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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.2 São Paulo abr./jun. 2004

     

     

    Cinema brasileiro

    INCENTIVO FISCAL E BUSCA DA IDENTIDADE NACIONAL NA RETOMADA

     

    Os filmes nacionais, desde o início da década de 1990, têm conquistado um espaço cada vez maior no mercado cinematográfico brasileiro, e segundo a empresa FilmeB, especializada no ramo, três títulos ficaram entre os dez mais assistidos em 2003: Carandiru, Lisbela e o prisioneiro e Os normais. Dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine) mostram que os filmes brasileiros saltaram de 0,05% do total de bilheteria no país em 1992, para 8% em 2002. E até novembro do ano passado, os títulos nacionais já haviam sido vistos por mais de 21 milhões de espectadores, superando em 20% a estimativa da Ancine para 2003.

    A pesquisadora Tânia Pellegrini, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em seu estudo sobre o cinema brasileiro dos anos 1990, vincula o ciclo da retomada dos filmes nacionais a mecanismos governamentais de incentivo, como a Lei Rouanet, de 1991, que permite às empresas patrocinadoras de cultura abater até 5% no Imposto de Renda, e a Lei do Audiovisual, que garante desconto fiscal de 3% para pessoas jurídicas e de 5% para pessoas físicas que comprarem cotas de filmes em produção.

    A pesquisadora considera, ainda, as parcerias adotadas no Brasil entre produtoras de cinema e redes de televisão, uma fórmula de sucesso como já ocorre nos Estados Unidos e na Alemanha. Um exemplo desse modelo deu-se em 1999, com a produtora de Lucy e Luís Carlos Barreto e a Rede Globo, na produção do filme Bossa Nova, dirigido por Bruno Barreto. Com sua esposa Amy Irving no elenco e uma trilha sonora com músicas de Tom Jobim cantadas em português e inglês, Bossa Nova arrecadou, no primeiro semestre daquele ano, cerca de US$ 1,5 milhão, apenas nos Estados Unidos; no Brasil rendeu acima de R$ 3 milhões em 15 semanas em cartaz. Além desse filme, três grandes sucessos do diretor Guel Arraes saíram primeiro na televisão para depois conquistar o público no cinema: O auto da compadecida, de 1999, Caramuru – a invenção do Brasil, de 2001, e Lisbela e o prisioneiro, de 2003.

    Nessa fase de retomada, porém, é a busca da identidade nacional que se constitui na principal característica apontada por Tânia em sua pesquisa. Um grande número de filmes inspira-se no passado distante ou recente, gerando uma produção ficcional brasileira que busca fazer um "retrato" do país. Ela exemplifica essa tendência com o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, a princesa do Brasil, que conta história da vinda da família imperial para o Brasil, em 1808, e que atingiu cerca de 1 milhão de espectadores em 1996; O quatrilho, de Fábio Barreto que, no mesmo ano, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e trata da imigração italiana no sul do país; a adaptação de Os sertões, de Euclides da Cunha, por Sérgio Rezende no filme Guerra de Canudos, de 1997, que custou US$ 6 milhões, até então o maior orçamento da história do cinema nacional; e O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto, livre adaptação do livro homônimo de Fernando Gabeira, sobre o seqüestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, em 1969, produção também indicada para o Oscar em 1998.

    A questão da identidade está presente não apenas em produções de temática histórica, mas também em filmes como Eu, tu, eles, de Andrucha Waddington, e Abril despedaçado e Central do Brasil, ambos de Walter Salles. Este último mostra "um Brasil pobre, primitivo e terrivelmente real, que há tempos andava longe das telas, como se tivesse deixado de existir", analisa Tânia. A pesquisadora traça um paralelo da nova onda de produção brasileira com o Cinema Novo dos anos 1960, — que tem nos filmes Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Terra em transe, de Glauber Rocha, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade os seus marcos. "No filme de Walter Salles, são os mesmos excluídos que o Cinema Novo resgatou do anonimato, só que em Central do Brasil não existe a retórica da denúncia, apenas a da (re)descoberta; não existe uma lição revolucionária, mas a da possibilidade da aprendizagem de olhar o país com outros olhos".

    Produções recentes, como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, indicado em quatro categorias para o Oscar deste ano, e Carandiru, de Hector Babenco, visto por mais de 4,5 milhões de espectadores em 2003, apesar da temática da denúncia social, não têm o caráter revolucionário do Cinema Novo. "Em Carandiru e Cidade de Deus existe, sim, uma retórica da denúncia, mas sem os pressupostos político-ideológicos do Cinema Novo. Isso faz uma grande diferença. É a diferença entre a simples 'constatação' de que existe um terrível submundo paralelo ao das classes médias, numa espécie de 'exotismo' palatável, servindo de tema para um cinema industrial, e a antiga 'contestação' revolucionária de exibir os excluídos como tema, mas em filmes fora do sistema industrial", argumenta.

    O cineasta Cacá Diegues, que fez parte da geração dos anos 1960 e que acaba de emplacar um sucesso de bilheteria em 2003 com Deus é brasileiro, também reflete sobre o tema e a nova geração de cineastas do ciclo da retomada, no diário que escreveu sobre a realização desse filme e que o transformou em livro. "Os objetivos do Cinema Novo e de minha geração eram muito simples e apenas três: mudar a história do cinema, a do Brasil e a do mundo. Por trás dessa megalomania, estava uma coragem saudável, uma febre ardente de fazer, uma disposição para todas as experiências. Não sei dizer se o Cinema Novo inventou um cinema para o país ou um país no cinema. Só sei que foi uma bela utopia cinematográfica, que envolvia moral, política e estética", diz o cineasta.

    Deus é brasileiro, 15º filme de Diegues, foi visto por mais de 1,6 milhões de espectadores no período em que ficou em cartaz. Diegues vê com entusiasmo a nova geração de cineastas brasileiros e lamenta que o cinema nacional tenha que passar por tantas "retomadas". "Um cinema nacional capaz de produzir filmes com Eu, tu, eles não pode viver de sustos, nem no acanhamento de penetra na festa dos outros, em nosso próprio mercado. É preciso que ele se torne uma atividade permanente, sem as crises que levam aos desaparecimentos periódicos. Não é possível que se desperdice impunemente tanto talento, capaz de atravessar décadas e gerações, se renovando sempre", conclui Diegues.

     

    Rodrigo Cunha