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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.2 São Paulo abr./jun. 2004

     

     

    LUIGI AUGUSTO DE OLIVEIRA

     

    VELÓRIO

     

    Veio, olhou-nos as caras como quem nem queria pensar em ter vindo. Discreto ouvimo-lhe o ganido. E assistimos ao rabo circular o vento.

    No bojo do silêncio cada conforto, um a um, era entregue à digestão – lento, lento. Alguém não agüentou mais, disse, olhos baixos, verdade seja dita, meus caros, não o conhecemos mais que a esse vira-pulgas que o acompanhava. As palavras planavam desconjuntadas, como se a frase, qual lagartixa incomodada com o peso de rabos excessivos, as fosse deixando cair uma a uma. Foi uma distração acodir-me uma lembrança de Drummond: Lento, conhecer; obscuro, ter conhecido.

    Mas alguém – outro – então ecoou tardio: que muito provável que cadelas cidade afora o houvessem conhecido melhor que qualquer de nós ali, que o chorávamos ressecados.

    Foi uma indignação muda, como podia, meu deus do céu – se ali mesmo, ao quarto contíguo à sala, enviuvava a viúva –, dizer aquilo, em voz tão clara no meio da reserva quieta de silêncio que a noite a custo preservava?

    O agudo enregelante do lamento – único e agoniado – enfim nos tirou alguns da letargia. Corremos eu, amigo de tão velha infância do velado, e mais o cunhado dele, e enquanto um afastava os de curiosidade mais empedernida, o outro ia forçando a porta com o ombro; revezávamos.

    Mas ela já ali não estava, nem chorando ao toalete, nem enforcada ou envenenada no desmedido armário do quarto do casal.

    No espelho tão vetusto quanto o armário, notei, num relance muito breve – mas suficiente a quem conhecesse o habitat –, a ausência do par preferido de sapatos de boate, e de um certo fisgante vestido vermelho... e, como numa arrebentação antiga na areia da memória, desvelo macio as sedas nas calcinhas.

     

     

    Luigi Augusto Oliveira, natural de Areado, MG, é servidor público em São Paulo. Autor da novela Dalma, na rede (Cone Sul, 1997; esgotada; Prêmio Festival Universitário, da revista Livro Aberto e Xerox), do romance Solo para ti (Lemos, 2001; Prêmio Redescoberta da Literatura, da revista Cult), da novela-dueto Alice à Passarinho (inédita; versão para teatro pelo Grupo Fúria, Cuiabá, 2000, intitulada "Pintando Alice") e do volume de poesia Crucial e vão (inédito, Prêmio Cidade de Belo Horizonte, 2002).