econômicos e ecológicos, aprofundam-se, em vez de diluírem-se, as diferenças entre esses dois modos de relacionamento da sociedade com a natureza. Ou o que Marx chamava de "metabolismos" entre humanidade e natureza.

    Também parece errado opor uma tendência de "ressurreição rural" à velha tese da "desertificação rural". Em termos estritamente demográficos, há áreas rurais que continuam se esvaziando e outras que se recuperam. Mas as possibilidades de dinamismo econômico dessas áreas não estão necessariamente correlacionadas às tendências demográficas, uma vez que as mais promissoras vantagens competitivas das áreas rurais são "amenidades" que dependem de heranças naturais e culturais, podendo ser até melhor aproveitadas por movimentos apenas temporários de população.

    O processo de aproveitamento das novas vantagens competitivas tem sido muito lento porque depende dos inúmeros e pouco conhecidos determinantes do "empreendedorismo". A ênfase no caráter endógeno de tais determinantes – que está embutida no uso cada vez mais freqüente da noção de "capital social" – não deve, todavia, levar a pensar que possam ser menos importantes os determinantes exógenos que resultam da importância que o conjunto da sociedade dá ao patrimônio natural e cultural de seus espaços rurais.

    Fatores supranacionais – como a integração européia ou, de forma mais ampla, a regionalização internacional e a "mundialização" ou "globalização" – têm provocado uma heterogênea evolução das políticas governamentais. A crescente exposição ao comércio internacional, ligada à aceleração do progresso tecnológico, exige mudanças estruturais que permitam remover obstáculos ao crescimento e ajudem a aproveitar novas oportunidades. Muitas dessas mudanças estruturais são de caráter sub-nacional, mostrando a pertinência de uma abordagem territorial, para a qual os quadros dirigentes estão, contudo, despreparados. Sabem que o principal desafio é identificar os fatores que permitiriam ampliar as oportunidades de desenvolvimento das regiões menos dinâmicas, mas também não ignoram que a resposta depende de uma explicação ainda muito precária sobre as razões desse menor dinamismo.

    O uso da noção "DT: desenvolvimento territorial" (ou "espacial", como prefere a Comissão Européia), tende a substituir a tradicional expressão "desenvolvimento regional", pois permite uma referência simultânea ao desenvolvimento local, regional, nacional, e até continental (no caso da Europa). Mas essa retórica do "DT" também deve muito à evolução paralela dos debates da "economia industrial", da "economia rural" e da "economia regional e urbana". Nos últimos quinze anos houve, nessas três disciplinas, uma forte valorização da escala "local", logo seguida (ou acompanhada) da necessidade óbvia e imperiosa de não isolá-la das escalas superiores que vão até a "global". A retórica do "DT" é certamente melhor que a do "desenvolvimento local", mas ambas estão longe de engendrar uma 'teoria & prática' que venha, de fato, superar as divisões setoriais (primário, secundário e terciário) e também permitir um tratamento integrado da divisão espacial (urbano-rural). Seja como for, uma coisa é certa: nem tudo é urbano.

     

    Jose Eli da Veiga é economista, professor titular do Departamento de Economia & Procam da Universidade de São Paulo (USP).

     

     

    Notas e referências bibliográficas

    1.Conforme tipologia da OCDE baseada na proporção da população regional que vive em localidades rurais, i.é, com menos de 150 hab/km2. 'Essencialmente Rurais' são regiões nas quais mais de 50% das localidades são rurais; 'Relativamente Rurais' são as regiões nas quais entre 15 e 50% das localidades são rurais; 'Essencialmente Urbanas' são as regiões nas quais menos de 15% das localidades são rurais. Ver Territorial indicators of employment. Paris: OECD. 1996

    2. Excelente discussão deste problema está em Georges Bertrand "Pour une histoire écologique de la France rurale". In Georges Duby & Armand Wallon (dir.) Histoire de la France rurale, vol I (Ouverture), pp. 39-118, Paris: Éditions du Seuil. 1975.

    3. Ver sobre este assunto o interessante artigo de André Larceneux "Les nouveaux chantiers de la théorie économique spatiale". In: Bernard Pecqueur (ed.) Dynamiques territoriales et mutations économiques, pp. 137-156, Paris: L'Harmattan, 1996.

    4. Cf. Le partenariat aux États-Unis (Examen de l'OCDE des Politiques Rurales; Territorial Development Service), Paris: OCDE. 1997.

    5. Parafraseando Jean Rostand, vale lembrar que é muito mais fácil se entender com quem fala outra língua do que se entender com quem dá outros sentidos às mesmas palavras....

    6. Esse programa, cuja sigla original era "ILE", passou depois a ser denominado "LEED: Local Economic and Employment Development"

    7. Tradução livre de trechos do parágrafo 11 da "Nota do Secretário Geral" C(93)83, de 29/06/93.

    8. Estas observações resultam de uma leitura do processo verbal da reunião do Conselho, um documento "reservado" da OCDE.

    9. Estes argumentos foram desenvolvidos em José Eli da Veiga em Cidades imaginárias; O Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Editora Autores Associados. 2002. E também em 30 artigos publicados no jornal Valor em 2003.

     

    Bibliografia consultada

    Abramovay, R. O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Editora UFRGS. 2003

    Benko, G. & Lipietz, A. (dir.) Les régions qui gagnent; Districts et réseaux: les nouveaux paradigmes de la géographie économique, Paris: PUF. 1992

    Benko, G. & Lipietz, A. (dir.) La richesse des régions. La nouvelle géographie socio-économique. Paris: PUF. 2000.

    Higgins, B. & Savoie, D. J. Regional development: theories & their application. London: Transaction Publishers. 1997

    Magnaghi, A. "Il patrimonio territoriale: un codice genetico per lo sviluppo locale autosostenibile" In: Alberto Magnaghi (dir.) Il territorio degli abitanti; società locali e autosostenibilità, pp. 3-20. Milão: Dunod. 1998

    Maillat, D. "Milieux innovateurs et dynamique territoriale" in: Alain Rallet & André Torre (coord.) Économie industrielle et économie spatiale, pp. 211-232. Paris: Economica. 1995.

    OECD What future for our countryside? Paris: OCDE. 1993

    OECD Fostering entrepreneurship; The OECD job strategy. Paris: OCDE. 1998

    OECD Cultivating rural amenities; An economic development perspective, (Territorial Development Service), Paris: OCDE. 1999

    Sachs, I. Stratégies de l'éco-développement, Paris: Les Éditions Ouvrières. 1980

    Saraceno, E. "Alternative readings of spatial differentiation: The rural versus the local approach in Italy". European review of agricultural economics, 21, pp. 451-474. 1994

    União Européia (UE) - European spatial development perspective. (First official draft presented at the informal meeting of Ministers responsible for spatial planning of the member states of the European Union). Noordwijk, 09-10/06, (72 p.). 1997