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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.56 n.3 São Paulo jul./set. 2004

     

    Cinema

    ORIGINALIDADE E FLUÊNCIA NARRATIVA NAS NOVAS PRODUÇÕES

     

    Desmundo de Alain Fresnot e O invasor de Beto Brant são dois filmes exemplares da qualidade do cinema brasileiro em seu movimento de retomada da produção. Outros filmes também marcaram presença na consolidação de uma nova cinematografia nacional. São filmes como Central do Brasil, Lavoura arcaica, Cidade de Deus que, entre outros, recriaram sob diversos ângulos a identidade do nosso cinema junto ao público brasileiro. Filmes que provocaram fortes ressonâncias na faixa de público internacional mais atenta aos caminhos da sétima arte.

     

     

    O cinema volta a afirmar seu poder narrativo, compartilhando com o espectador visões estéticas de um Brasil extenso e plural, sincero e ambíguo, mas, fundamentalmente, ávido em dar expressão a si mesmo. Essa bem sucedida resposta, tanto artística como econômica, à criação da Lei do Audiovisual evidencia a necessidade que essa arte tem de amparar-se em mecanismos de incentivo, promovidos pelo Estado, para que continue viva como organizadora de uma estética que espelha as diferentes visões de mundo de uma comunidade nacional.

    A exemplaridade a que nos referimos, com relação aos dois filmes – Desmundo e O invasor – está na aguda sensibilidade e visão crítica com que o primeiro enfoca o drama vivido pela nascente sociedade brasileira no início da colonização e, no segundo, o drama contemporâneo vivido por este país. Brasil colônia em um cenário de autoritarismo econômico-religioso, e Brasil emergente num cenário de dependência econômica-financeira. Duas histórias que, do ponto de vista temático e do ponto de vista da expressão fílmica, encantam por sua originalidade e fluência narrativa.

    Desmundo baseia-se no livro homônimo de Ana Miranda que nos conta a história de uma jovem pertencente a um grupo de órfãs enviadas à Colônia, para serem entregues como esposas brancas aos homens rústicos da terra. Ela luta para não ser submetida.

    Portugal e Espanha disputam espaços e riquezas nos "Brasis" e para isso vale escravizar os índios e exterminar os que não se submetem. A violência volta-se para dentro da igreja, da família, na relação dos homens com as mulheres, dos adultos com as crianças. Os mais fracos são todos – parodiando um personagem do filme Carandiru de Hector Babenco – "sem chance". Desmundo é uma história de ontem.

    O invasor, criado a partir do texto de mesmo título de Marçal Aquino, narra a história de empresários que aderem a esquemas de corrupção nas relações do poder público com o setor de construção civil, o que lhes exige adesão ao assassinato dos que atravancam o caminho. O crime de colarinho branco associa-se ao crime do marginal de periferia num contágio que lhe é ameaçador. A partir daí, os empresários sofrerão a ameaça de um outro mundo onde matar é um ato banal, cotidiano, culturalmente assimilado. Um roteiro que sintetiza de forma surpreendente o drama da corrupção que estamos vivendo e, com o prêmio obtido no Sundance, festival internacional de cinema independente realizado anualmente em Utah, nos Estados Unidos, teve sua realização viabilizada. Uma história de hoje.

    Os dois filmes falam de uma violência que vem, historicamente, do centro como o poder da metrópole além-mar ou como o poder político-empresarial. Em seguida, ela se espalha pela periferia e retorna em um refluxo que reivindica seu espaço de atuação no centro. Resultado: as máfias, de centro ou de periferia, tomam o poder nas instituições.

    NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA Mas a contribuição desses dois filmes à cinematografia nacional não está apenas em sua relevância temática. Eles produzem também reflexões no campo da narrativa audiovisual.

    Desmundo tem um tratamento cenográfico extremamente acurado. É um testemunho da maturidade, no aspecto da produção, do atual cinema brasileiro. Uma pequena cidade do Brasil colônia é criada em toda sua genuína movimentação econômica e religiosa em Ubatuba, no litoral paulista. Da mesma forma, as equipes de arte e cenografia recriam uma propriedade do tipo "mato-a-dentro": um engenho, com moradia e ranchos, onde assistimos à faina diária do senhor e seus índios escravos na produção de açúcar e de outras fontes de renda, como a venda de índios de outras tribos.

    Esse cuidado cenográfico estende-se aos móveis, adereços, animais, equipamentos de produção e transporte e, também, aos figurinos e maquiagem dos atores e do grande número de extras, o que cria uma atmosfera autêntica a toda movimentação cênica. O clima de verossimilhança completa-se pelos diálogos em um português arcaico mesclado com as falas em línguas indígena e africana, sem legendas, portanto diálogos em parte incompreensíveis à órfã recém-chegada e aos espectadores, um elemento a mais marcando a hostilidade natural de uma forma de existência que faz da violência física o método de controlar a produção e o poder.

    Essa fidelidade à arquitetura colonial, com suas janelas estreitas à guisa de espias e seteiras, escurece os interiores e provoca estouros de luz nas tomadas de dentro para fora. A direção de fotografia do filme soube aproveitar essa aparente dificuldade conseguindo belos resultados plásticos no contraste dos tons escuros com os ocres e dourados. Nas cenas de exterior, tanto nas matas como à beira-mar, o aproveitamento da luz natural pelo uso de rebatedores e escolha das horas apropriadas para essas tomadas trouxe um resultado de alto nível técnico e artístico.

    Ao que tudo indica, não houve economia do dinheiro investido pelos patrocinadores com relação à produção. Dos recursos técnicos à composição da música um grande número de profissionais foi envolvido na realização do filme. O destaque no elenco é Osmar Prado que, no papel do senhor de engenho, nos dá a dimensão da rusticidade de um homem envolvido na epopéia da colonização de uma terra desconhecida.

    Em O invasor esse papel crucial é desempenhado por Paulo Miklos que interpreta com perfeição o assassino de aluguel, que vem da periferia para pegar o seu quinhão entre os burgueses corruptos. Nesse aspecto, a força de O invasor deve muito ao rapper Sabotage que refez com Miklos boa parte dos diálogos do roteiro original, trazendo para o cinema a linguagem da periferia.

    Em O invasor não há produção cenográfica. O filme teve como opção reduzir custos em matéria de cenografia e equipamentos de filmagem. Resultado: uma narrativa dinâmica em que a câmera leve de 16mm é operada na mão e registra em planos-seqüência as interações entre os atores, em um espaço cênico praticamente livre. Essa dinâmica de filmagem escapa das propostas estéticas do Dogma tanto quanto às do Cinema Verdade uma vez que, embora na mão, a câmera tem uma posição narrativa firme e não chama a atenção para si mesma. O resultado cenográfico é a cidade de São Paulo, tal como a conhecemos hoje, suas ruas de periferia e de centro, casas de pobres e casas de ricos, seus botequins, suas boates. O invasor nos atinge, também e principalmente, por essa proximidade com o dia-a-dia.

    MARCAÇÃO DE CORES Outra grande inovação do filme foi a pós-produção ter sido realizada em vídeo digital padrão HDTV, e depois de finalizado, retornar à película, mas agora em 35mm. Este processo permitiu ao diretor Beto Brant trabalhar a marcação de cores na pós-produção, de forma a que elas respondessem ao clima psicológico do personagem Ivan, o empresário que entra em crise ética. À medida em que Ivan percebe o mar de lama em que está envolvido, a imagem, numa sutil correspondência a seu estado psicológico, vai adquirindo depressivos tons esverdeados. Esse tratamento de cores em relação às ações traz ao espectador uma nuance cromática que atua sobre a ação dramática.

    Com a estrutura narrativa de um filme sem estúdios e sem locações especialmente construídas, O invasor tem algo de documentário que aumenta com a trilha sonora de 14 músicas que se integram aos espaços onde se desenrola a ação. Nela estão os músicos e as bandas que falam da cidade.

    Enfim, Desmundo e O invasor fazem parte desse tipo de produção artística que abre à população um espaço estético onde se dá a reflexão sobre o país em que vive. Essa reflexão, além de criar uma identidade de nação, de cidadania, entrelaça os elementos que vão movimentar a vida social.

     

    Fernando Passos é cineasta, professor na pós-graduação em Multimeios da Unicamp