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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.3 São Paulo jul./sep. 2004

     

     

     

    RESENHA

    Rio Amazonas: tesouro descoberto

     

    A leitura das 1.219 páginas da obra de Padre João Daniel - Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas – volumes I e II – leva-nos a uma verdadeira viagem que, apesar de ter sido escrita há tanto tempo, nos remete aos mais atuais problemas e características da região amazônica. Os dois volumes da obra trazem descrições, notícias e conceitos que muito se aproximam aos dos dias atuais. Como se tivesse sido redigida em pleno século XXI, a obra de Padre João Daniel revela, antes de qualquer coisa, o humanismo, a inteligência e a sensibilidade desse jesuíta, cronista da Companhia de Jesus, que viveu na região amazônica entre 1741 e 1757, quando foi preso por ordem do Marquês de Pombal. Nos 18 anos em que viveu na prisão – seus últimos anos de vida – escreveu seus manuscritos de 766 páginas. As cinco primeiras partes estão depositadas nos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, desde 1808, quando D. João VI as trouxe juntamente com outras obras que quis salvaguardar do exército de Napoleão Bonaparte que avançava pela Europa ameaçando a soberania do reino português. A sexta parte, descoberta posteriormente, está depositada em Évora, mas no Brasil há uma cópia em microfilme.

    O texto é rico e cheio de detalhes, tornando a leitura extremamente interessante. A visão do autor é apaixonante e, por tratar-se de obra redigida no século XVIII, é entremeada de uma visão mística que, traz ao leitor mais cético e ao próprio cientista, técnico por obra do próprio ofício, um fascínio que impede a interrupção da leitura. Inclusa nessa visão mística do padre, que viveu desde os 19 anos na Amazônia, está uma precisão e riqueza de detalhes sobre a história do descobrimento da região, das grandes navegações em busca de riquezas e cidades "fabricadas em ouro" como "Manoa" que, dizia-se, ter atraído grandes expedições, a principal delas, liderada por Gonçalo Pizarro,...com numerosa tropa de soldados e equipados com 900 índios..." em uma esquadra de embarcações que viria a fracassar por nunca encontrar a famosa cidade de grande riqueza. Padre João Daniel explica, com sua fantástica escrita, que foi por meio dessas navegações que se pôde conhecer melhor o 'Máximo Rio Amazonas', ao qual tratou como um ente detentor de personalidade, dando-lhe vida ao descrever sua geografia e características. De capítulos curtos, os dois volumes seguem intercalando a história do descobrimento do maior rio do mundo com a opinião do autor que conta com detalhes a história, ou lendas que sejam, sobre o nome Amazonas dado às índias guerreiras pelos espanhóis, por "serem em tudo semelhantes às antigas amazonas de que fala Virgílio..." e por ousarem disputar a navegação da tropa de Pizarro, "pelas alturas do rio Trombetas... jogando com destreza os seus arcos, e flechas, e pelejando com ânimo varonil..." .

     

     

    POROROCA Impressiona a paixão e a memória com a qual descreve os principais rios que o Amazonas recebe, tanto ao norte como ao sul, sem deixar de descrever suas principais características físicas. Ao descrever o fenômeno da pororoca traz ao leitor sua sensação ao presenciá-la: "... medonha, horrenda, e exorbitante alteração das águas..." que "... compõe-se de um conglobado de águas tão encrespadas, bravas, e tão horrorosas ondas, que fazendo, e desfazendo em pedaços quantas embarcações apanham, parece que querem aterrar, e fazer guerra aos mesmos elementos...". Para o leitor leigo, o fascínio está no modo da escrita e nas curiosidades que o livro traz sobre a Amazônia que, por mais antigas que sejam e recheadas das crenças da época, são verdadeiras no que se refere à descrição geográfica e aos processos e características naturais. Entretanto, a maior jóia da obra reside na descrição que faz sobre as características dos povos da terra e sua cultura, chamados pelo padre, os "naturais", e dos animais e suas características, revelando nele o dom do historiador natural.

    PEIXES-ANFÍBIOS A impressionante descrição do que denominou "peixes anfíbios" incluiu todos os animais que dependem, de alguma maneira, da água, para viver, mas respiram ar. Não lhe escapa a biodiversidade, que descreve em detalhes nas variedades de formas, tamanhos, cores e hábitos, detalhes esses que não escapariam ao biólogo moderno. É motivo para destaque a descrição do mutualismo entre o jacaré-açú e uma espécie de pássaro: "Como o seu sustento são ordinariamente carnes, cujas sobras se lhes metem por entre os dentes, têm também seu palito para os esgravatar e limpar. É este palito um passarinho, que metendo-se-lhe na boca, quando a tem aberta com o bico lhos esgaravata, e limpa, servindo-lhe estas lavaduras de sustento, e como seu pajem o acompanha sempre, já dentro na boca, e já na cabeça. Quando o jacaré quer fechar a boca, para o comer, depois de ter os dentes aliviados, dizem que o passarinho o fere com uma espinha, que tem nas costas, e o constrange a abri-la, por cuja razão a avezinha sem susto, nem medo entra, e sai quando quer pela bocarra do bruto, como quem entra por sua casa..."

    É óbvia a preocupação do autor, um naturalista nato, com a defesa e sustentabilidade do ambiente amazônico. Por isso nos encantou a atualidade da obra, mostrando sua preocupação para que continuasse havendo abundância de pescado nos rios e lagos da região. A descrição do uso do timbó na pesca e do despejo do bagaço da cana de açúcar pelos senhores de engenho já mostrava a existência de práticas indesejáveis por parte do homem; preocupações que persistem ainda hoje por razões óbvias.

    Imperdível, também, a apresentação do historiador Vicente Salles. Ele assinala os pontos máximos que a obra nos oferece e, paralelamente, nos brinda com uma aula de história, na qual descreve as causas da prisão de João Daniel e o porquê da decisão da Coroa em organizar o poder do Estado na rica região amazônica.

    Não poderíamos terminar este texto sem fazer uma referência ao título "Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas" que, em nada nos causa estranheza, pela riqueza natural e imensidão do rio, que abriga a maior bacia hidrográfica do mundo. A palavra máximo, descrita no dicionário Novo Aurélio, como – maior que todos, que está acima de todos; absoluto, rigoroso, estrito, entre outras qualificações – está explicada logo no início de maneira singular. Deixamos as próprias palavras de Padre João Daniel:

    "É sem dúvida o Amazonas o máximo dos rios, sem injúria dos Nilos, Núbias e Zaires da África, dos Eufrates, Ganges e Indos da Ásia, dos Danúbios e Ródanos da Europa, dos Pratas, Orinocos e Mississipis da mesma América, em cujo meio ou centro o Amazonas se [ilegível] gigante, chamado com razão pelos naturais mar branco, paraná petinga. E se Júlio César prometia ceder o império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas, em cuja comparação aquele se avaliaria pigmeu, ou pequeno regato, e envergonhado, por não poder correr parelhas com este, fugiria a esconder-se na sua pequena mãe?".

     

    Vera de Almeida e Val e Adalberto Val são pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)