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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.3 São Paulo July/Sept. 2004

     

     

    CLONAGEM – O QUE APRENDEMOS COM DOLLY?

    Tatiana Jazedje da Costa Silva

     

    Uma cópia geneticamente idêntica – definição muito simplista para um tema com muitas interpretações – a clonagem ainda é motivo de alarme. A palavra, por si só, nos traz imediatamente à cabeça a imagem de uma ovelha – Dolly – e de um personagem de uma novela recentemente exibida, supostamente clonado. Provavelmente pelo impacto emocional que nos causa, a clonagem reprodutiva, cuja finalidade é formar seres geneticamente idênticos, é a mais marcante em nossa memória. A clonagem terapêutica, no entanto, que visa a formação de tecidos ou órgãos para transplantes, é pouco conhecida e discutida.

    Em 5 de julho de 1996 nascia a ovelha Dolly, nascimento este que só foi divulgado em fevereiro do ano seguinte. Dolly foi o primeiro mamífero reproduzido a partir de uma célula somática de uma ovelha adulta, com seis anos de idade. Curiosamente, esta ovelha, supostamente "mãe biológica" de Dolly, já estava morta e congelada, o que levanta a seguinte pergunta: o que é necessário para se conseguir o status de mãe biológica? No meu entendimento, até então, todo animal tinha obrigatoriamente pai e mãe biológicos. Eis então uma confusão de conceitos.

    A clonagem que deu origem a Dolly também é denominada "transferência de núcleo", ou seja, o núcleo de uma célula somática é retirado e colocado em um óvulo cujo núcleo foi previamente retirado. Esta célula é capaz de se dividir e, se o embrião resultante for implantado em um útero e conseguir se desenvolver, poderá gerar um indivíduo. Interessante, ou assustador, foi saber que foram feitas 276 tentativas até que Dolly nascesse, sendo que a maioria dos óvulos utilizados, já com o núcleo trocado, nem sequer se dividiu. E que, de todos os outros embriões que conseguiram se dividir e ser implantados, apenas Dolly nasceu. Todos os outros morreram durante a gestação, muitos deles com alterações genéticas ou mal-formações graves.

    No dia 14 de fevereiro de 2003, aos seis anos e meio, Dolly foi submetida a uma injeção letal, pois era vítima de uma doença pulmonar grave, de origem supostamente infecciosa. A comunidade científica espera até hoje maiores explicações sobre a doença que acometeu a ovelha mais famosa do mundo. Seria essa doença causada por um erro genético resultante da clonagem? Os "criadores" de Dolly, os pesquisadores escoceses do Instituto Roslin, disseram que a doença é comum em ovelhas e foi, provavelmente, adquirida. Mas como Dolly teria sido exposta a uma doença gravíssima e fatal? Parece estranho. Além disso, Dolly já havia apresentado outros problemas possivelmente relacionados à clonagem. Ela era grande, obesa e vivia confinada. Teve três gestações e seis filhotes. Com pouco mais de cinco anos e meio foi divulgada a informação de que Dolly sofria de artrite na pata esquerda traseira.

    Tanto a artrite quanto a doença pulmonar apresentadas por Dolly são doenças características de ovelhas idosas. A artrite, especificamente, foi atribuída ao fato de Dolly ficar muito tempo apoiada nas patas traseiras para "brincar" com os visitantes. Mas muitos veterinários contestam essa justificativa. A hipótese que tem sido discutida é que essas doenças, comuns em animais mais velhos, poderiam estar associadas ao encurtamento dos telômeros (seqüências de DNA que ficam na ponta dos cromossomos). Já é bem conhecido o fato dos cromossomos irem diminuindo de tamanho e perdendo pequenas porções de seu material genético com o passar do tempo. Quando Dolly tinha três anos de vida, seus telômeros eram característicos de um animal de nove anos, idade esta que a ovelha doadora do núcleo teria se estivesse viva. Porém, essa informação não é confirmada por seus criadores, que contestam os resultados desses exames por eles terem sido feitos apenas uma vez, em tecido sanguíneo. Além disso, outros animais clonados não mostraram encurtamento de telômeros.

     

     

    O comportamento dos "genes imprintados", que se expressam de maneira diferencial de acordo com a origem parental também é um grande enigma na clonagem reprodutiva. Neste caso, das duas cópias de cada cromossomo recebidas, apenas uma é expressa: a cópia proveniente do pai ou a cópia proveniente da mãe. Um erro na expressão dos genes imprintados pode causar problemas muito graves. E como fica a expressão destes genes nos animais clonados? Como um organismo clonado pode distinguir genes provenientes do pai e da mãe?

    Desde que Dolly foi criada, muitos outros animais foram clonados utilizando-se a mesma técnica de transferência de núcleo. É impossível não correlacionar os problemas encontrados nestes animais com características apresentada por Dolly. Muitos dos animais clonados pela mesma técnica são grandes e obesos. Além disso, é comum que morram cedo, muitas vezes horas após o nascimento e de forma súbita. As placentas são muito maiores do que as placentas de animais concebidos de forma natural, fato este que põe em risco a integridade física da fêmea gestante.

    A partir de 1997, camundongos, porcos, ovelhas, bovinos, cabras, cavalos e e até um veado já foram clonados com a mesma metodologia. A taxa de sucesso, em média, é de 1%. Não se têm notícias até hoje de sucesso na clonagem de outros animais, como cães ou macacos. Um único gato foi obtido por clonagem – a gata CC ( copy cat ou cópia carbono) – que, para espanto dos cientistas responsáveis, não apresentava a mesma cor de pelagem da gata doadora do núcleo. Isto porque a cor da pelagem dos gatos está relacionada a diversos fatores ambientais. Nesse caso, qual seria então a vantagem de obter um animal clonado se ele não é idêntico ao doador escolhido?

    Mas, aparentemente, supõe-se que existam clones "normais". Em bovinos, um estudo mostra que em 15% dos clones sobreviventes ainda não foram encontradas evidências de anormalidades. Mas é importante lembrar que 75% dos animais utilizados nesse estudo morreram in utero, e os 10% restantes, logo após o nascimento. Além disso, esses animais ainda não viveram o suficiente para avaliar se terão uma expectativa de vida normal ou se poderão ter problemas mais tarde. Dolly, a princípio, era normal. Hoje, mais de sete anos após seu nascimento, temos fortes indícios de que muitos problemas ocorridos com ela eram derivados da clonagem, especialmente o envelhecimento precoce.

    Sobre a clonagem reprodutiva, a única certeza é que se trata de um processo muito ineficiente e nada nos garante que os clones que conseguiram nascer serão totalmente normais até o fim da vida.

    Apesar disso, algumas pessoas são a favor da clonagem reprodutiva em humanos. O médico italiano Severino Antinori revelou que tentaria clonar seres humanos, com o objetivo de ajudar casais com dificuldades reprodutivas. Um ex-repórter esportivo francês chamado Claude Vorilhon, que depois de ser supostamente abduzido por seres extraterrestres gosta de ser chamado de Raël, fundou uma seita "religiosa" e prega a seus fiéis que a clonagem é um direito, um modo de alcançar a vida eterna. Para isso, e de forma pitoresca, ele diz ser possível a transmissão de toda a memória adquirida para o corpo do clone. A maior semelhança entre esses dois cidadãos é o fato de ambos gostarem muito dos flashes dos fotógrafos. Antinori anunciou o nascimento de um clone pelo menos duas vezes e até hoje não escutamos nada a respeito e nem vimos as crianças. Mas o que teria acontecido com o bebê que nasceria em novembro 2002? Deixou de existir? E o clone que nasceria em janeiro de 2003? Já alguns raelianos (fiéis de Raël) supostamente cientistas, dizem que produziram cinco clones humanos, mas se negam a realizar um simples teste de DNA para comprovar publicamente o feito.

    Outras pessoas, também favoráveis à clonagem humana, dizem que apenas grandes gênios deveriam ser clonados, para que estes possam contribuir para a evolução da humanidade. É certo que tais gênios têm predisposição a serem mais inteligentes, mas esta predisposição não é apenas genética. O ambiente e, principalmente, as oportunidades de aprendizado influenciam diretamente no que nos tornamos.

    Além disso, será que não existem "gênios em potencial" espalhados pelos orfanatos brasileiros?

    Mais importante do que discutir a clonagem reprodutiva, que é banida pela grande maioria dos cientistas, sem dúvida é discutir a clonagem terapêutica. O procedimento — transferência do núcleo de uma célula adulta para um óvulo sem núcleo — é o mesmo. A maior diferença entre as clonagens reprodutiva e terapêutica é a finalidade.

    A clonagem terapêutica visa formar células saudáveis para que estas possam substituir células ou tecidos doentes como, por exemplo, no caso de uma pessoa que sofreu uma lesão na coluna e perdeu os movimentos. Para tentar regenerar a coluna lesada, seria retirado o núcleo de uma célula somática dessa pessoa, que seria inserido em um óvulo enucleado. Esse óvulo poderia ser de uma doadora ou da própria pessoa no caso de uma mulher em idade fértil. Após a inserção do núcleo do paciente no óvulo, este seria cultivado em laboratório para formar células-tronco (ou células progenitoras) capazes de se diferenciar em células nervosas. Tais células, já diferenciadas ou não, seriam injetadas no local da lesão e reparariam o tecido danificado se fossem "programadas" adequadamente. A vantagem de utilizar-se as próprias células é evitar a rejeição. Obviamente, esse procedimento não é simples, mas poderá, em um futuro próximo, trazer a cura de deficiências graves e até então incuráveis.

    Pessoas portadoras de doenças genéticas também poderiam utilizar a clonagem terapêutica na esperança de encontrarem uma cura, ou uma melhora significativa de seu quadro clínico. Neste último caso, porém, o núcleo doado não poderia ser do paciente, porque a mutação causadora da doença genética está presente em todas as suas células. A solução seria utilizar o núcleo da célula de outro indivíduo, geneticamente saudável, para a obtenção de células progenitoras para uso terapêutico. Uma alternativa para este procedimento, mais factível em curto prazo, seria a utilização de embriões descartados pelas clínicas de fertilização que ainda preservam a capacidade de se dividir e formar células-tronco. Essas células poderiam ajudar a salvar a vida de uma pessoa doente.

    O conceito da palavra "vida" também é polêmico. Para os pesquisadores interessados no avanço da ciência médica através da clonagem terapêutica, um embrião em estágio inicial é apenas um amontoado de células-tronco indiferenciadas e idênticas entre si. Estas células estão vivas, mas não se trata de uma pessoa viva. Já a igreja católica, entre outras religiões, defende que um óvulo fecundado por um espermatozóide já é uma pessoa potencialmente viva, independente do estágio de diferenciação que se encontra o embrião. Como muitos embriões são congelados e depois descartados pelas clínicas de fertilização assistida, os cientistas defendem a utilização desses embriões para a pesquisa científica. São células preciosas que poderiam estar salvando vidas.

    Mas antes que a clonagem terapêutica se torne uma realidade, muitas questões devem ser respondidas. Como a clonagem depende de um óvulo, o fato do DNA mitocondrial (DNAmit) do óvulo ser diferente do DNAmit do indivíduo doador do núcleo chamou a atenção da comunidade científica, principalmente no que se refere à rejeição de tecidos transplantados, obtidos por essa tecnologia. Para verificar esta possibilidade de rejeição in vivo, Lanza e colegas produziram em laboratório tecidos cardíaco, muscular esquelético e renal utilizando núcleos de fibroblastos bovinos. Tais tecidos foram transplantados para os indivíduos doadores dos núcleos e nenhuma rejeição foi notada, provando que o método é eficiente, mesmo em animais que possuem um sistema imunológico mais complexo. Como os indivíduos transplantados não apresentavam nenhuma enfermidade, não cabe a esse experimento o conceito de clonagem terapêutica. Mas o resultado é importante para futuros experimentos ou tratamentos que dependam da clonagem de células do próprio indivíduo como, por exemplo, as lesões medulares.

    O tempo é o principal inimigo daqueles que possuem uma doença incurável e precisam de um tratamento. Os longos debates entre os governantes, muitos deles completamente leigos no assunto, e a falta de informação da sociedade em geral, constituem uma barreira para tomada de decisões. Para um pai, a vida de um filho vale mais do que tudo o que ele tem, vale mais que a sua própria vida. E se existe uma possibilidade de salvar a vida de um filho, por mais diminuta que seja, essa passa a ser sua prioridade. Com esse intuito, um grupo de pais e pacientes com doenças graves, e até então incuráveis, formou no Brasil o movimento "Mõvitae" (Movimento em prol da Vida), que luta pela liberação do uso de células embrionárias para fins terapêuticos. Esse movimento foi criado porque ainda não foi cientificamente provado que as células-tronco adultas são capazes de se diferenciarem em todos os tecidos. Se isso for demonstrado, o problema ético do uso de embriões para a clonagem terapêutica deixará de existir.

    Enquanto não é liberado o uso de embriões humanos para pesquisa, muitos trabalhos têm sido desenvolvidos em humanos com células-tronco de sangue de cordão umbilical e de medula óssea de adultos. Em camundongos, células retiradas da medula óssea se diferenciaram em músculo esquelético e cardíaco, e em células hepática, in vitro, provando que as células-tronco da medula não servem apenas para repor as células sanguíneas, como se pensava até então. Da mesma forma, células retiradas de tecidos adultos, como músculo e cérebro, também se diferenciaram em células sanguíneas.

    Em humanos, células-tronco adultas, retiradas da medula de um doador compatível, são utilizadas há muito tempo para o tratamento de leucemias. No caso, as células-tronco da medula do indivíduo doador é que são responsáveis pela recuperação da medula do indivíduo receptor. Uma alternativa é a substituição da medula do doador. Por outro lado, o transplante com células-tronco de cordão umbilical e placentário de recém-nascidos, que são geneticamente mais jovens, têm mostrado resultados excelentes. Observou-se que os telômeros são maiores nas células-tronco obtidas de cordão umbilical do que naquelas retiradas da medula. Sabe-se que os telômeros diminuem de tamanho com o envelhecimento da célula, isto é, quanto maiores os telômeros, maior a capacidade de divisão da célula, o que explicaria os melhores resultados obtidos com células-tronco de cordão umbilical. Isto que dizer que além dos telômeros estarem preservados, a capacidade de se dividir e multiplicar das células no corpo do receptor é maior, devido ao fato de todas as células do corpo, incluindo as células-tronco, possuírem uma quantidade limitada de divisões. Portanto, quanto maior a idade da célula, mais encurtados são seus telômeros e menor sua capacidade de divisão.

    Não devemos aceitar que o desenvolvimento da ciência seja interrompido. Bons resultados com a utilização de células-tronco adultas não excluem a possibilidade das células-tronco embrionárias apresentarem melhores resultados. É evidente que a clonagem terapêutica, vista de uma forma geral e sem critérios, é perigosa. Por esse motivo deve ser praticada por pessoas interessadas no bem estar do próximo e que tenham respeito à vida.

     

    Tatiana Jazedje da Costa Silva é pesquisadora do Centro de Estudos do Genoma Humano-Departamento de Biologia, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo (USP).

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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