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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.3 São Paulo July/Sept. 2004

     

     

    ASPECTOS ÉTICOS E FILOSÓFICOS DA CLONAGEM

    Marco Segre

     

    AUTONOMIA NA REFLEXÃO ÉTICA Historicamente, o conceito de autonomia nasce na cultura política da democracia grega para indicar as formas de governo autárquicas, e é somente a partir do humanismo individualista da Idade Moderna, que culmina na Aufklärung (Iluminismo) do século XVIII, que o conceito de autonomia se aplica ao indivíduo. Desde então, o indivíduo se torna um autêntico sujeito moral, titular de direitos e deveres correspondentes, e capaz de querer o Bem voluntária e racionalmente. A primeira formulação sistemática do conceito de autonomia, aplicado ao indivíduo, deve-se a Kant, para quem o sujeito moral em questão é a pessoa, isto é, o indivíduo racional e livre, e é por isso que a ética kantiana será conhecida como "racionalismo ético". Em Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Kant afirma que a lei moral autônoma é aquela que tem na "vontade boa" (das gute Wille) seu fundamento e legitimidade, sendo o único princípio fundamental (Kant utiliza o termo "supremo") da moralidade e, portanto, garantia da personalidade moral. Ela se contrapõe à heteronomia que é, propriamente, ausência de moralidade, pois estaria embasada na "vontade má" (das böse Wille) e na irracionalidade.

    A ética kantiana permanece praticamente até Nietzsche, que em Além do bem e do mal e A genealogia da moral (ambos de 1887) procede literalmente à desconstrução do racionalismo kantiano (é conhecida sua afirmação de "fazer filosofia a golpes de martelo"). Nietzsche mostra, por exemplo, como atrás da "vontade boa" e dos princípios morais racionais agem, de fato, motivações inconscientes e a vontade de poder, assim como o ressentimento resultante da frustração da vontade de poder e que alimentaria a influência das religiões sobre os indivíduos. Sob este aspecto, a visão de Nietzsche aproxima-se do enfoque de uma ética, do qual perfilhamos, na qual a percepção do conflito moral que uma determinada questão propicia é fundamental para, junto com a racionalidade, caminharmos efetivamente para uma reflexão autônoma.

    No instante em que percebemos o conflito, a razão passa a estar integrada com a vida afetiva.

    AUTONOMIA E SUBJETIVIDADE "Penso, logo existo". A expressão de Descartes merece ser detidamente refletida. Cada um de nós nada mais tem, nada mais é, que não o seu pensamento. A noção de realidade é, até ela, embasada exclusivamente no pensamento de cada ser. Toda a humanidade, desde sempre, nada mais teve do que o pensamento de cada um de seus componentes. Portanto, tudo o que "existe" sempre existiu na psique das pessoas. A convergência da descrição de fenômenos (descritos semelhantemente) por pessoas diferentes é o que constitui a "realidade".

    Logo, para pensarmos ética, devemos tê-la como rigorosamente subjetiva. O que é ética se não uma hierarquia de valores, uma tentativa de delineamento do "certo" ou "errado", do bem ou do mal? Venha ela de um Deus externo, de um estatuto jurídico, de tradições, de observações científicas. Mas, certamente, cada subjetividade (cada indivíduo) poderá estabelecer, se quiser (condição de autonomia), sua escala hierárquica de valores.

    "De dentro para fora", e não de "fora para dentro".

     

     

    Se cada "sujeito" (e só assim ele poderá ser sujeito e não "objeto" de sua vida) assumir sua "autonomia" estará contribuindo para algum tipo de mudança na postura ética de sua comunidade. Mesmo porque, já foi visto, ele só pode escolher entre usar a sua própria subjetividade ou louvar-se pela subjetividade dos outros. Escolher entre pensar seus próprios códigos ou pensar de acordo com os códigos dos outros. Que mais são as religiões se não guias de pensamento e de conduta, elaboradas por outras mentes, no presente ou no passado? Assim sendo, no terreno das idéias, referindo-nos momentaneamente à ética, apenas existem dois tipos de pessoas: as obedientes e as inovadoras – com todas as gradações intermediárias. A aceitação da idéia de autonomia, assim como foi por nós descrita, é complexa para muitas pessoas.

    Há tendências a se considerar o Homem como ser imperfeito, eivado de vícios, desobediente a um Deus vigilante, que o observa e, muitas vezes, perdoa.

    Deixa-se de lado, assim, a consideração lógica de – a partir do momento em que cada um de nós nada mais tem a não ser o seu próprio pensamento, com liberdade de se pautar segundo ele e estabelecer hierarquias de valores ou, então, obedecer a regras criadas por outrem – ter sido o Homem quem produziu Deus, e não vice-versa, a par de que a maioria de nós, como crença, sinta o contrário. Assim sendo, a invocação da lei divina como obstáculo à aceitação de uma nova postura, ou conhecimento, ou técnica, é visivelmente uma postura heterônoma (e não autônoma).

    OS CLONES HUMANOS Dentro da ótica que expusemos, a da "ética da reflexão autônoma", por que colocarmos tantas barreiras à possível futura construção de clones humanos?

    Por que, se respeitarmos e tivermos bem claros os valores que desejamos preservar (entre os quais se destacam: o respeito à vida e à sua qualidade; a rejeição de todo tipo de dominação ou subjugação; a tentativa de administração equilibrada do confronto individual x coletivo etc), vermos com tanto "pânico" a eventual implementação de um avanço científico?

    Desejaríamos menosprezar a tragicidade de extermínios, autoritarismos, iniqüidades sociais aterradoras, terrorismos, todos presentes em nosso momento histórico, para nos determos angustiados face à possibilidade (existente) de ser uma técnica nova utilizada contrariamente aos nossos ideais de vida?

    Estaremos nós querendo esquecer que não é um "instrumento" que taxaremos de ético ou antiético, e sim a forma de utilização desse instrumento? A produção de energia nuclear é um excelente exemplo, podendo ser empregada de forma construtiva para a sociedade, como ocorre quando ela tem fins terapêuticos, ou de maneira destrutiva, nas bombas atômicas.

    Argüi-se que não existem, até o momento, pesquisas científicas em número e qualidade suficientes para que se possa ter segurança de que não se gerarão portadores de anomalias congênitas que confrontem a qualidade de vida dos nascituros. Esta é uma objeção importante, pois o que se defende não é a liberdade do pesquisador de "fazer o que bem entender", mas, isto sim e com toda ênfase, é o controle social rigoroso sobre toda pesquisa com seres humanos. Aí está a brasileira Resolução 196/96, emanada do Conselho Nacional de Saúde, que submete à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conepe) os protocolos de pesquisa (para aprovação, ou não) em matérias temáticas, como é o caso da reprodução humana.

    Mas, vinculados como estamos, em nosso país, à normatização totalmente fora de sintonia com os avanços da reprodução assistida (RA), quando ainda se proíbe a manipulação e o descarte de embriões produzidos in vitro, como pretender que se acumule conhecimento suficiente para empreender futuramente uma clonagem de seres humanos?

    A sempre renovada discussão referente ao momento no qual o embrião humano passa a "merecer" respeito à sua vida e integridade, apenas comprova a aleatoriedade e o caráter pragmático da caracterização do "início da vida".

    Essa observação encontra esteio, por semelhança, na recente mudança do conceito de morte, quando a morte encefálica, por motivação essencialmente utilitária, foi identificada com morte.

    Assim como o desenvolvimento das técnicas de transplantes de órgãos vitais, a partir de doadores "mortos", passou a exigir a redefinição do momento de morte, para que esses fossem viáveis, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida está estimulando um questionamento do momento de início da vida, para que, pelo destino que não se sabe qual dar aos embriões excedentes, este outro avanço científico (a reprodução assistida) não seja obstaculizado.

    Com relação a esse aspecto, é fácil perceber o quanto a caracterização do momento de início da vida no instante da fecundação do óvulo, mormente nos países em que o aborto é crime (conceitua-se aborto, ainda, pelo menos no Brasil, como toda interrupção do processo gestacional), dificulte e mesmo impeça o desenvolvimento de novas técnicas de reprodução assistida. As técnicas de reprodução assistida (RA), intervindo na junção dos gametas masculino e feminino, produzindo-se um embrião (ou pré-embrião, como muitos preferem denominar, nessa fase), requerem a replicagem desses "conceptos" para que haja expectativa de êxito com sua implantação no útero: há, portanto, praticamente sempre, embriões excedentes que habitualmente são congelados, mas cuja utilização para se dar prosseguimento ao processo concepcional é muito improvável. Assim, como também ocorre nas situações em que clinicamente se indica a redução embrionária (proteção da vida da mulher gestante, que não pode suportar mais do que um número definido de fetos), há que se encontrar uma forma, que a lei avalize, de se poderem descartar embriões. Para que isso possa ocorrer, será necessário que se modifique o conceito de momento de início da vida, uma vez que, na maioria dos países, o direito à vida é cláusula pétrea das constituições (exceção seja feita, conforme já se referiu, aos países em que, embora se reconheça como momento de início da vida a fecundação, permite-se a prática do aborto).

    É, portanto, indispensável que se altere o conceito de momento de início da vida, visando aos referidos objetivos absolutamente pragmáticos, ou que se abram exceções legais que permitam a inutilização de embriões – ou, de sua utilização para outros fins, e é este, especificamente, o assunto de que iremos tratar neste trabalho – ou, finalmente, que se proíbam todas essas novas técnicas que, ao menos em princípio, visam a buscar melhor qualidade de vida para pessoas que desejam procriar! Absolutamente inaceitável é, entretanto, o caráter retrógrado de conceituações e leis existentes, a menos que se deseje, como ocorre no conto O aprendiz de feiticeiro – caso específico da reprodução assistida – que o homem , tendo o poder de replicar embriões ao seu talante, não os possa destruir, quando eles não fossem ser aproveitados, tornando-se vítima de seu "feitiço".

    Afinal, a vida é um continuum que, mesmo abstraindo-nos das crenças atinentes à espiritualidade, poder-se-ia considerar tendo seu início material nos pré-gametas e seu fim na esqueletização do cadáver. Grande número de trabalhos já foi escrito sobre a partir de quando e até quando se reconhece que um ser humano é pessoa (e este, certamente, não será um deles), mas é absolutamente evidente o caráter inerente a uma cultura, aleatório e pragmático da tentativa de se estabelecerem esses limites.

    CLONES HUMANOS, PARA QUÊ? Tratando-se de um horizonte novo, que se descortina, são dificilmente previsíveis as virtuais aplicações dessa técnica. Quando, de acordo com a lenda grega, Prometeu produziu o fogo, ele certamente não tinha a perspectiva da sua extraordinária descoberta, nodal para a história da humanidade.

    Serão os clones humanos produzidos tão somente para a replicação genética de pessoas, atendendo ao desejo (compreensível) de sujeitos isolados ou de casais estéreis? Acho que não.

    Tentativa do homem, de alcançar a imortalidade? Considero essa expectativa vã, uma vez que a identidade genética não é determinante da personalidade (como, muito bem se vê nos gêmeos univitelinos), e, muito mais, a repetição genética nada tem que ver com a continuação da subjetividade.

    E a construção de órgãos, visando a realização de transplantes, não será também ela uma perspectiva terapêutica capaz de produzir um extraordinário salto no aumento da qualidade e quantidade de vida do ser humano? Poder-se-á objetar que a "produção" de seres humanos, ainda que para fins terapêuticos, é uma violência contra um dos inestimáveis valores de nossa cultura: a vida. Mas, a essa altura, remetemo-nos às considerações anteriores sobre vida. E estendemos essa reflexão para, havendo vida, a partir de que momento consideramos a existência de um sujeito, a quem atribuiremos direitos? Sempre tentando construir nosso futuro, desestigmatizando sentimentos morais incrustados em nossa cultura, não poderemos pensar na construção de clones sem estruturas nervosas, e que, por semelhança, compararemos a corpos em estado de morte encefálica, e que certamente não consideramos pessoas e sim "banco de órgãos"?

    Cabe reiterar, concluindo, que não serão as técnicas que nos levarão a um "inferno ético". Parece-me não devermos temê-las, aprioristicamente, e sim monitorar cuidadosamente a sua aplicação.

     

    Marco Segre é médico e professor emérito do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).