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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.2 São Paulo Apr./June 2004

     

     

    REFORMA URBANA, ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS E ECONOMIA POPULAR: RELAÇÕES DE COMPLEMENTARIDADE

    Marcelo Lopes de Souza

     

    INTRODUÇÃO A análise, a gestão e o planejamento urbano críticos constituem um ambiente de discussão ainda muito pouco unificado. Aquilo que deveria funcionar como um conjunto de vasos comunicantes, ou como um sistema dinâmico de trocas de informação entre profissionais com experiências menos ou mais específicas de atuação, ainda é, em larga medida, na realidade, uma coleção de "nichos" bastante autocentrados.

    Os intelectuais e "planejadores alternativos" que, desde a década de 1980, municiaram tecnicamente e impulsionaram, ao lado de entidades associativas da sociedade civil, o debate e a construção do ideário da reforma urbana, concentraram excessivamente os seus esforços (principalmente na década de 1990) na discussão de instrumentos de planejamento ("solo criado", zoneamentos etc.), negligenciando a análise da dinâmica da própria sociedade civil (por exemplo, a crise do ativismo de bairro em quase todas as cidades, ainda na década de 1980, e, mais tarde, a expansão e os impactos do tráfico de drogas de varejo – duas coisas que viriam a se mostrar empecilhos para a implementação da tão almejada "participação popular" no planejamento). Mais ainda: muito embora Porto Alegre já viesse, desde 1989, edificando com brilho a sua experiência de orçamento participativo (ao que se seguiram várias outras, não tão brilhantes), o assunto dos orçamentos participativos foi, até recentemente, solenemente ignorado, teórica e, mesmo, via de regra, empiricamente, pelos intelectuais ligados à construção do ideário da reforma urbana.

    Os que refletiam sobre as experiências de orçamento participativo em curso, por sua vez, pagavam na mesma moeda. Planos diretores, "novos"/velhos instrumentos de planejamento, Estatuto da Cidade e outros temas que tais não faziam parte do elenco de interesses imediatos e visíveis (e, quiçá, em muitos casos, nem mediatos) dos que se debruçavam sobre o orçamento participativo da capital gaúcha e de outros municípios. Trabalhos foram sendo elaborados, ao longo da década de 1990, especialmente sob inspiração da experiência de Porto Alegre, mas os autores (sociólogos e cientistas políticos, além de alguns administradores municipais) não eram os mesmos que pensavam e escreviam sobre a reforma urbana e os chamados "novos instrumentos" de planejamento urbano.

    Por fim, ambos os grupos – de intelectuais da reforma urbana e de estudiosos de orçamentos participativos – não acompanharam, ou, pelo menos, não estabeleceram conexões visíveis, entre as suas preocupações e as análises que, desde meados dos anos 1990, vêm se multiplicando no Brasil, a propósito da chamada "economia popular", ou seja, dos circuitos econômicos alternativos que se desenvolvem nas bordas do sistema capitalista e que, em termos de curto e médio prazo, podem representar uma melhoria da qualidade de vida da população mais pobre, sendo que, ademais, podem desempenhar um papel político-pedagógico, ao colaborarem para o desenvolvimento de atitudes cooperativas e solidárias na base da sociedade. E, para variar, os estudiosos e entusiastas da economia popular têm, de sua parte, passado ao largo dos temas da reforma urbana e dos orçamentos participativos. Quais as implicações dessa escassez de diálogo entre os vários "nichos temáticos"?

    Para começar, a reprodução da força de trabalho é examinada em termos demasiado estreitos pelos analistas da reforma urbana. Estes buscam modificar a organização espacial de modo a tornar a cidade mais justa, mediante a coibição da especulação imobiliária (e, assim, contribuindo para evitar os "vazios urbanos" e a "urbanização em saltos"), a facilitação do acesso à moradia por parte dos pobres, a priorização de intervenções de saneamento e regularização fundiária em espaços segregados e uma redistribuição dos ônus decorrentes da expansão, do adensamento e dos melhoramentos urbanos, por meio de instrumentos como o "solo criado" e a contribuição de melhoria; entretanto, não examinam, ou o fazem apenas muito marginalmente, a esfera da produção.

     

     

    Por sua vez, pensar a participação popular na gestão orçamentária sem pensar de onde vêm os recursos a serem distribuídos e como a margem de manobra para investimentos pode ser ampliada (para o que uma parte dos instrumentos da reforma urbana muito poderia contribuir) constitui, igualmente, uma limitação das mais sérias. E não menos lamentável é discutir "economia popular (urbana)" sem ver como algumas dessas práticas podem ser, pelo menos em alguns casos, ancoradas em ou apoiadas por políticas públicas universalistas (e não meramente compensatórias, ou deixando os pobres "entregues a si mesmos" em todos os casos), justamente no contexto de uma reforma que se pretende estrutural e profunda como a reforma urbana. Afinal, discutir o emprego e a geração de renda na cidade depreende discutir a própria cidade, isto é, o espaço urbano e o processo de sua produção, assim como aquilo que, na organização espacial e nas próprias formas espaciais, facilita ou dificulta certas estratégias de sobrevivência.

    Pouca eficiência e baixa eficácia no esforço de se conquistar um desenvolvimento urbano autêntico tendem a ser, por fim, e em resumo, as implicações do quadro anteriormente descrito de relativa ignorância recíproca. As causas desse quadro são variadas, incluindo, muito certamente, a divisão do trabalho acadêmico em vigor entre as ciências sociais, com geógrafos, arquitetos, sociólogos e economistas superenfatizando aspectos parciais de um mesmo problema geral. O que importa é que essas causas precisam ser, no mínimo, isoladas e postas sob controle, de maneira a não impedirem o esforço de integração analítica e prática que se faz necessário. O presente trabalho pretende ser uma contribuição para esse esforço de integração analítica e, por tabela, para a tarefa prática da articulação de experiências, redes e canais.

    REPENSANDO A REFORMA URBANA À LUZ DOS ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS O ideário da reforma urbana, especialmente a partir das tentativas de sua operacionalização por meio de planos diretores na década de 1990, assentou-se, principalmente, sobre o seguinte tripé: 1) aplicação de instrumentos tributários (como o IPTU progressivo) que, a par de suas importantíssimas funções e utilidades extrafiscais, variáveis conforme o instrumento, contribuem para gerar recursos adicionais para os cofres do município; 2) utilização dos recursos advindos com a aplicação desses instrumentos para investimentos em áreas de reconhecido interesse social (Zonas de Especial Interesse Social - ZEIS), como favelas e loteamentos irregulares, visando à promoção de moradia popular e intervenções de urbanização e regularização fundiária, sendo essas áreas devidamente identificadas e classificadas por meio de um zoneamento; 3) centralização dos recursos para investimentos em ZEIS por meio de um Fundo de Desenvolvimento Urbano, a ser gerido com transparência e participação popular por um Conselho de Desenvolvimento Urbano.

    Ocorre que um orçamento participativo arrojado, como o de Porto Alegre, onde a totalidade dos investimentos é colocada à disposição da esfera da participação popular, e onde o estilo de participação é o de uma efetiva delegação de poder (1), vai além do ideário da reforma urbana em dois pontos importantes: 1) não se trata mais da renda oriunda do lançamento de certos tributos, mas sim da totalidade dos investimentos, a qual é submetida à lógica da "inversão de prioridades", sobre o fundamento da participação popular; 2) uma delegação de poder ultrapassa o tipo de participação que, muitas vezes, foi preconizado no interior do debate sobre a reforma urbana: enquanto esse fazia referência, com freqüência, a algo corretamente caracterizável como uma parceria, com o Conselho de Desenvolvimento Urbano sendo composto (paritariamente ou não) por integrantes do aparelho de Estado (com direito a voz e voto, subentenda-se) e da sociedade civil, um Conselho de Orçamento Participativo (COP) como o de Porto Alegre é efetivamente deliberativo e, ao mesmo tempo, é composto, na sua essência, apenas por integrantes da sociedade civil, uma vez que os dois técnicos do Estado que nele têm assento estão ali apenas para esclarecer os conselheiros, não tendo direito de voto. Essa maior ousadia não é, ressalve-se, algo intrínseco aos orçamentos participativos, até porque a linha de Porto Alegre, também a esse respeito, figura antes como exceção que como regra, a julgar pelas evidências empíricas colhidas pelo autor do presente texto no decorrer de quatro anos de envolvimento direto com o tema dos orçamentos participativos. O que importa, seja lá como for, é que, na prática, foi um orçamento participativo, aquele de Porto Alegre, que deu o exemplo do que seria uma delegação de poder exitosa.

    Deve ficar claro que a participação popular na elaboração do orçamento público, de qualquer maneira, não "supera", enquanto estratégia de desenvolvimento urbano, a reforma urbana, pela simples razão de que os objetivos desta não são alcançáveis apenas por meio do mecanismo de gestão que é o orçamento participativo, por mais consistente que ele seja. Pensar de outro modo seria incorrer em uma interpretação absurda, porquanto um orçamento participativo nada mais faz que influenciar o padrão das despesas públicas e, muito especialmente, a alocação dos novos investimentos – embora isso esteja longe de ser pouco... Por si só, um orçamento participativo não possui a capacidade de alterar os padrões de uso do solo, sem que existam instrumentos de planejamento e marcos legais específicos para balizar as intervenções do poder público e regular as ações dos vários agentes modeladores do espaço urbano envolvidos. Os diversos instrumentos (tributários, de regularização fundiária, zoneamentos etc.) preconizados pelo ideário da reforma urbana, se são imprescindíveis e insubstituíveis, podem ser, contudo, mais arrojadamente complementados por um orçamento participativo que por um simples fundo específico. Um tal fundo, se chegar a ser instituído, só deveria sê-lo no interior de uma institucionalidade mais ampla, e no contexto maior de um orçamento participativo. No que se refere à distribuição espacial e setorial dos investimentos públicos, é evidente que um orçamento participativo no qual, de fato, a instância participativa delibere sobre a totalidade dos investimentos, vai muito além na tarefa de mudar a cidade para melhor, tornando-a mais justa, que um fundo alimentado com recursos, eventualmente, bastante restritos.

    AGORA, O CAMINHO INVERSO: A IMPORTÂNCIA DA REFORMA URBANA PARA OS ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS Obviamente, só é possível distribuir aquilo que se tem... Contudo, por mais evidente que isso seja, vale a pena sublinhar, pois muitos parecem subestimar a importância dessa verdade tão acaciana. Para não subestimar o assunto, há que se pensar em como fazer para melhorar as finanças municipais, aumentando a margem de manobra para investimentos. E, nesse ponto, os instrumentos tributários preconizados pelo ideário da reforma urbana podem ser de enorme valia. Aliás, não só eles, mas também algumas medidas tecnicamente mais simples de gestão, embora gerencialmente um pouco trabalhosas (por esbarrarem em obstáculos que vão de entraves burocráticos ao despreparo ou a vícios dos quadros técnicos) e politicamente antipáticas junto a certos interesses estabelecidos, como uma atualização regular do cadastro imobiliário e da planta de valores, permitindo um lançamento otimizado e mais justo do IPTU.

    Abram-se, agora, parênteses para admitir: é bem verdade que a capacidade de investimento das municipalidades não deve ser encarada como sendo algo dependente, exclusivamente, de iniciativas locais. Em que pese o fato de que, no Brasil, especialmente em comparação com outros países do "Terceiro Mundo", a fatia do bolo tributário que cabe aos municípios está longe de ser inexpressiva (os municípios arrecadam dois impostos muito importantes, o ISS e o IPTU, além do ITBI, e a participação dos municípios no bolo tributário nacional está em torno de 16%, em contraste com percentuais bem menores em países com sistema não-federativo), ela poderia e deveria ser bem maior. Sem embargo, o discurso, para muitos tão sedutor, e que se torna crescentemente hegemônico, de que os Estados nacionais "são pequenos demais para controlarem e dirigirem os fluxos globais de poder, riqueza e tecnologia do novo sistema [global], e grandes demais para representarem a pluralidade de interesses sociais e identidades culturais da sociedade, assim perdendo legitimidade tanto enquanto instituições representativas como enquanto organizações eficientes", e que o que conta é, portanto, fortalecer a competitividade de cada local e as redes de governos locais e regionais, "de modo a negociar construtivamente com as empresas visando a alcançar acordos de mútuo interesse" (2), deve ser recusada, por seu simplismo de raiz ideológica. Não é o caso, absolutamente, do ponto de vista do autor do presente texto, de ser contra a descentralização – na medida em que ela, de fato, favorece a participação popular no governo e a introdução de elementos de democracia direta –, muito menos de cultivar um apego nacionalista ao Estado em escala nacional. Mas é, sim, o caso de exigir que se qualifique muito bem a descentralização desejada, não se fazendo abstração do contexto espacial e temporal em que ela se dá. Em um país semiperiférico econômico-socialmente tão incrivelmente heterogêneo como o Brasil, e onde a vida política da maioria dos municípios se apresenta dominada por elites clientelistas e, não raro, coronelistas, há uma enorme quantidade de desafios cruciais a serem vencidos com apoio nas margens de manobra políticas, econômicas e legais atinentes a escalas supralocais. O necessário fortalecimento econômico do nível local, base de seu fortalecimento político, não se deve fazer às custas de um comprometimento excessivo da capacidade não apenas regulatória, mas também de investimento dos níveis de governo supralocais, a qual deve ser preservada na justa medida em que pode servir para que se evite uma excessiva e prematura pulverização dos esforços e investimentos. Repita-se e enfatize-se: isso não tem coisa alguma a ver com um elogio disfarçado do centralismo. A esse respeito sente-se o autor a cavaleiro, uma vez que um certo tipo de descentralização político-territorial, no contexto de uma visão crítica do capitalismo e da democracia representativa, tem sido, há muitos anos, um dos pilares do enfoque da mudança sócio-espacial positiva (ou do desenvolvimento sócio-espacial) por ele esposado. Apenas deseja-se evitar uma interpretação localista ingênua, potencialmente nefasta, a qual, dependendo das circunstâncias, pode ser muito funcional para os interesses de elites locais tradicionais e, especialmente se acompanhada de um enfraquecimento indiscriminado e prematuro do nível de governo nacional, também bastante funcional para os interesses do capital transnacional, ao mesmo tempo em que não se traduzirá em benefícios claros para a maioria da população do país.

    Não há, portanto, qualquer boa desculpa para que não se aproveite ao máximo a margem de manobra existente na escala municipal, maximizando-se a arrecadação dos tributos atualmente disponíveis.

    A Fundação IBGE informou, recentemente, que, em 1999, do total de municípios brasileiros (5.506, na época), 15 não possuíam plano diretor. Mesmo considerando que, de acordo com o que prevê o Art. 182 da Constituição Federal, somente para os municípios com mais de 20.000 habitantes é obrigatório o plano diretor, o fato é que, em 1999, apenas 20,6% dos municípios da faixa populacional entre 20 e 50 mil habitantes apresentavam o referido plano; na faixa dos municípios entre 50 e 100 mil habitantes, menos da metade (48,7%) o possuía; na faixa entre 100 e 200 mil habitantes, 61,3% o possuíam; na principal faixa que abrange as cidades médias, a faixa entre 200 e 500 mil habitantes, 85,3% o possuíam; na faixa entre 500 mil e um milhão de habitantes, 93,3% o possuíam; e, por fim, na faixa dos municípios com mais de um milhão, 100% o possuíam (3). Ainda que esses dados, em si já delineadores de um panorama bastante ruim, sejam fidedignos, eles nada informam, evidentemente, sobre a qualidade do plano ou a sua atualização, ou mesmo sobre a sua implementação ou não. Isso tudo significa que, ainda que a recente aprovação (em 2001) da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano, o Estatuto da Cidade (4), tenha vindo representar um avanço em matéria de oferecimento de respaldo jurídico para a implementação de vários dos instrumentos preconizados pelo ideário da reforma urbana, o quadro geral é um pouco desolador, uma vez que cabe ao plano diretor a tarefa de balizar a implementação, em cada município, do que prevêem a Constituição e o próprio Estatuto da Cidade em matéria de política urbana.

    Um outro ponto de suma importância, afora aquele da arrecadação, diz respeito ao fato de que os investimentos a serem feitos sob a égide do orçamento participativo não podem desprezar certos condicionantes (exemplos: o alto risco ou a necessidade de proteção ambiental de certas áreas, os gargalos tendenciais em matéria de circulação de passageiros em face da malha viária e do sistema de transporte existentes, a saturação infra-estrutural em certas áreas). A existência de "critérios técnicos" sensatos e a introdução de "plenárias temáticas", como bem ilustra a experiência de Porto Alegre, são insuficientes: a integração forte da gestão orçamentária participativa com o planejamento urbano (participativo!), a começar com a integração entre o processo orçamentário e a implementação do que prevê o plano diretor, é condição sine qua non para evitar ineficiência (duplicação de esforços, atritos...) e ineficácia. Por isso o autor deste texto propôs, em trabalho anterior, um único conselho participativo a cuidar da gestão orçamentária e do planejamento da cidade (1), em vez de dois conselhos separados. No fundo, nem mesmo em Porto Alegre esse problema foi adequadamente solucionado. Além disso, o quadro de fragilidade, quantitativa e qualitativamente, acima esboçado, que cerca a implementação de planos diretores no Brasil, também aqui, logicamente, atua como um empecilho.

    E ENTRA EM CENA A "ECONOMIA POPULAR"! A economia popular urbana compreende as atividades geradoras de renda e emprego direta ou indiretamente vinculadas às entidades que vêm sendo designadas de organizações econômicas populares (OEPs), as quais vão de cooperativas de produtores até "bancos populares", ofertadores de microcréditos. Qual seria o alcance disso? Seria a economia popular urbana apenas um paliativo irrelevante, como pensam alguns críticos? E qual seria ou deveria ser o papel do Estado?

    Não parece ao autor deste texto que as organizações econômicas populares devam ser entendidas como meros paliativos, capazes de, simplesmente, proporcionar um pequeno alívio diante de um quadro de desemprego aberto e disfarçado verdadeiramente alarmante, na esteira da "reestruturação produtiva". Elas podem conter uma dimensão político-pedagógica importante, ao contribuírem para a construção de atitudes mais cooperativas e novas formas de sociabilidade em escala (micro) local (favela, bairro "comum"). Por outro lado, seria ingenuidade, aí sim, imaginar que, apenas a partir desse tipo de iniciativa, se irá imprensar a economia capitalista contra a parede, ou colocá-la em xeque. A economia popular se desenvolve intersticialmente, ou nas bordas do sistema, alimentando-se da crise e sendo uma resposta emergencial a ela (ainda que possa lançar sementes mais duradouras). Sua importância material imediata pode ser grande, conquanto não vá, por si só, neutralizar os efeitos nocivos do sistema capitalista; sua importância sociocultural e político-pedagógica é, em grande parte, ainda mais uma potencialidade que uma realidade. No entanto, sua relevância e seu alcance podem ser grandemente aumentados se certas iniciativas, como bancos populares e cooperativas, puderem contar com o apoio estatal (acesso a fundos públicos, esquemas de capacitação técnica etc.). Não se defende que o Estado deva se fazer presente sempre, apoiando ou ajudando a organizar, independentemente do tipo de atividade; na verdade, dentro de uma perspectiva de delegação de poder, como é aquela que deve presidir um orçamento participativo realmente consistente, também aqui os governos locais com nítida base popular e compromisso genuíno com a democratização do planejamento e da gestão da cidade devem resistir à tentação de imporem a sua presença, tentação essa que é a ante-sala da cooptação e da manipulação da sociedade civil pelo Estado. Não obstante, o Estado pode e deve ajudar, em algumas situações. Esse tipo de cooperação deve ficar explicitado e pode ser ancorado, justamente, no âmbito de programas de reforma urbana. Antes de se passar à análise de como isso pode ser feito, alguns comentários introdutórios se fazem, porém, convenientes.

    Sem melhorar o padrão de vida dos pobres urbanos, livrando-os da pobreza absoluta e tornando-os menos pobres em termos relativos mediante uma elevação de sua renda, melhorias em matéria de qualidade de vida podem se revelar ilusórias, por terem vida curta. Que não se esqueça: uma reforma urbana, mesmo carregando um potencial "revolucionário" no longo prazo (sua importância político-pedagógica, seus efeitos multiplicadores e seu potencial de permitir um acúmulo de forças entre a classe trabalhadora), é, enquanto uma reforma estrutural a ter sua implementação iniciada aqui e agora, uma transformação operando (ainda que com atritos e um pouco contraditoriamente), nos marcos mais gerais de uma sociedade que segue sendo capitalista. E a valorização do espaço em uma economia capitalista não se faz sem que isso represente diferentes tipos de ônus para os seus beneficiários: ônus de tributos, decorrentes da regularização fundiária (embora o Estado possa, aqui, estabelecer regras especiais de isenção, total ou parcial, permanente ou temporária) e da própria valorização mercadológica do solo urbano que sofreu melhorias. Se a renda da população-alvo beneficiada por intervenções de urbanização e regularização não se alterar, o resultado tenderá a ser uma "expulsão branca", com o efeito perverso de valorizar o espaço sem melhorar a vida dos ocupantes originais, que apenas irão reproduzir seu espaço de pobreza e segregação em outro local, mais distante (se bem que, para a população de classe média ou elite do entorno da área "beneficiada", o efeito "colateral" de valorização do espaço e "limpeza étnica" seja muito bem-vindo, simbólica e economicamente, devido à valorização imobiliária também do entorno...).

    Portanto, faz-se mister pensar o que se pode fazer em matéria de geração de emprego e renda. Enquanto a redistribuição de patrimônio (terra) adquire uma evidente centralidade no caso da reforma agrária, patrimônio esse a ser, enquanto meio de produção, a fonte de subsistência principal ou única dos beneficiários, o mesmo não se aplica à reforma urbana. Em primeiro lugar, a redistribuição de patrimônio não adquire a mesma centralidade: desapropriações devem ocorrer, seja como resultado de punição à atividade reconhecidamente especulativa (uma vez aplicados os instrumentos da notificação de edificação ou parcelamento compulsório e do IPTU progressivo no tempo, e uma vez eles não tendo surtido efeito), seja como decorrência da aplicação do usucapião (individual ou coletivo); no entanto, as terras públicas não são passíveis de desapropriação (nelas se aplica à concessão de direito real de uso), o que significa que a meta de "segurança jurídica" para os moradores de favelas nem sempre se dará na esteira de uma redistribuição de propriedade imobiliária, a rigor, mas apenas de regularização da posse. Além disso, os moradores de loteamentos irregulares já são proprietários; não são ocupantes, mas indivíduos que compraram seus lotes em loteamentos que, no entanto, demandam urbanização e regularização definitiva. Por último, a reforma urbana implica e abrange várias outras medidas, voltadas para o provimento de moradia popular, o ordenamento mais inteligente e justo do espaço urbano e a proteção do patrimônio ambiental, que não têm relação direta com a questão da propriedade imobiliária urbana.

    No urbano, mesmo em cidades efetivamente marcadas pela informalidade não só da ocupação do espaço, mas das próprias estratégias de subsistência econômica da população (produção doméstica de diversos produtos de consumo popular, comércio funcionando num anexo da casa etc. etc.), o solo, como meio de produção, tenderá a ter importância exclusiva apenas para o capitalista, proprietário de solo que funciona, exclusivamente, como meio de produção (fábricas, comércio e serviços formais). Seria um erro palmar subestimar a diversidade de quadros de existência e estratégias de sobrevivência que caracteriza a pobreza urbana em uma grande cidade brasileira, mas pode-se admitir que, para uma enorme parcela dos pobres urbanos, a importância do local de moradia como suporte para a auferição de renda adicional (ou seja, complementar à renda do trabalho assalariado realizado em outro local e com os meios de produção de propriedade de outrem) será relativamente pequena (ainda que importante para a renda familiar ou domiciliar). E, em muitíssimos casos, a família pode mesmo não recorrer, em absoluto, a tal expediente, sendo a renda agregada derivada da combinação de trabalho formal e trabalho informal não-doméstico.

    Todas essas peculiaridades da reforma urbana, em contraste com a sua irmã mais velha e conhecida, a reforma agrária, não significam nem que ela é menos importante, nem que estratégias de geração de emprego e renda não devam ser pensadas no seu interior ou articuladas com ela – inclusive considerando-se possíveis usos dos espaços de moradia, seja na escala da própria habitação, seja na escala do habitat, isto é, do assentamento ou do entorno da habitação, da vizinhança. Além dos espaços de moradia, não se deve esquecer que, para uma grande parcela dos pobres urbanos, os quais sobrevivem de atividades informais desenvolvidas na rua, em espaços públicos, o solo urbano não deixa de ser um meio de produção, ainda que de modo precário e juridicamente irregular (comércio informal ambulante, por exemplo). Dentro do amplo espectro da economia popular urbana, várias atividades importantes sob o ângulo da geração de renda podem e devem ser impulsionadas ou, pelo menos, apoiadas pelo Estado, da formação de cooperativas de produtores até programas de capacitação profissional. A organização e regularização do comércio ambulante também devem ser objeto da atenção de administradores e planejadores. Em outros casos, contudo, o melhor que o Estado deve fazer é não se intrometer; não interferir demais em certas iniciativas da sociedade civil é, já, uma forma de ajudar.

     

     

    Por fim, também os orçamentos participativos podem ter importância para o aquecimento da economia popular. Considere-se, primeiramente, um fato banal: uma mesma taxa de crescimento de uma economia (nacional, regional ou local, pouco importa) de, por exemplo, 5% ao ano (o que é uma boa taxa, de um ponto de vista capitalista), pode ter por trás de si coisas muitíssimo diferentes sob o ângulo das tecnologias empregadas, dos produtos e serviços gerados e dos empregos criados. Se as obras, ditas estruturantes (como viadutos ou pontes), costumam ser dependentes de tecnologia mais sofisticada, as obras mais localizadas aprovadas no âmbito de um orçamento participativo, envolvendo a satisfação de necessidades básicas em escala microlocal, podem e devem ser realizadas priorizando-se as formas mais eficazes no que concerne à geração de renda e emprego para a população mais pobre. É interessante notar, aliás, que a construção civil, basicamente dependente de insumos nacionais e onde o fator trabalho é muito importante, inclusive em matéria de mão-de-obra pouco ou semiqualificada, tem um alcance social muito grande: por um lado, por seu potencial de geração de empregos ser bastante grande e, ao mesmo, tempo, por poder ter um papel, via investimentos estatais, especialmente nos marcos de um orçamento participativo, na satisfação das necessidades materiais básicas dos pobres urbanos: obras de saneamento básico, urbanização de favelas e construção de moradias populares são os exemplos mais evidentes.

    CONCLUSÃO Foram sumariamente apresentadas neste texto três estratégias de desenvolvimento urbano, com o fito de se refletir sobre as suas relações de complementaridade. Pensar essas coisas conjuntamente é um desafio dos mais importantes e dos mais urgentes.

    Vive-se em um mundo onde a globalização econômico-financeira e a mundialização de (certos) padrões culturais convivem não com uma insignificância da escala local, mas, sim, com uma revalorização do local e de suas particularidades. Isso não é gratuito, nem tem, por trás, um processo idílico: na verdade, os global players por excelência, que são as grandes corporações transnacionais, ao mesmo tempo em que buscam maior facilidade de trânsito em escala planetária (e, por isso mesmo, questionam a legitimidade regulatória dos Estados nacionais, a não ser quando lhes convém, como no que se refere à garantia contra a quebra de contratos), valorizam as especificidades locacionais dos pequenos espaços, inclusive induzindo-os a uma competição cada vez mais selvagem entre si (discurso da competitividade, prática cada vez mais sofisticada do city marketing e busca desesperada pela atração de investimentos, chegando mesmo à "guerra fiscal"). Em que pese esse lado perverso da valorização do nível local, há, também, uma outra possibilidade, que é a de explorar a margem de manobra econômica, política e cultural oferecida pela escala local para se obter avanços rumo a um genuíno desenvolvimento sócio-espacial. A margem de manobra local não deve ser exagerada, mas seria grave erro subestimá-la (1) .

    As três estratégias de desenvolvimento urbano apresentadas neste texto – reforma urbana, orçamentos participativos e economia popular – têm sido, via de regra, pensadas de modo muito pouco articulado entre si. Na medida, porém, em que o desenvolvimento sócio-espacial depreende uma transformação em diferentes esferas e níveis – produção, consumo, reprodução da força de trabalho, política, cultura... –, a integração dessas estratégias, tanto teórica quanto prática, se afigura imprescindível. Cada uma ao seu modo, e as três em conjunto, elas prometem oferecer a possibilidade não só de se aproveitar ao máximo a margem de manobra local em matéria de desenvolvimento sócio-espacial aqui e agora, mas, também, plantar sementes importantes para o futuro, por seu potencial político-pedagógico. Não substituem estratégias e medidas atinentes a escalas supralocais, evidentemente; tampouco conseguirão, jamais, compensar inteiramente ou neutralizar os fatores negativos que operam nas escalas internacional e nacional. Mas podem, de diferentes maneiras, ser uma extraordinária contribuição para o esforço de mudança positiva de nossas cidades.

     

    Marcelo Lopes de Souza é professor do Departamento de Geografia da UFRJ, onde coordena o Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (Nuped); é pesquisador do CNPq e trabalha com análise, gestão e planejamento urbanos.

     

     

    Notas e referências bibliográficas

    * O presente texto consiste em uma versão reduzida e modificada daquele que, sob o título "Reforma urbana, orçamentos participativos e economia popular: buscando sinergias para o desenvolvimento sócio-espacial", encontra-se no CD-Rom que contém os anais do X Encontro Nacional da Anpur (Belo Horizonte, 2003).

    1. Souza, M. L. Mudar a cidade. Uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001

    2. Borja, J. et al. Local & Global. Management of Cities in the Information Age. Londres: Habitat e Earthscan. 1996

    3. IBGE. Perfil dos municípios brasileiros. Pesquisa de informações básicas municipais 1999. Rio de Janeiro: IBGE. 2001

    4. Brasil. Lei nº10.257, de 10/07/2001 (Estatuto da Cidade). Brasília: Diário Oficial da União, Seção I (Atos do Poder Legislativo). Edição n.º 133 de 11/07/2001.